A luz divina nos transfigure agora
Por vezes, o mais recorrente não é o mais apercebido. Pode acontecer também com o Natal, enquanto época do ano, habitual apenas. É habitual o calendário, mas não devemos estar habituados nós, antes disponíveis e atentos à novidade que traz. Se assim não fosse, também não seria divino, de Deus que nos surpreende sempre. É esta a sua marca autêntica.
Surpresa significa diferença. Deixar-se surpreender é o princípio da conversão. Como luz que subitamente desponta, para contrastar o dia antecipado com a noite onde estávamos. Importa muito aceitar tal contraste, irredutível.
Celebra Natal quem teve Advento. O roxo litúrgico dá lugar ao branco, como a conversão à festa. Doutro modo não poderia ser. Não vale muito termos as ruas artificialmente iluminadas, se não tivermos a alma luminosa. Nem valem montras atrativas de mil coisas, se não tivermos ganho a única qualidade que importa. Não valem os presentes só por si, sem nos tornarmos nós presentes aos outros: atentos, prestáveis e realmente próximos.
Nenhuma luz de fora nos dará o Natal de Cristo. Pode até distrair-nos do essencial, da conversão à luz divina que desponta nas boas consciências. Na consciência de quem se reconhece e diz como aquele cego do Evangelho: «Senhor, fazei que eu veja!» Para O seguir depois e sempre.
Anoiteçamos nós, para que tudo amanheça. Não é mero acaso estarmos aqui de noite, quase à antiga hora do “cantar do galo”. A Liturgia do Advento, com os seus hinos, toca-nos sempre e muito, em especial neste ponto, da luz ansiada. Sucedem-se os versos, quase decorados, que sempre nos despertam: «Não demoreis, ó Salvador do mundo / Erguei-vos, ó divina claridade / Ó Sol do novo dia, Luz, Verdade / Vencei da noite o sono tão profundo». Ou ainda estes: «Uma voz que vem de longe / Faz estremecer a noite / Prometendo a madrugada / Que anuncia a luz de Cristo». E igualmente: «Vós que sois luz infinita / Vinde já ao nosso mundo /Iluminar a cegueira / Para vermos o caminho». Ouvimos há pouco ao Profeta: «O povo que andava nas trevas viu uma grande luz; para aqueles que habitavam nas sombras da morte uma luz começou a brilhar». Quando pela primeira vez o disse, dirigia-se a um reino perdido, para reavê-lo. Mas agora refere-nos a nós, se nos deixarmos irromper das trevas que tivermos. Das trevas em que muito infelizmente podemos permanecer. Ou distrair, tomando por luz um qualquer fogo-fátuo. Não faltam, infelizmente, esses clarões rápidos e vazios.
Quando a Liturgia não descura o ato penitencial, íntimo, sincero e verdadeiro, coloca-nos no ponto certo, em penitência ativa. Reconhecemo-nos trevas e buscamos luz. Nesse mesmo ponto acertamos com Deus, que aí mesmo nos espera e ilumina.
Realiza-se a profecia e vislumbra-se o Natal. Ganham realismo as palavras que também ouvimos, como grandeza que nasce pequena, quando à nossa humilhação corresponde a humildade de Deus: «Porque um menino nasceu para nós, um filho nos foi dado. Tem o poder sobre os ombros e será chamado “Conselheiro admirável, Deus forte, Pai eterno, Príncipe da paz”».
Assim aconteceu no Natal de Cristo: «Havia naquela região uns pastores que viviam nos campos e guardavam de noite os rebanhos. O Anjo do Senhor aproximou-se deles e a glória do Senhor cercou-os de luz…» (Lc 2, 1 ss). Reparemos que era noite, quando o Anjo os envolveu em luz. Ficaram naturalmente assustados, por serem sobrenaturalmente surpreendidos.
Trata-se da mesma sucessão, litúrgica também, como há pouco passámos do ato penitencial à exultação do Glória, que ainda nos ecoa por dentro, como foi sobre o presépio de Belém. E eles foram, os pastores, como nós havemos de ir agora, convertidos das trevas à luz, da noite escura ao amanhecer do dia. Sempre e só assim, numa cadência realmente natalícia.
