Homilia no Natal do Senhor (Missa do Dia)
Nós vimos a sua glória!
«E o Verbo fez-Se carne e habitou entre nós. Nós vimos a sua glória…».
Assim acabámos de escutar, caríssimos irmãos e irmãs, como
magnificamente ressoa há tantos séculos no prólogo do quarto Evangelho.
Mas também há de ressoar agora na convicção mais forte e na coerência
mais certa das nossas vidas cristãs.
Porque não é pouco. É muitíssimo e será absolutamente tudo. «Nós vimos a sua glória…»: - Que nos diz o trecho e que professamos nós com ele? Fala-se de “glória”, mas que glória? Fala-se de “ver”, mas qual glória realmente vimos e continuamos a ver naquele Menino nascido, depois crescido e a oferecer-se por nós e por todos?
Meditemos um pouco, como hoje muito especialmente devemos. A palavra “glória”- traduzindo o grego doxa e o hebraico kabod – significa também “esplendor”, quando a plenitude divina como que transborda e se difunde na criação inteira. Concentra-se em Jesus Cristo, no qual Deus se diz – por isso é Verbo – e se manifesta na humanidade que assume, assim mesmo encarnando.
O quarto Evangelho ensina-nos depois a ver a glória de Deus nos “sinais” com que Jesus a apresenta. Logo no primeiro, quando mudou a água que lhe deram no “vinho novo” que só Ele podia dar a provar, como definitivamente o deu. Por isso o comentário: «Assim, em Caná da Galileia, Jesus realizou o primeiro dos seus sinais, com o qual manifestou a sua glória, e os discípulos creram nele» (Jo 2,11).
Seguiram-se outros seis: Quando curou o filho do funcionário real (Jo 4, 46 ss), quando curou o paralítico da piscina de Betzatá (5, 1 ss), quando multiplicou os pães e os peixes (6, 1 ss), quando caminhou sobre as águas (6, 16 ss), quando curou o cego de nascença (9, 1 ss) e quando ressuscitou o seu amigo Lázaro (11, 33 ss). Reparemos que, qual encarnação continuada, é no detalhe preciso duma vida convivida que Jesus manifesta a sua glória, como exuberância divina que inteiramente salva, no corpo e no espírito, a humanidade que O espera.
Foi nos seus últimos momentos na terra que Jesus manifestou em pleno o que seja a glória dum Deus que nos ama – como se realizasse inteiramente o seu Natal. Pois assim mesmo a localiza o evangelista, na última ceia e quando é abandonado e traído: «Depois de Judas ter saído, Jesus disse: “Agora é que se revela a glória do Filho do Homem e assim se revela nele a glória de Deus”» (Jo 13,31). Tão diferente das nossas presunções, a glória de Deus no seu infinito amar, apesar de tudo e até apesar de nós… Mais do que material, é profundamente verdadeiro o antigo dito de que «as tábuas do presépio foram depois as tábuas da cruz».
Mais explícito porventura, eis o que Jesus pede ao Pai na sua oração sacerdotal, por si, pelos discípulos e por todos: «Pai, chegou a hora. Manifesta a glória do teu Filho, de modo que o Filho manifeste a tua glória, segundo o poder que lhe deste sobre toda a Humanidade, a fim de que dê a vida eterna a todos os que lhe entregaste» (Jo 17, 1-2). – Estamos realmente a vê-lo, a Jesus e à sua glória? Ao Pai, que tudo lhe entregou, pois o enviou na humanidade de nós todos, pede que em si mesmo o amor vá até ao fim, pois a verdadeira glória só nisso reside.
Um amor que vai até ao fim: Esta é a glória de Deus, como em Cristo se manifesta. E que comece por ir até ao outro, onde o outro está, carece e espera, ainda que o não saiba. É eternamente Filho, porque “sai” do Pai e para o Pai retorna, na circulação completa da vida divina. Assim mesmo se fez um de nós, para nele podermos ser filhos de Deus também, num Espírito só, numa mesma glória. Como prosseguiu, na mesma oração: «Eu dei-lhes a glória que Tu me deste, de modo que sejam um, como Nós somos Um. Eu neles e Tu em mim, para que eles cheguem à perfeição da unidade e assim o mundo reconheça que Tu me enviaste e que os amaste a eles como a mim» (Jo 17, 22-23).
A lição de Cristo, no Natal começada, é esta e só esta, e a sua glória: manifestação de Deus, como amor provado, para o sermos também. E à sua luz veremos tudo o mais.
Seremos “sinais”: Sinais da glória de Deus neste mundo, porque, com Cristo e no Espírito de Cristo, reviveremos o mesmo “sair de si”, o mesmo encontrar-se nos outros e para os outros, sobretudo os mais pobres e frágeis. Mais, muito mais, do que obter qualquer glória caduca, sabe-se lá à custa de quê e de quem, pretendamos a glória perene que é amor divino, do Presépio à Cruz, e apenas à custa do nosso egoísmo ultrapassado.
