«Ninguém pode exigir-nos que releguemos a religião para a intimidade
secreta das pessoas, sem qualquer influência na vida social e nacional»
(Evangelii Gaudium, 183).
Esta afirmação do Papa Francisco tem de ser levada particularmente a
sério, pois não falta ainda quem reduza a fé a um sentimento individual e
mais ou menos vago, que não deveria repercutir-se em convicções firmes e
declaradas. Também subsiste alguma reação a pronunciamentos de pastores
ou instâncias eclesiais sobre pontos concretos da vida social,
económica ou política.
Uns e outros repercutem, pelo menos, sentimentos e ideias de tempos
idos e enquadráveis na altura. A redução da fé a um vago sentimento dito
religioso, que só ganharia em ficar assim, é herança de um certo
romantismo que aí mesmo se aconchegava, reagindo também aos
constrangimentos público-eclesiásticos de antanho. Ou, mais
reconditamente, de algum desprezo gnóstico pelo que acontecesse no mundo
exterior, uma vez que só importava o que ao espírito respeitasse,
entendido este como faúlha divina infelizmente encerrada na matéria do
mundo e das coisas, de que se havia de alhear e quanto mais depressa
melhor.
Por outro lado, os últimos séculos também assistiram à sucessão de
propostas de vida ou evolução social inteiramente seculares, próprias do
que se entendia como o estádio racional ou “positivo” da história, que
superasse quaisquer compreensão e determinação religiosa das coisas. Dos
vários lados do campo político teórico e prático, visou-se anular ou
reduzir a repercussão pública da confissão religiosa e remeter a fé para
o recôndito da consciência de cada um ou, mais prosaicamente, limitar a
religião à sacristia.
Vivendo onde os outros vivem e ouvindo o que os outros ouvem, não
admira que alguns cristãos acabassem por assimilar considerações deste
género, não sendo invulgar ouvirmos pessoas crentes a dizerem algo como
«eu cá tenho a minha fé», ou «isso é com a consciência de cada um»,
mesmo a propósito de pontos fundamentais e irredutíveis do credo que
aparentemente professam. Credo que, sendo pronunciado na primeira pessoa
do singular, é dito por todos como se fossemos um só: é realmente e há
de ser consequentemente a fé da Igreja.
Consideremos, no entanto, que, se tais conceitos e preconceitos
mantêm aceitação, como de facto se verifica, é porque veiculam alguma
verdade à mistura. Assim o creio também, não sendo difícil aceitar que a
retração romântica da religião ao sentimento reagia ao constrangimento
cultural das sociedades antigas, que pouco espaço de escolha deixavam ou
podiam deixar às opções individuais que dissonassem do conjunto. Eram
mundos de necessidade, que queriam acima de tudo segurança e nenhum
distúrbio duma ordem imóvel e sacralizada. Neste sentido, a
reivindicação individual da crença ou da descrença podia surgir como
expressão de liberdade e libertação.
Igualmente, o conhecimento progressivo do mundo geográfico e físico, o
avanço da ciência moderna e dos seus métodos, da natureza exterior para
a humana, tudo alargou o campo da reflexão e da ação não imediatamente
religiosas no campo vasto da sociedade e da política. Ganhou outra
consistência a dimensão espaciotemporal da realidade, essa mesma que tem
o nome de secularidade, não dando às coisas novas e correntes a
imediata resolução que tudo terá nos novíssimos, ou últimos fins do
homem.
Há tempo para a terra, antes de chegar ao céu, não em oposição mas em
cadência. Os que se mantiveram crentes podiam entender que nisto mesmo
se respeitava o ritmo religioso da criação, em que dia após dia Deus vai
criando um mundo cuja custódia confia à humanidade, sendo preciso
cumprir do primeiro ao sexto, antes de descansar ao sétimo e com o
próprio Deus. E mesmo os que perderam a fé em Deus, não deixaram de
ouvir “cantar” outros amanhãs, conseguidos ou apressados pelo
cumprimento exato de tarefas terrenas, positivamente consideradas.