Pois se trata disso mesmo, como ouvimos ao Apóstolo: «Manifestou-se a graça de Deus, fonte de salvação para todos os homens. Ela nos ensina a renunciar à impiedade e aos desejos mundanos para vivermos, no tempo presente, com temperança, justiça e piedade aguardando a ditosa esperança e a manifestação da glória do nosso grande Deus e Salvador Jesus Cristo».
A presença de Cristo, ressuscitado agora, é um “Natal” permanente a que devemos acorrer, sem adiar a conversão. – Porque havíamos de retardar em nós a glória que se manifesta n’Ele? – Porque havíamos de demorar aos outros o reflexo da luz de Cristo, como tantos no-la refletem também – os que realmente são «como astros no mundo», no expressivo dizer de São Paulo (cf. Fl 2, 15).
Sim, há muito Natal neste mundo, em muitas vidas que dissipam trevas com a luz de Cristo. Somemo-nos nós, incidindo luminosamente nas famílias, nas comunidades, nos vários setores da vida social em que o Evangelho connosco se fará vida.
Porque as trevas persistem, impedindo-nos de ver os outros e a Deus nos outros, por vezes bem próximos e a reclamar atenção e auxílio – como o Menino do Presépio requeria para si. Trevas não faltam, quando também nos ensombram notícias de perseguição aos cristãos e a minorias, quase genocídio por vezes, perante tanta indiferença e contradição com direitos consignados e boas intenções propaladas. Trevas não faltam, quando a própria natureza se contamina e ofusca – ela que, em si mesma, proclama a glória de Deus e o seu poder criador. Trevas não faltam… Reconheçamo-las então. Deixemos que a luz divina nos ilumine em cheio e nos transfigure a nós. Há muita gente à espera dessa luz, do Natal que lhe devemos. Rezemos ainda mais convictamente nas próximas Laudes estes versículos do Benedictus: «… graças ao coração misericordioso do nosso Deus / Que das alturas nos visita como sol nascente / Para iluminar os que jazem nas trevas e na sombra da morte / E dirigir os nossos passos no caminho da paz».
O Natal está divinamente garantido, como luz que rebrilha. Dissipemos as nuvens que em nós o ofusquem. - Desejemos aos outros o “feliz Natal” que lhes daremos!
Sé de Lisboa, 25 de dezembro de 2019
+ Manuel, Cardeal-Patriarca
Por vezes, o mais recorrente não é o mais apercebido. Pode acontecer também com o Natal, enquanto época do ano, habitual apenas. É habitual o calendário, mas não devemos estar habituados nós, antes disponíveis e atentos à novidade que traz. Se assim não fosse, também não seria divino, de Deus que nos surpreende sempre. É esta a sua marca autêntica.
Surpresa significa diferença. Deixar-se surpreender é o princípio da conversão. Como luz que subitamente desponta, para contrastar o dia antecipado com a noite onde estávamos. Importa muito aceitar tal contraste, irredutível.
Celebra Natal quem teve Advento. O roxo litúrgico dá lugar ao branco, como a conversão à festa. Doutro modo não poderia ser. Não vale muito termos as ruas artificialmente iluminadas, se não tivermos a alma luminosa. Nem valem montras atrativas de mil coisas, se não tivermos ganho a única qualidade que importa. Não valem os presentes só por si, sem nos tornarmos nós presentes aos outros: atentos, prestáveis e realmente próximos.
Nenhuma luz de fora nos dará o Natal de Cristo. Pode até distrair-nos do essencial, da conversão à luz divina que desponta nas boas consciências. Na consciência de quem se reconhece e diz como aquele cego do Evangelho: «Senhor, fazei que eu veja!» Para O seguir depois e sempre.
Anoiteçamos nós, para que tudo amanheça. Não é mero acaso estarmos aqui de noite, quase à antiga hora do “cantar do galo”. A Liturgia do Advento, com os seus hinos, toca-nos sempre e muito, em especial neste ponto, da luz ansiada. Sucedem-se os versos, quase decorados, que sempre nos despertam: «Não demoreis, ó Salvador do mundo / Erguei-vos, ó divina claridade / Ó Sol do novo dia, Luz, Verdade / Vencei da noite o sono tão profundo». Ou ainda estes: «Uma voz que vem de longe / Faz estremecer a noite / Prometendo a madrugada / Que anuncia a luz de Cristo». E igualmente: «Vós que sois luz infinita / Vinde já ao nosso mundo /Iluminar a cegueira / Para vermos o caminho». Ouvimos há pouco ao Profeta: «O povo que andava nas trevas viu uma grande luz; para aqueles que habitavam nas sombras da morte uma luz começou a brilhar». Quando pela primeira vez o disse, dirigia-se a um reino perdido, para reavê-lo. Mas agora refere-nos a nós, se nos deixarmos irromper das trevas que tivermos. Das trevas em que muito infelizmente podemos permanecer. Ou distrair, tomando por luz um qualquer fogo-fátuo. Não faltam, infelizmente, esses clarões rápidos e vazios.
