04 outubro, 2017

Homilia no Congresso Internacional sobre a 'Ratio Fundamentalis'



Iluminar a Cruz, que nos ilumina a todos

Homilia no Congresso Internacional sobre a Ratio Fundamentalis Institutionis Sacerdotalis, Castel Gandolfo, 4 de outubro de 2017

Irmãos caríssimos
Começamos o nosso encontro na memória de São Francisco de Assis. Feliz coincidência, pois aprofundaremos o tema da formação sacerdotal, à luz da nova Ratio Fundamentalis Institutionis Sacerdotalis inspirados por quem tanto venerou os sacerdotes e o ministério sacerdotal.
Conta Tomás de Celano: «Animado dos mesmos sentimentos de respeito para com toda a hierarquia da Igreja, incluindo os seus mais humildes representantes, [Francisco] com frequência distribuía paramentos sagrados pelos sacerdotes pobres. Antes mesmo de assumir o mandato que a Sé apostólica lhe confiou, já ele professava integralmente a fé católica e testemunhava a maior veneração pelos ministros de Deus…» (Vida Segunda, 8).
Como sabemos, a conversão de Francisco é eminentemente cristológica e concentrada na cruz do Senhor. A veneração pelos sacerdotes inclui-se aqui, enquanto servem o mistério da cruz. Podemos ler outro trecho, muito claro e sugestivo a este respeito: «Ao passar perto da igreja de São Damião, uma voz interior impeliu-o a entrar e orar. Tendo entrado, começou a rezar com fervor diante da imagem de Cristo Crucificado, a qual lhe falou com doçura e benevolência: “Francisco, não vês a minha casa em ruínas? Vai e repara-ma”. A tremer e cheio de assombro, respondeu: “Vou fazê-lo prontamente, Senhor”.  […] À saída da igreja, encontrou um padre sentado junto da porta. Metendo a mão na bolsa, ofereceu-lhe dinheiro e disse-lhe: “Peço-lhe, senhor, que compre azeite para fazer arder, sem interrupção, uma lâmpada diante do Crucifixo”» (Legenda dos Três Companheiros, 13).
Tomemos este trecho como definição sacerdotal também, ao serviço da cruz do Senhor. Para Francisco, a cruz tornou-se paixão e vida, no sentido pleno que estas palavras ganham em Cristo. Assim prossegue a Legenda: «A partir desse dia, o coração de Francisco ficou tão ferido e profundamente comovido com a lembrança da Paixão do Senhor que, durante toda a vida, guardou na alma a memória das Chagas do Senhor Jesus. Isto ficou bem patente mais tarde, quando os Estigmas do Salvador se reproduziram no corpo de Francisco…» (ibidem, 14).  
Fazer arder, sem interrupção, uma lâmpada diante do Crucifixo, foi o que Francisco pediu ao sacerdote de São Damião. Assim deverá acontecer connosco, os sacerdotes deste tempo. Significa que, por palavras e por obras, por tudo quanto somos e fazemos, temos de manter viva e luminosa, diante de todos, a cruz do Senhor, a sua mensagem e os seus frutos.
Reparemos ainda que Francisco pediu o que ele próprio experimentava intensamente. Nunca mais teve outra luz e paixão, nunca mais quis outra coisa senão identificar-se de corpo e alma com a cruz do Senhor. Com os sentimentos de Cristo, inteiramente manifestados na sua cruz redentora.


