09 março, 2014

I Catequese Quaresmal 2014 - Patriarca de Lisboa D. Manuel Clemente

 

Resumo da 1ª Catequese Quaresmal - D. Manuel Clemente, Patriarca de Lisboa


CATEQUESE QUARESMAL, 9 DE MARÇO DE 2014

«No próprio coração do Evangelho, aparece a vida comunitária e o compromisso com os outros» (Evangelii Gaudium, 177)

O nosso programa diocesano centra-se este ano na afirmação paulina de que «a fé atua pela caridade» (Gl 5, 6), necessária extensão do ano anterior que, com toda a Igreja, se referiu à primeira virtude teologal.

Necessária extensão, disse, e com toda a força do adjetivo o quero repetir. Especialmente em tempos como os que vivemos e tantos duramente sofrem, quando ressoam na máxima exigência as palavras de outro autor do Novo Testamento: «De que aproveita, irmãos, que alguém diga que tem fé, se não tiver obras de fé? Acaso essa fé poderá salvá-lo? Se um irmão ou uma irmã estiverem nus e precisarem de alimento quotidiano, e um de vós lhe disser: “ide em paz, tratai de vos aquecer e de matar a fome”, mas não lhes dais o que é necessário ao corpo, de que lhes aproveitará? Assim também a fé: se ela não tiver obras, está completamente morta» (Tg 2, 14-17).

Tiago é aqui absolutamente “cristão”, pois compreende e apresenta a religião do Verbo incarnado, que já naquela altura requeria insistência. De facto, é inveterada a tendência para um espiritualismo vazio, nos antípodas do que Jesus manifestara; algo já se fazia sentir, como não desiste nunca de reaparecer.

Ora Jesus apresentara-se como “bom samaritano" da nossa humanidade, que sempre espera por quem realmente se abeire, levante e ajude (cf. Lc 10, 25-37). E é nele que a nossa fé se concentra, em inteira confiança e crescente imitação. Por isso, Tiago pode continuar, com a maior clareza: «Mais ainda: poderá alguém alegar sensatamente: “Tu tens a fé, e eu tenho as obras; mostra-me então a tua fé sem obras, que eu, pelas minhas obras, te mostrarei a minha fé”» (Tg 2, 18).

Nisto se aproximava do ensinamento fundamental de Jesus, que nos exige perfeita adequação ao seu modo de sentir e atuar: «Dou-vos um novo mandamento: que vos ameis uns aos outros; que vos ameis uns aos outros assim como Eu vos amei. Por isso é que todos conhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros» (Jo 13, 34-35). Esta a perene “novidade” de Cristo e a legítima apresentação de quem queira ser seu discípulo: um amor comprovado a todos e cada um, que dê a vida por todos, mesmo os que se lhe opõem.

Em tempos tão desencontrados como hoje, permitamos ativamente que os outros nos reconheçam como discípulos dum Amor que não se distrai nem demora. Não digo que tudo se tornará mais fácil, mas sei que muita coisa se começará a resolver, momento a momento e caso a caso. Assim aconteceu há dois milénios, como semente que indubitavelmente germinou. E ainda a humanidade não estaria tão saturada de palavras contraditadas...

«Pelas minhas obras te mostrarei a minha fé», disse Tiago. Assim seja connosco, num tempo em que só a prática evangélica dará azo à sua teoria. Num tempo que em tudo valoriza o contraditório e nada se afirma sem imediatamente se negar, só a consistência de comportamentos autênticos toca os corações, abre os olhos e esclarece as inteligências com a força duma verdade convincente. Evangelizar, hoje em dia, ao menos nesta tão desgastada Europa, requer a surpresa que um Papa Francisco lhe está a dar, por fazer o que escreve e escrever o que faz. Assim também com a exortação apostólica Evangelii Gaudium, com que nos quis «indicar caminhos para o percurso da Igreja nos próximos anos» (EG, 1).