Como sabemos, o Concílio Vaticano II, em cuja receção continuamos,
pronunciou-se em vários passos sobre estes tópicos, tão importantes para
nos orientarmos no mundo e na cidade dos homens.
Sobre a reivindicação individual das convicções face a pressões
externas, o Concílio chegou a uma formulação de grande equilíbrio entre
essa reivindicação justificável e a aceitação da verdade objetiva, que
não pode esperar pelo acatamento de cada um para de facto existir. Assim
o diz, na Declaração sobre a liberdade religiosa: «De acordo com a sua
dignidade, todos os homens, por serem pessoas, isto é, seres dotados de
razão e de vontade livre e por isso mesmo de responsabilidade pessoal,
são impelidos pela sua própria natureza e por obrigação moral a
procurarem a verdade, antes de mais no que se refere à religião. E têm a
obrigação de aderir à verdade conhecida e de ordenar toda a sua vida
segundo as exigências da verdade. Todavia os homens não podem satisfazer
esta obrigação de modo adequado à sua natureza, se não gozarem de
liberdade psicológica e ao mesmo tempo de imunidade de coação externa.
Portanto o direito à liberdade religiosa não se funda numa disposição
subjetiva da pessoa, mas na sua própria natureza. Por isso, o direito a
uma tal imunidade permanece também naqueles que não satisfazem a
obrigação de procurar a verdade e de aderir a ela; e o seu exercício não
pode ser impedido, desde que seja respeitada a justa ordem pública»
(Dignitatis Humanae, 2).
Com esta declaração e no preciso ponto que citei, o Concílio atingiu o
cume reflexivo duma questão que atravessou e dramatizou a vida católica
durante dois séculos, a saber, como se podia conjugar a subjetividade
humana com a objetividade criacional das coisas. Cume reflexivo e
prático que ainda está longe da total assimilação, quer quanto a nós, no
que toca ao respeito ativo pela liberdade de consciência dos outros,
quer no que concerne a outros pelo respeito das convicções que
legitimamente mantemos, numa consciência que não pode deixar de ter
repercussões da sociedade à economia e da pedagogia à cultura.
No respeitante à consistência do mundo e dos fenómenos que devem ser
respeitados na sua natureza própria e assim mesmo tidos e tratados pela
humanidade em geral, ainda “antes” do sentido transcendente e religioso
que lhes dermos, mas nunca contra ele, também o Concílio atingiu um alto
cume de formulação e doutrina, na Constituição pastoral sobre a Igreja
no mundo contemporâneo: «Muitos dos nossos contemporâneos parecem recear
que uma ligação muito mais íntima entre a atividade humana e a religião
constitua um perigo para a autonomia dos homens, das sociedades e das
ciências. Se por autonomia das realidades terrestres se entende que as
coisas e as próprias sociedades têm as suas leis e os seus valores
próprios, que o homem gradualmente deve descobrir, utilizar e organizar,
é plenamente legítimo exigir tal autonomia, pois ela não só é
reivindicada pelos homens do nosso tempo, mas corresponde também à
vontade do Criador. Com efeito, é pela virtude da própria criação que
todas as coisas estão dotadas de consistência, verdade e bondade, de
leis próprias e de uma ordem que o homem deve respeitar, reconhecendo os
métodos próprios de cada uma das ciências e técnicas. […] Se, porém,
pela expressão “autonomia das realidades temporais”, se entende que as
coisas criadas não dependem de Deus e que o homem pode usá-las sem as
referir ao Criador, não há ninguém, que acredite em Deus, que não
perceba quão falsas são tais afirmações. Na verdade, a criatura sem o
Criador esvai-se. Além disso, todos os crentes qualquer que for a sua
religião, sempre souberam ouvir a voz e a manifestação de Deus na
linguagem da criação. Mais ainda, pelo esquecimento de Deus, a própria
criatura fica obscurecida» (Gaudium et Spes, 36).