Quando a nova Ratio apresenta as quatro etapas da formação – propedêutica, discipulado, configuração e síntese vocacional – não deixa de acrescentar que se é sempre discípulo, aspirando a configurar-se a Cristo no ministério pastoral (cf. Ratio, 57).    
Este critério cristológico é hoje de particular urgência. Assinalar a presença sacramental de Cristo Pastor – também Sacerdote e Cabeça - no meio dos seus, é o verdadeiro sentido da vocação ao sacerdócio ministerial e a única razão do seu exercício.
Para tal, requer-se uma adesão total e exclusiva a Cristo – e n’Ele ao Pai, no Espírito -, que se torne sinal e estímulo para os outros cristãos e interpelação forte para o mundo em geral. Isso mesmo que nos é dito na Ordenação Sacerdotal: «Recebe a oferenda do povo santo para a apresentares a Deus. Toma a consciência do que virás a realizar, e conforma a tua vida com o mistério da cruz do Senhor». Muito mais do que um momento ritual, é o programa sacerdotal duma vida inteira. O mistério que nos ilumina e a luz que mantemos viva, assinalando a cruz redentora do Senhor Jesus – como Francisco pediu ao padre de São Damião que fizesse sempre.
Assim ouvimos São Paulo, escrevendo aos gálatas: «Longe de mim gloriar-me a não ser na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo […]. Doravante ninguém me importune, porque eu trago no meu corpo os estigmas de Jesus». O motivo da epístola é este mesmo, como motivara Paulo. Nada do que fora antes lhe interessava mais, depois daquela grande luz que o deslumbrara na estrada de Damasco, a de Cristo crucificado e ressuscitado.
Anteriormente vivera de outras práticas e outras seguranças, como os gálatas eram tentados a fazer também. Agora queria viver apenas a vida do Senhor, como lhe fora dada na cruz e como o repassava, fisicamente até. Graça de Cristo e correspondência de Paulo, coincidência perfeita de sentimento e intenção. Assim escreveu aos colossenses: «Agora, alegro-me nos sofrimentos que suporto por vós e completo na minha carne o que falta às tribulações de Cristo, pelo seu Corpo, que é a Igreja» (Cl 1, 24).  
Mesmo em termos de pastoral vocacional, creio que menos do que isto não servirá nos tempos que correm. Estamos tão distraídos e atordoados por tantas sugestões e imagens, que só figuras concretas, densas e definidas podem prender a atenção e despertar o espírito. Em especial para os jovens, que só serão motivados por experiências fortes de radical testemunho. Foi assim com Jesus no seu tempo, que arduamente viveu o seu caminho e convenceu os discípulos como Crucificado-Ressuscitado. Hoje o padre convencerá ou confirmará os outros, pela vivência da Páscoa do Senhor – a Páscoa que anunciará, celebrará e testemunhará.

Grande júbilo preencheu Jesus naquele dia, como ouvimos no Evangelho: «Eu te bendigo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondestes estas verdades aos sábios e inteligentes e as revelastes aos pequeninos…» Ainda aqui, a alegria do Pobrezinho de Assis coincidirá com a do seu Senhor.
Na verdade, assim foi com Francisco, cuja autenticidade evangélica se impunha por si: «A sua palavra era como fogo ardente que penetrava os recessos do coração e maravilhava todos os ouvintes, precisamente porque não fazia alarde de retórica humana, mas apenas espalhava os perfumes das verdades reveladas por Deus. […] Falava com a mesma audácia a pessoas de categoria e a pessoas modestas; com a mesma disposição se dirigia a pequenos auditórios e a grandes multidões. Homens e mulheres, jovens e pessoas idosas, corriam a ver este homem novo enviado do Céu» (Legenda Maior, XII, 7-8).
Isto mesmo se há de esperar dos sacerdotes que somos ou formamos, em termos de anúncio vivo e pregação autêntica da Palavra de Deus ao povo que a acolherá decerto, hoje como então. Trata-se, em suma, de configuração a Cristo, único modo de corresponder à expetativa profunda de todos, começando pelos “pequeninos” que principalmente O esperam e logo O acolhem.
Assim o indica também a Ratio que estudaremos nestes dias: Pretende que formemos pastores apaixonados pelo Mestre que, como Ele, vivam entre as ovelhas e lhes assinalem a misericórdia divina. Uma formação integral, compreendida como contínua «configuração a Cristo» (Ratio, introdução, 3).
- São Francisco nos acompanhe e inspire, tão dedicado que foi aos sacerdotes do seu tempo!

4 de outubro de 2017, memória de São Francisco de Assis

+ Manuel Clemente, Cardeal-Patriarca de Lisboa

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