Quando a Liturgia não descura o ato penitencial, íntimo, sincero e verdadeiro, coloca-nos no ponto certo, em penitência ativa. Reconhecemo-nos trevas e buscamos luz. Nesse mesmo ponto acertamos com Deus, que aí mesmo nos espera e ilumina.
Realiza-se a profecia e vislumbra-se o Natal. Ganham realismo as palavras que também ouvimos, como grandeza que nasce pequena, quando à nossa humilhação corresponde a humildade de Deus: «Porque um menino nasceu para nós, um filho nos foi dado. Tem o poder sobre os ombros e será chamado “Conselheiro admirável, Deus forte, Pai eterno, Príncipe da paz”».
Assim aconteceu no Natal de Cristo: «Havia naquela região uns pastores que viviam nos campos e guardavam de noite os rebanhos. O Anjo do Senhor aproximou-se deles e a glória do Senhor cercou-os de luz…» (Lc 2, 1 ss). Reparemos que era noite, quando o Anjo os envolveu em luz. Ficaram naturalmente assustados, por serem sobrenaturalmente surpreendidos.
Trata-se da mesma sucessão, litúrgica também, como há pouco passámos do ato penitencial à exultação do Glória, que ainda nos ecoa por dentro, como foi sobre o presépio de Belém. E eles foram, os pastores, como nós havemos de ir agora, convertidos das trevas à luz, da noite escura ao amanhecer do dia. Sempre e só assim, numa cadência realmente natalícia.
Pois se trata disso mesmo, como ouvimos ao Apóstolo: «Manifestou-se a graça de Deus, fonte de salvação para todos os homens. Ela nos ensina a renunciar à impiedade e aos desejos mundanos para vivermos, no tempo presente, com temperança, justiça e piedade aguardando a ditosa esperança e a manifestação da glória do nosso grande Deus e Salvador Jesus Cristo».
A presença de Cristo, ressuscitado agora, é um “Natal” permanente a que devemos acorrer, sem adiar a conversão. – Porque havíamos de retardar em nós a glória que se manifesta n’Ele? – Porque havíamos de demorar aos outros o reflexo da luz de Cristo, como tantos no-la refletem também – os que realmente são «como astros no mundo», no expressivo dizer de São Paulo (cf. Fl 2, 15).
Sim, há muito Natal neste mundo, em muitas vidas que dissipam trevas com a luz de Cristo. Somemo-nos nós, incidindo luminosamente nas famílias, nas comunidades, nos vários setores da vida social em que o Evangelho connosco se fará vida.
Porque as trevas persistem, impedindo-nos de ver os outros e a Deus nos outros, por vezes bem próximos e a reclamar atenção e auxílio – como o Menino do Presépio requeria para si. Trevas não faltam, quando também nos ensombram notícias de perseguição aos cristãos e a minorias, quase genocídio por vezes, perante tanta indiferença e contradição com direitos consignados e boas intenções propaladas. Trevas não faltam, quando a própria natureza se contamina e ofusca – ela que, em si mesma, proclama a glória de Deus e o seu poder criador. Trevas não faltam… Reconheçamo-las então. Deixemos que a luz divina nos ilumine em cheio e nos transfigure a nós. Há muita gente à espera dessa luz, do Natal que lhe devemos. Rezemos ainda mais convictamente nas próximas Laudes estes versículos do Benedictus: «… graças ao coração misericordioso do nosso Deus / Que das alturas nos visita como sol nascente / Para iluminar os que jazem nas trevas e na sombra da morte / E dirigir os nossos passos no caminho da paz».
O Natal está divinamente garantido, como luz que rebrilha. Dissipemos as nuvens que em nós o ofusquem. - Desejemos aos outros o “feliz Natal” que lhes daremos!
Sé de Lisboa, 25 de dezembro de 2019
+ Manuel, Cardeal-Patriarca
Patriarcado de Lisboa
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