Como é sabido, na Igreja de Lisboa, queremos seguir inteiramente esta indicação, iniciando um caminho sinodal que, até ao fim de 2016, concretize o que o Papa apresenta como «o sonho missionário de chegar a todos» (EG, 31).

Chegar a todos com o anúncio de Cristo vivo, como quem proclama a vitória da caridade que nele se concentra e no seu Espírito se alarga até chegar a cada um. Deste Senhor somos discípulos e do seu amor testemunhas, só assim legítimas e credíveis. Somos, havemos de o ser cada vez mais, qual comunhão em expansão, exercício caritativo em alargamento inclusivo. A isso nos exorta outro passo neotestamentário de larguíssimo alcance, que nos faria bem saber de cor, pois resume a evangelização antiga e nova: «O que nós vimos e ouvimos, isso vos anunciamos, para que também vós estejais em comunhão connosco. E nós estamos em comunhão com o Pai e com seu Filho Jesus Cristo. Escrevemo-vos isto, para que a nossa alegria seja completa» (1 Jo, 3-4). A “nossa” alegria, repare-se, porque, se o Evangelho alegra quem o recebe, alegra primeiro a quem o transmite, valendo aqui outra afirmação de Jesus: «A felicidade está mais em dar do que em receber» (Act 20, 35).

Daí que a exortação apostólica nos diga num determinado passo, que não precisou de ser longo para ser dos mais substanciais: «O querigma possui um conteúdo inevitavelmente social: no próprio coração do Evangelho, aparece a vida comunitária e o compromisso com os outros. O conteúdo do primeiro anúncio tem uma repercussão moral imediata, cujo centro é a caridade» (EG, 177).

Detenhamo-nos um pouco nestas palavras do Papa. Diz-nos, primeiro, que o querigma possui um conteúdo inevitavelmente social. Por querigma, entende-se o essencial da fé, transmitido desde as primeiras gerações cristãs. Como Paulo o anunciava aos coríntios: «Transmiti-vos, em primeiro lugar, o que eu próprio recebi: Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras; foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras; apareceu a Cefas e depois aos Doze. […] Em último lugar apareceu-me também a mim» (1 Cor 15, 3-8).

Dos próprios pecados saberá cada um, como lhe pesam e pesam à sua volta, pois tudo quanto nos afasta de Deus nos afasta dos outros e do melhor de nós próprios. E isto mesmo que nos podia levar à indiferença ou à desistência, torna-se tão profundo na raiz e tão destrutivo das relações que precisou de ser superado igualmente na profundidade do ser e na integridade da comunhão. Só Deus pode chegar aí, como constante criador e recriador de tudo e de todos. Por isso se fez um de nós em Cristo, que curou por dentro todas as consequências do pecado humano para que, onde repetimos inveteradamente um “não” a Deus Pai e aos outros, dissesse Ele finalmente um “sim”, um perfeito sim.

É este “sim” de Cristo ao Pai e a todos, que o seu Espírito nos proporciona dizer também, fazendo nossa a vitória que conseguiu sobre a morte, e doando-nos a vida eterna da caridade imortal. Como também sabia Paulo, ao escrever noutro passo: «O amor jamais passará!» (1 Cor 13, 8).

Render-se totalmente cada um de nós à caridade de Cristo; ganhar com ela a vitória sobre o pecado que nos corrói e destrói, a nós e aos outros: aí está o caminho aberto para uma Páscoa completa, que faça deste mundo o que Deus lhe proporciona por Cristo e pelos que são realmente de Cristo, vivendo a fé que atua pela caridade. Como nós queremos ser, queremos definitivamente ser, por nós e pelos outros, de nós para os outros.   

   É este o «coração do Evangelho», para os dias de hoje e da Quaresma que solidariamente viveremos, com aquele sentido que a “solidariedade” ganha em Cristo. Sentimento humano que a todos nos deve unir como criaturas do mesmo Criador, ela é vivida por Cristo com uma tal profundidade e extensão que não deixa de fora os próprios inimigos.

