A diaconia da verdade é a diaconia da caridade
Caríssimos irmãos aqui presentes, caríssimos ordinandos de diácono
Ainda a começar o novo ano pastoral, particularmente dedicado à prática sociocaritativa, na receção da nossa Constituição Sinodal de Lisboa, ouvimos atentamente a Palavra de Deus deste Domingo, que mais coincidente não podia ser com este momento celebrativo.
Ainda a começar o novo ano pastoral, particularmente dedicado à prática sociocaritativa, na receção da nossa Constituição Sinodal de Lisboa, ouvimos atentamente a Palavra de Deus deste Domingo, que mais coincidente não podia ser com este momento celebrativo.
Também para respondermos a
perguntas instantes: - O que somos como Igreja de Cristo? O que
oferecemos como próprio nas atuais circunstâncias? De que modo e com que
modo o havemos de fazer?
Neste fim de verão de 2020, vivemos o
que geralmente se vive em Portugal, face à pandemia que persiste.
Continuação ou retoma do trabalho, para quem o tem, ou procura dele para
quem o perdeu ou nunca teve. Início do novo ano escolar, com as
cautelas necessárias para docentes, discentes e todos os envolvidos no
sistema de ensino. Cuidados de saúde e proteção dos mais frágeis nos
hospitais e em todos os equipamentos a eles destinados do setor público,
privado ou social… Em geral e caso a caso, o desafio é grande,
pedindo-nos a todos participação, criatividade e empenho. Saúdo quantos,
anónimos ou conhecidos, nos têm mantido como sociedade verdadeiramente
solidária.
Em todas estas frentes se encontra a Igreja, porque em
todas elas se encontram cristãos, como cidadãos entre cidadãos. Não
podia ser doutro modo e graças a Deus que é assim.
Porém – e
voltando às perguntas com que comecei – o que somos e oferecemos como
próprio? A resposta, tão adequada numa ordenação diaconal, é a que o
Papa Francisco deu em alocução recente, resumindo-se numa palavra:
caridade. Explicou o Papa que a caridade, além da natural filantropia,
repassa-nos dos sentimentos de Cristo, fazendo amar como Ele amou e
amando-O também naqueles em quem nos espera, com particular atenção aos
mais pobres, de tantas pobrezas que subsistem.
Compreendemos assim
que a caridade - como a fé e a esperança – seja uma virtude teologal,
modo de dizer uma força invencível que tem em Deus a sua fonte e o seu
fim. Por isso São Paulo lembrou que é o Espírito Santo que a derrama nos
nossos corações (cf. Rm 5, 5). E, sendo verdade que o Espírito
Santo sopra onde quer, bem será que tal se experimente na Igreja que
Ele mesmo reúne em torno de Cristo, para glória de Deus Pai. E assim é.
Também e de facto.
No trecho há pouco ouvido, São Paulo
oferece-nos uma das suas magníficas sínteses teológicas e existenciais
sobre o que nos define como discípulos de Cristo: «Nenhum de nós vive
para si mesmo e nenhum de nós morre para si mesmo. Se vivemos, vivemos
para o Senhor e se morremos, morremos para o Senhor». Modo de dizer que
Cristo é para nós a realidade primeira e definitiva em que o próprio
Deus se oferece e em que nos oferecemos a Deus, nada havendo que nos
distraia deste consentimento total.
O que fazemos em Cristo, de
Deus para Deus, seja em que circunstância for e em relação a quem for, é
outro modo de referir a caridade sentida e operativa. É a alma da
Igreja e o que ela oferece ao mundo. Começou em Cristo e prolonga-se em
quem vive do seu Espírito.
A restauração do diaconado como grau
próprio e permanente do sacramento da Ordem pretendeu sublinhar a
prevalência da caridade na vida da Igreja e no seu serviço ao mundo. Com
este critério fostes certamente escolhidos, caríssimos ordinandos, e
com esta missão vos realizareis agora.