Estes dois números – Dignitatis Humanae 2 e Gaudium et Spes 36 –
oferecem-nos, como disse, dois cumes da reflexão conciliar que importa
absolutamente receber, para fundamentarmos devidamente o direito e o
dever que temos, como Igreja de Cristo, de participar ativamente na vida
da cidade e da sociedade em geral, nos vários aspetos do respetivo
acontecer. Trata-se também duma contribuição que a mesma cidade e
sociedade não deveriam dispensar – e de facto não dispensam, e mais do
que para satisfazer necessidades imediatas através da caridade de
Igreja, como inevitável e justificadamente acontece.
O Papa Francisco é também herdeiro e seguidor da reflexão conciliar,
compreendendo-se assim a veemência da sua frase, que hoje comentamos:
«Ninguém pode exigir-nos que releguemos a religião para a intimidade
secreta das pessoas, sem qualquer influência na vida social e nacional»
(Evangelii Gaudium, 183).
A afirmação vem na sequência do que escrevera no número anterior,
retomando a aludida doutrina e reforçando o significado humano e
humanizador que tudo tem e deve ter na ordem social, a partir da
intenção do próprio Criador e do Evangelho de Cristo: «Os Pastores,
acolhendo as contribuições das diversas ciências, têm o direito de
exprimir opiniões sobre tudo aquilo que diz respeito à vida das pessoas,
dado que a tarefa da evangelização implica e exige uma promoção
integral de cada ser humano. Já não se pode afirmar que a religião se
deve limitar ao âmbito privado e serve apenas para preparar as almas
para o Céu. Sabemos que Deus deseja a felicidade dos seus filhos também
nesta Terra, embora estejam chamados à plenitude eterna, porque Ele
criou todas as coisas “para nosso usufruto” (1 Tm 6, 17), para que todos
possam usufruir delas. Por isso, a conversão cristã exige rever,
“especialmente, tudo o que diz respeito à ordem social e consecução do
bem comum” (João Paulo II, Ecclesia in America, 27)» (Evangelii Gaudium,
182).
É este sentido humano e humanizador, conferido pela tradição bíblica
à realidade social, que o Papa Francisco retoma para legitimar a
intervenção da Igreja e dos seus pastores na vida pública.
Do que a Bíblia nos diz dos desígnios do Criador e do que os
Evangelhos em particular relatam das palavras e gestos de Cristo – Ele,
que «por nós homens e para nossa salvação desceu do Céu» - o Papa
sublinha o dever que tem e que nós temos com ele de insistir oportuna e
inoportunamente sobre alguns princípios que, sintetizados na Doutrina
Social da Igreja, reforçam e explicitam aspirações que são da humanidade
inteira. Humanidade que também nós compartilhamos e aspirações que
vemos inteiramente correspondidas na mensagem evangélica.
O Papa Francisco referiu-se à promoção das pessoas e ao bem comum.
São os dois primeiros dos quatro “princípios permanentes da doutrina
social da Igreja”, que o respetivo Compêndio apresenta assim: «Os
princípios permanentes da doutrina social da Igreja constituem os
verdadeiros gonzos do ensinamento social católico: trata-se do princípio
da dignidade da pessoa humana […], no qual todos os demais princípios
ou conteúdos da doutrina social da Igreja têm fundamento, do bem comum,
da subsidiariedade e da solidariedade. Estes princípios, expressões da
verdade inteira sobre o homem conhecida através da razão e da fé,
promanam do encontro da mensagem evangélica e das suas exigências,
resumidas no mandamento supremo do amor, com os problemas que emanam da
vida da sociedade» (Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 160).
O Papa Francisco está convicto da importância destes princípios para a
fermentação evangélica do mundo, no sentido maior da dignificação real
de cada ser humano. É à sua luz que nos dá na exortação apostólica
Evangelii Gaudium um impulso programático para os próximos tempos, como o
seguiremos em Lisboa, em caminho sinodal. Aproveitemos bem esta
Quaresma para nos imbuirmos do mesmo Espírito, para tudo analisarmos com
idêntico critério e reativarmos por palavras e obras a presença cristã
na sociedade.
+ Manuel Clemente
Sé de Lisboa, 23 de março de 2014
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