Perguntemos e respondamos, com as palavras dum belo poema do Ofício Divino: «- Que salmos ou que versos cantaremos / Em teu louvor, ó Luz imensa e pura, / Luz de quem o Sol claro e quanto vemos / Recebe luz e graça e formosura? / […] Só o amor Te louva, só Te obriga, / Ó beleza tão nova e tão antiga».
A glória de Deus no seu Verbo incarnado, a glória do Verbo ecoado em nós, com idêntico Espírito, com as mesmas obras, pelo mundo inteiro. Ampliadas no tempo e no espaço, mas continuando suas. Como também disse: «Em verdade, em verdade vos digo: quem crê em mim também fará as obras que eu realizo; e fará obras maiores do que estas, porque eu vou para o Pai, e o que pedirdes em meu nome eu o farei, de modo que, no Filho, se manifeste a glória do Pai» (Jo 14, 12-13).
Particularmente agora, no Jubileu da Misericórdia com a atitude que requer, para ser o que promete e a graça divina oferece. Misericórdia que se traduz em corações decididamente voltados para tudo quanto seja pobre, carente e frágil, como o coração de Deus se manifestou no Natal de Cristo, pobre entre pobres, pobre para os pobres.
Na bula em que providencialmente nos convocou para o presente Ano Santo, o Papa Francisco liga a “nova evangelização” que este tempo exige à “misericórdia” que a definirá. E insiste: «É determinante para a Igreja e para a credibilidade do seu anúncio que viva e testemunhe, ela mesma, a misericórdia. A sua linguagem e os seus gestos, para penetrarem no coração das pessoas e desafiá-las a encontrar novamente o caminho para regressar ao Pai, devem irradiar misericórdia» (Misericordiae Vultus, 12).
Caríssimos irmãos e irmãs: Pela grande porta jubilar desta sé, aqui nos reunimos e assim divisamos a glória de Deus na incarnação do seu Verbo. Convertamo-nos ao modo divino de ser e aparecer, para que, também por nós, irradie agora. O testemunho de quantos, nas famílias, nas comunidades, nos hospitais, nas prisões e nas ruas da nossa cidade, sem mediatismo nem espavento, reproduzem hoje o Natal de Cristo, atrai e convence, como glória autêntica.
Sé de Lisboa, Natal do Senhor (Missa do Dia), 25 de dezembro de 2015
+ Manuel, Cardeal-Patriarca
Porque não é pouco. É muitíssimo e será absolutamente tudo. «Nós vimos a sua glória…»: - Que nos diz o trecho e que professamos nós com ele? Fala-se de “glória”, mas que glória? Fala-se de “ver”, mas qual glória realmente vimos e continuamos a ver naquele Menino nascido, depois crescido e a oferecer-se por nós e por todos?
Meditemos um pouco, como hoje muito especialmente devemos. A palavra “glória”- traduzindo o grego doxa e o hebraico kabod – significa também “esplendor”, quando a plenitude divina como que transborda e se difunde na criação inteira. Concentra-se em Jesus Cristo, no qual Deus se diz – por isso é Verbo – e se manifesta na humanidade que assume, assim mesmo encarnando.
O quarto Evangelho ensina-nos depois a ver a glória de Deus nos “sinais” com que Jesus a apresenta. Logo no primeiro, quando mudou a água que lhe deram no “vinho novo” que só Ele podia dar a provar, como definitivamente o deu. Por isso o comentário: «Assim, em Caná da Galileia, Jesus realizou o primeiro dos seus sinais, com o qual manifestou a sua glória, e os discípulos creram nele» (Jo 2,11).
Seguiram-se outros seis: Quando curou o filho do funcionário real (Jo 4, 46 ss), quando curou o paralítico da piscina de Betzatá (5, 1 ss), quando multiplicou os pães e os peixes (6, 1 ss), quando caminhou sobre as águas (6, 16 ss), quando curou o cego de nascença (9, 1 ss) e quando ressuscitou o seu amigo Lázaro (11, 33 ss). Reparemos que, qual encarnação continuada, é no detalhe preciso duma vida convivida que Jesus manifesta a sua glória, como exuberância divina que inteiramente salva, no corpo e no espírito, a humanidade que O espera.
Foi nos seus últimos momentos na terra que Jesus manifestou em pleno o que seja a glória dum Deus que nos ama – como se realizasse inteiramente o seu Natal. Pois assim mesmo a localiza o evangelista, na última ceia e quando é abandonado e traído: «Depois de Judas ter saído, Jesus disse: “Agora é que se revela a glória do Filho do Homem e assim se revela nele a glória de Deus”» (Jo 13,31). Tão diferente das nossas presunções, a glória de Deus no seu infinito amar, apesar de tudo e até apesar de nós… Mais do que material, é profundamente verdadeiro o antigo dito de que «as tábuas do presépio foram depois as tábuas da cruz».