Amar como Cristo amou, ou como Deus nos amou em Cristo, traduz-se no Evangelho de hoje em perdoar como Deus nos perdoou.
Na verdade, o perdão evangélico não significa esquecimento do pecado,
mas recriação do pecador. Por isso é da ordem da caridade, ganhando a
amplidão e o efeito que só Deus pode garantir.
«Não até sete
vezes, mas até setenta vezes sete», disse Jesus a Pedro e repete-o agora
a nós. Trata-se de renovar profundamente as vidas com o poder recriador
de Deus, que não desiste de nenhuma das suas criaturas. Jesus preenche o
Evangelho com atitudes e parábolas neste sentido pleno, concluído na
cruz, pedindo perdão para os mesmos que o crucificavam. Há quem
considere ser precisamente o amor dos inimigos a melhor definição do
cristianismo. Também o pedimos na oração que o Senhor nos ensinou e
assim – unicamente assim – se quebra a espiral de tantas violências do
nosso pequeno ou grande mundo.
Sabemos não ser fácil, mas
aceitemos ser possível. Reconheçamos também não haver alternativa, se
quisermos prevenir grandes males. Temos aí a história mundial, que nunca
resolveu nenhum conflito com outro conflito, nem manteve duradouramente
a paz sem perdão mútuo e verdadeiro.
Cada um é donde nasceu e de
quem nasceu, movendo-se por sentimentos de pertença que em si mesmos
são bons e belos. Mas os particularismos de nação, raça ou convicção,
quando perdem o horizonte da humanidade inteira e do mundo em geral,
acabam por destruir isso mesmo que cada um transporta de bom e só
universalmente renderia. – Quanto desperdício humano, além de material e
ecológico, se tem acumulado por falta de vontade em nos reconstruirmos
mutuamente!
E não olhemos só para longe, quando às vezes a
reconstrução deveria começar bem perto, como nas famílias e comunidades.
Caríssimos ordinandos, contamos convosco e com os vossos colegas
diáconos, para serdes, com a graça especial do sacramento recebido,
obreiros constantes da verdadeira paz.
Ouvimos também há pouco, no trecho de Ben-Sirá: «Recorda os mandamentos e não tenhas rancor ao próximo».
Outro modo de dizer que, quem se recorda do Deus de todos não fecha o
coração a ninguém, não valendo confundir razão de queixa com motivo de
rancor. As discordâncias resolvem-se com o diálogo, expondo e ouvindo de
parte a parte, com vontade forte de chegar a entendimentos possíveis,
passo a passo.
Em sociedades de “comunicação” intensa e muito
potenciada, como é a nossa, torna-se difícil escutar os outros, perdidos
no ruído geral. Riposta-se ao que não se ouviu nem leu e as reações
imediatas tomam o lugar da reflexão ponderada, quase impossível de fazer
e em sequer aprendida. Não admira que sentimentos desgarrados,
primeiras impressões e ligações grupais acabem por ocupar medias e
redes, originando ou agravando conflitos sobre conflitos, que muito
distraem e nada constroem.
Não raro atingem-se pontos fulcrais,
atinentes à vida no seu arco completo, à educação e à cultura, à justa
convergência família – escola, ou à realidade política nacional e
internacional. Os debates fazem-se para ganhar uma parte e não para nos
ganharmos todos mais à frente, escutando com atenção as razões de cada
um. A própria linguagem se torna por vezes tão precipitada como a
correnteza das ideias feitas - e muito indisponíveis para se refazerem,
sendo o caso.
Nem sempre é assim, felizmente, ainda que os maus
exemplos tenham mais palco do que os bons. Mas para os cristãos, como
para tantos homens e mulheres de boa vontade, é urgente e prioritário
reproduzir a atitude de Cristo, ouvindo para propor e perdoando para
reconstruir.
– Contamos convosco, caríssimos ordinandos, porque a diaconia da verdade é a diaconia da caridade!
Sé de Lisboa, 13 de setembro de 2020
+ Manuel, Cardeal-Patriarca
Patriarcado de Lisboa
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