É urgente o Natal, na grande hospedaria do mundo
Em cada Natal algo de novo acontece, começando em nós próprios e antes de mais como expetativa. Seja o que for a vida, mais fácil ou mais sofrida, há como que um suplemento de alma para o que possa acontecer de bom e de belo. Em nós, à nossa volta e no mundo inteiro.
Impressiona verificar isto mesmo, entre tanta notícia que se dá e recebe, entre tantas palavras que se dizem, entre tantas mensagens que se trocam. Como se nunca conseguíssemos esgotar o anseio mais profundo, que não só mantemos, mas sobretudo nos mantém a nós. Ser realmente humano é não desistir do divino e o destino da terra é finalmente o céu.
Os antigos cristãos colocaram nesta altura a celebração do nascimento de Jesus, certamente por coincidir com o solstício do Inverno, quando os dias recomeçam a crescer. Mas a razão do que sentimos e esperamos é bem maior do que o simples calendário. Ou, se quisermos, resulta da absorção do calendário, que passou a marcar um tempo interior e definitivo. O de um solstício absoluto, que não decresce nunca.
Terá sombras, certamente, como as que nos podem obscurecer o mundo ou a alma. E não faltaram nem faltam, físicas ou morais, no pequeno mundo de cada um e no grande mundo de nós todos, pessoas, países e a terra inteira. Aí mesmo, onde tanto contrastam promessas e desenganos, opulências de uns tantos e misérias de multidões, infidelidades próprias e alheias, graves contradições do que devíamos ser.
Sombras sim e muitas. E, no entanto, o Natal persiste como promessa, como possibilidade de ser doutra maneira, da melhor maneira. Nas sociedades a que o anúncio chegou, o seu bom espírito manifesta-se e muito para além dos próprios crentes e entre crentes de vários credos.
O nascimento de Cristo suscita-nos o renascimento do mundo, como uma criança que nasce, para crescer sempre e se projetar muito além. As famílias reencontram-se, cresce a atenção aos outros, os gestos solidários aumentam. Por isso se diz que “o Natal havia de ser todos os dias”. Como realmente pode ser.
Pode ser, desde que lhe demos o lugar devido, como acontecimento e significado. O Evangelho refere que Jesus nasceu numa manjedoura, porque não havia lugar na hospedaria. Continua a ser este o verdadeiro problema, o de não haver lugar. Não há lugar para Jesus quando não há lugar para os outros, com quem Ele se identifica. Se quisermos uma linguagem mais “teológica”, diremos que os outros ganham, no Natal de Jesus que em cada um se alarga, uma densidade absoluta, indispensável e irrepetível. Diremos que só dá pelo Natal quem o acolhe nos outros, muito especialmente quando são pobres e frágeis, como o foi Jesus menino.
Não precisamos de enfeitar muito os presépios que fazemos, pois o encontramos no leito de quem está enfermo, no lar de quem está só, na rua dos que não têm abrigo, nas fronteiras dos procuram melhor vida, nas prisões físicas ou morais em que a vida encerra a tantos.
Há dois mil anos o presépio era aquela manjedoura... Infelizmente, muito infelizmente mesmo, continua a não haver lugar para todos na grande hospedaria que o mundo podia realmente ser. Se o espírito natalício nos é dado, se a esperança renasce nestes dias, se desejamos um Natal continuado, façamos então doutra maneira e demos-lhe agora mais lugar. Lugar nas nossas cidades, para melhores condições dos que as habitam, com casas apropriadas para viverem famílias e conviverem gerações. Cidades certamente enriquecidas pelos que as visitam, mas sem dispensar os que nelas moram e são afinal o que têm de melhor para oferecer.
Se aquela criança tivesse nascido na hospedaria, onde tanta gente se albergava por aqueles dias, o acontecimento seria decerto mais notório. Assim o adivinharam os construtores de presépios, que foram juntando mais e mais figuras às de Jesus, Maria e José, às dos pastores que acorreram ou dos magos que chegaram depois. Essas inúmeras figuras acrescentadas indicam-nos o que o Natal podia ter sido então e sobretudo o que ele deve ser agora, como acontecimento total e para todos.