Mais explícito porventura, eis o que Jesus pede ao Pai na sua oração sacerdotal, por si, pelos discípulos e por todos: «Pai, chegou a hora. Manifesta a glória do teu Filho, de modo que o Filho manifeste a tua glória, segundo o poder que lhe deste sobre toda a Humanidade, a fim de que dê a vida eterna a todos os que lhe entregaste» (Jo 17, 1-2). – Estamos realmente a vê-lo, a Jesus e à sua glória? Ao Pai, que tudo lhe entregou, pois o enviou na humanidade de nós todos, pede que em si mesmo o amor vá até ao fim, pois a verdadeira glória só nisso reside.
Um amor que vai até ao fim: Esta é a glória de Deus, como em Cristo se manifesta. E que comece por ir até ao outro, onde o outro está, carece e espera, ainda que o não saiba. É eternamente Filho, porque “sai” do Pai e para o Pai retorna, na circulação completa da vida divina. Assim mesmo se fez um de nós, para nele podermos ser filhos de Deus também, num Espírito só, numa mesma glória. Como prosseguiu, na mesma oração: «Eu dei-lhes a glória que Tu me deste, de modo que sejam um, como Nós somos Um. Eu neles e Tu em mim, para que eles cheguem à perfeição da unidade e assim o mundo reconheça que Tu me enviaste e que os amaste a eles como a mim» (Jo 17, 22-23).
A lição de Cristo, no Natal começada, é esta e só esta, e a sua glória: manifestação de Deus, como amor provado, para o sermos também. E à sua luz veremos tudo o mais.
Seremos “sinais”: Sinais da glória de Deus neste mundo, porque, com Cristo e no Espírito de Cristo, reviveremos o mesmo “sair de si”, o mesmo encontrar-se nos outros e para os outros, sobretudo os mais pobres e frágeis. Mais, muito mais, do que obter qualquer glória caduca, sabe-se lá à custa de quê e de quem, pretendamos a glória perene que é amor divino, do Presépio à Cruz, e apenas à custa do nosso egoísmo ultrapassado.
Perguntemos e respondamos, com as palavras dum belo poema do Ofício Divino: «- Que salmos ou que versos cantaremos / Em teu louvor, ó Luz imensa e pura, / Luz de quem o Sol claro e quanto vemos / Recebe luz e graça e formosura? / […] Só o amor Te louva, só Te obriga, / Ó beleza tão nova e tão antiga».
A glória de Deus no seu Verbo incarnado, a glória do Verbo ecoado em nós, com idêntico Espírito, com as mesmas obras, pelo mundo inteiro. Ampliadas no tempo e no espaço, mas continuando suas. Como também disse: «Em verdade, em verdade vos digo: quem crê em mim também fará as obras que eu realizo; e fará obras maiores do que estas, porque eu vou para o Pai, e o que pedirdes em meu nome eu o farei, de modo que, no Filho, se manifeste a glória do Pai» (Jo 14, 12-13).
Particularmente agora, no Jubileu da Misericórdia com a atitude que requer, para ser o que promete e a graça divina oferece. Misericórdia que se traduz em corações decididamente voltados para tudo quanto seja pobre, carente e frágil, como o coração de Deus se manifestou no Natal de Cristo, pobre entre pobres, pobre para os pobres.
Na bula em que providencialmente nos convocou para o presente Ano Santo, o Papa Francisco liga a “nova evangelização” que este tempo exige à “misericórdia” que a definirá. E insiste: «É determinante para a Igreja e para a credibilidade do seu anúncio que viva e testemunhe, ela mesma, a misericórdia. A sua linguagem e os seus gestos, para penetrarem no coração das pessoas e desafiá-las a encontrar novamente o caminho para regressar ao Pai, devem irradiar misericórdia» (Misericordiae Vultus, 12).
Caríssimos irmãos e irmãs: Pela grande porta jubilar desta sé, aqui nos reunimos e assim divisamos a glória de Deus na incarnação do seu Verbo. Convertamo-nos ao modo divino de ser e aparecer, para que, também por nós, irradie agora. O testemunho de quantos, nas famílias, nas comunidades, nos hospitais, nas prisões e nas ruas da nossa cidade, sem mediatismo nem espavento, reproduzem hoje o Natal de Cristo, atrai e convence, como glória autêntica.
Sé de Lisboa, Natal do Senhor (Missa do Dia), 25 de dezembro de 2015
+ Manuel, Cardeal-Patriarca
Patriarcado de Lisboa
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