É neste ponto, inclusivo e recuperador de todos, que a solidariedade ganha o nome e a substância da caridade de Cristo. Assim escreve o Compêndio da Doutrina Social da Igreja, a partir dum trecho de João Paulo II: «Jesus de Nazaré faz resplandecer aos olhos de todos os homens o nexo entre solidariedade e caridade, iluminando todo o seu significado: “À luz da fé, a solidariedade tende a superar-se a si própria, a revestir as dimensões especificamente cristãs da gratuidade total, do perdão e da reconciliação. O próximo, então, não é só um ser humano com os seus direitos e a sua igualdade fundamental em relação a todos os demais; mas torna-se imagem viva de Deus Pai, resgatada pelo sangue de Jesus Cristo e tornada objeto da ação permanente do Espírito Santo. Por isso, deve ser amado, ainda que seja inimigo, com o mesmo amor com que o ama o Senhor…” (encíclica Sollicitudo Rei Socialis, 40)» (CDSI, 196).           

Dizei-me finalmente, irmãos e irmãs, se não é dum amor tão global como atuante, que precisamos agora – como aliás precisaríamos sempre?! Tanto problema a resolver, tanta vida a recuperar, tanta esperança a reabrir… E, sendo assim, indubitavelmente assim, então façamos de cada comunidade cristã a presença viva da caridade de Cristo, em missão permanente de testemunho e partilha. Isso mesmo visa reforçar em Lisboa o caminho sinodal que encetaremos em breve, multiplicando comunidades vivas de acolhimento e missão, na resposta  solidária a quem nos procura ou procuremos nós.

É gravíssima, aliás, a advertência que o Papa Francisco nos deixa noutro passo da sua exortação programática: «Qualquer comunidade da Igreja, na medida em que pretender subsistir tranquila sem se ocupar criativamente nem cooperar de forma eficaz para que os pobres vivam com dignidade e haja a inclusão de todos, correrá também o risco da sua dissolução, mesmo que fale de temas sociais ou critique os Governos. Facilmente acabará submersa pelo mundanismo espiritual, dissimulado em práticas religiosas, reuniões infecundas ou discursos vazios» (EG, 207).
Com a advertência grave, o Papa Francisco deixa-nos aqui o método cristão nas presentes circunstâncias. Não deixando de proclamar a tempo e a contratempo valores irrecusáveis de dignidade humana que em nenhum caso se podem esquecer, as comunidades cristãs são chamadas a agir de forma criativa e cooperante para apoiar e dignificar quem quer que seja atingido por velhas e novas formas de pobreza.

Toda a denúncia se esvazia sem o anúncio concreto e a demonstração patente de que as coisas podem ser doutra maneira. A presença de cristãos solidários nas mais diversas frentes da recuperação nacional, bem como a luminosa constelação de obras sociocaritativas com que a Igreja responde às multiplicadas carências de tantos que lhe acorrem – estas sim, são o caminho verdadeiro que havemos de percorrer, para o melhor futuro de todos.

«Vida comunitária e compromisso com os outros», assim ilustra o Papa o coração do Evangelho. Reforcemos então, nas várias expressões da nossa vida comum, da Igreja doméstica e familiar à “família de famílias” que cada comunidade cristã deve ser, todos os laços sacramentais que nos vinculam e todas as práticas caritativas que daí decorrem. Atenção mútua, cuidado dos mais frágeis e esquecidos, real acompanhamento de todos a todos e de cada um. Uma realidade assim torna-se necessariamente expansiva, porque o bem por natureza se difunde. Ainda mais o fará pela graça divina, que tão especialmente se oferece na exercitação quaresmal. 

+ Manuel Clemente
Sé de Lisboa, 9 de março de 2014
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