É urgente que o Natal aconteça na grande hospedaria do mundo. Ainda que continue a ser humilde, pois esse é o modo habitual de Deus acontecer entre nós.
Só assim o encontraremos de vez. De tudo quanto é imponente, mesmo que por momentos nos ofusque, acabamos por fugir. Submissão não é conversão. Os crentes pressentem o poder criador de Deus como algo que vem de dentro, um infinitamente pequeno que faz crescer a vida em tudo e em todos, de cada um para todos. Por isso escreveu Santo Agostinho que «Deus nos é mais íntimo do que o nosso próprio íntimo», ainda que nos seja infinitamente superior. Revemos isso mesmo naquele Jesus que nasceu tão pequeno, cresceu tão periférico, morreu entre outros condenados e desde há dois mil anos não deixa de nos atrair, religiosa e culturalmente também.
O Natal enternece e comove porque acontece como semente lançada no lugar a que chamamos “coração”. E assim se faz coração do mundo, melhor sentido entre os pequenos – os que têm espírito de pobre e são os primeiros no Reino anunciado. Porque Deus é humilde, ao ponto de crescer entre nós como Jesus nasceu e cresceu.
Esta é a verdade que cada Natal nos propõe de dentro. Não a procuremos por fora, em festas sem encontro dos outros, em presentes que disfarçam a nossa ausência e decorações vazias de sentido. Não deixemos que o Menino continue a nascer numa manjedoura por não haver lugar na hospedaria. Na única hospedaria que pode conter a sua incomensurável pequenez – e que é o nosso coração.
A grandeza das coisas pequenas é afinal a de cada ser humano, de quem Deus se abeira e onde Deus nos espera, na atenção concreta que lhe dermos, no gesto que agora mais urja, na companhia realmente feita.Façamo-lo já, na celebração em que todos estamos. Façamo-lo logo, onde ela há de continuar, no testemunho que dermos. Exercitemos hoje o Natal de todos os dias.
Sé de Lisboa, 24-25 de dezembro de 2018
+ Manuel, Cardeal-Patriarca
Em cada Natal algo de novo acontece, começando em nós próprios e antes de mais como expetativa. Seja o que for a vida, mais fácil ou mais sofrida, há como que um suplemento de alma para o que possa acontecer de bom e de belo. Em nós, à nossa volta e no mundo inteiro.
Impressiona verificar isto mesmo, entre tanta notícia que se dá e recebe, entre tantas palavras que se dizem, entre tantas mensagens que se trocam. Como se nunca conseguíssemos esgotar o anseio mais profundo, que não só mantemos, mas sobretudo nos mantém a nós. Ser realmente humano é não desistir do divino e o destino da terra é finalmente o céu.
Os antigos cristãos colocaram nesta altura a celebração do nascimento de Jesus, certamente por coincidir com o solstício do Inverno, quando os dias recomeçam a crescer. Mas a razão do que sentimos e esperamos é bem maior do que o simples calendário. Ou, se quisermos, resulta da absorção do calendário, que passou a marcar um tempo interior e definitivo. O de um solstício absoluto, que não decresce nunca.
Terá sombras, certamente, como as que nos podem obscurecer o mundo ou a alma. E não faltaram nem faltam, físicas ou morais, no pequeno mundo de cada um e no grande mundo de nós todos, pessoas, países e a terra inteira. Aí mesmo, onde tanto contrastam promessas e desenganos, opulências de uns tantos e misérias de multidões, infidelidades próprias e alheias, graves contradições do que devíamos ser.
Sombras sim e muitas. E, no entanto, o Natal persiste como promessa, como possibilidade de ser doutra maneira, da melhor maneira. Nas sociedades a que o anúncio chegou, o seu bom espírito manifesta-se e muito para além dos próprios crentes e entre crentes de vários credos.
O nascimento de Cristo suscita-nos o renascimento do mundo, como uma criança que nasce, para crescer sempre e se projetar muito além. As famílias reencontram-se, cresce a atenção aos outros, os gestos solidários aumentam. Por isso se diz que “o Natal havia de ser todos os dias”. Como realmente pode ser.
Pode ser, desde que lhe demos o lugar devido, como acontecimento e significado. O Evangelho refere que Jesus nasceu numa manjedoura, porque não havia lugar na hospedaria. Continua a ser este o verdadeiro problema, o de não haver lugar. Não há lugar para Jesus quando não há lugar para os outros, com quem Ele se identifica. Se quisermos uma linguagem mais “teológica”, diremos que os outros ganham, no Natal de Jesus que em cada um se alarga, uma densidade absoluta, indispensável e irrepetível. Diremos que só dá pelo Natal quem o acolhe nos outros, muito especialmente quando são pobres e frágeis, como o foi Jesus menino.
Não precisamos de enfeitar muito os presépios que fazemos, pois o encontramos no leito de quem está enfermo, no lar de quem está só, na rua dos que não têm abrigo, nas fronteiras dos procuram melhor vida, nas prisões físicas ou morais em que a vida encerra a tantos.
Há dois mil anos o presépio era aquela manjedoura... Infelizmente, muito infelizmente mesmo, continua a não haver lugar para todos na grande hospedaria que o mundo podia realmente ser. Se o espírito natalício nos é dado, se a esperança renasce nestes dias, se desejamos um Natal continuado, façamos então doutra maneira e demos-lhe agora mais lugar. Lugar nas nossas cidades, para melhores condições dos que as habitam, com casas apropriadas para viverem famílias e conviverem gerações. Cidades certamente enriquecidas pelos que as visitam, mas sem dispensar os que nelas moram e são afinal o que têm de melhor para oferecer.
Se aquela criança tivesse nascido na hospedaria, onde tanta gente se albergava por aqueles dias, o acontecimento seria decerto mais notório. Assim o adivinharam os construtores de presépios, que foram juntando mais e mais figuras às de Jesus, Maria e José, às dos pastores que acorreram ou dos magos que chegaram depois. Essas inúmeras figuras acrescentadas indicam-nos o que o Natal podia ter sido então e sobretudo o que ele deve ser agora, como acontecimento total e para todos.
É urgente que o Natal aconteça na grande hospedaria do mundo. Ainda que continue a ser humilde, pois esse é o modo habitual de Deus acontecer entre nós.
Só assim o encontraremos de vez. De tudo quanto é imponente, mesmo que por momentos nos ofusque, acabamos por fugir. Submissão não é conversão. Os crentes pressentem o poder criador de Deus como algo que vem de dentro, um infinitamente pequeno que faz crescer a vida em tudo e em todos, de cada um para todos. Por isso escreveu Santo Agostinho que «Deus nos é mais íntimo do que o nosso próprio íntimo», ainda que nos seja infinitamente superior. Revemos isso mesmo naquele Jesus que nasceu tão pequeno, cresceu tão periférico, morreu entre outros condenados e desde há dois mil anos não deixa de nos atrair, religiosa e culturalmente também.
O Natal enternece e comove porque acontece como semente lançada no lugar a que chamamos “coração”. E assim se faz coração do mundo, melhor sentido entre os pequenos – os que têm espírito de pobre e são os primeiros no Reino anunciado. Porque Deus é humilde, ao ponto de crescer entre nós como Jesus nasceu e cresceu.
Esta é a verdade que cada Natal nos propõe de dentro. Não a procuremos por fora, em festas sem encontro dos outros, em presentes que disfarçam a nossa ausência e decorações vazias de sentido. Não deixemos que o Menino continue a nascer numa manjedoura por não haver lugar na hospedaria. Na única hospedaria que pode conter a sua incomensurável pequenez – e que é o nosso coração.
A grandeza das coisas pequenas é afinal a de cada ser humano, de quem Deus se abeira e onde Deus nos espera, na atenção concreta que lhe dermos, no gesto que agora mais urja, na companhia realmente feita.Façamo-lo já, na celebração em que todos estamos. Façamo-lo logo, onde ela há de continuar, no testemunho que dermos. Exercitemos hoje o Natal de todos os dias.
Sé de Lisboa, 24-25 de dezembro de 2018
+ Manuel, Cardeal-Patriarca
Patriarcado de Lisboa
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