06 março, 2014

Homilia de D. Manuel Clemente na Missa de Quarta-feira de Cinzas 2014



Quaresma de 2014: oportunidade e graça

Entramos em Quaresma, esperançosamente entramos, como oportunidade e graça para algo de mais verdadeiro e definitivo. Mas “entremos” mesmo, caríssimos irmãos. Dificuldade grande do nosso mundo de superinformação e sobrecarga imagética é exatamente essa, de nada nos implicar realmente e permanecermos meros espetadores de acontecimentos que não podiam deixar de ser nossos, irrecusavelmente nossos.

O alheamento em que ficamos é também a alienação contemporânea em relação ao que devíamos levar muito a sério e mais a fundo. Muito a sério, porque séria é a vida e as dificuldades em que se encontra por esse mundo além e aquém, do internacional ao local. Mais a fundo, pois tratando-se da vida, própria ou alheia, tocamos sempre na raiz das coisas, indispensável de tomar.

Compreende-se a falta de atitude, derivada que é da perplexidade em que ficamos diante da variedade dos relatos e da dificuldade dos temas, não resumíveis aos apontamentos rápidos e aos discursos divergentes, que geralmente nos são fornecidos. Seja da economia ou da sociedade, seja da política ou dos costumes… - Quem fala certo, qual a melhor saída, quais as ações mais corretas?

Seja como for, é preciso “entrar”, ainda que a porta seja estreita, segundo a alusão evangélica. Urge passar de espetador a ator, com papel definido e argumento sólido.

Os trechos bíblicos que escutámos interpelam-nos e ajudam-nos nesse sentido. Dizem-nos, com São Paulo, que o próprio Deus tomou a iniciativa de “entrar” decididamente no drama do mundo, para o resolver no mais profundo dele e fazendo que, em Cristo, tudo retorne ao que nunca devia deixar de ser: «A Cristo, que não conhecera o pecado, identificou-o Deus com o pecado por amor de nós, para que em Cristo nos tornássemos justiça de Deus».

Logo aqui, surge a consequência: Perante tanta miséria alheia ou própria, tanta dificuldade acrescida por falta de solidariedade autêntica, por tanta perda do sentido humano e humanizante que a economia, a política e a cultura haviam de ter, não podemos ficar de fora, como quem adia resoluções ou esquece responsabilidades.

Só estaremos com Deus, quando estivermos como Cristo, que de todos se abeirou para deixar claro e claríssimo, por palavras e obras, que tudo recomeça quando fazemos nossas as carências dos outros e aí mesmo retomamos uma convivência que salva – a eles e a nós.

Uma convivência que salva e que é preciso restaurar, como prevalência do outro como outro, mesmo que não nos gratifique imediatamente. Não é de somenos que o Papa Francisco indique como «o grande risco do mundo atual, com a sua múltipla e avassaladora oferta de consumo» precisamente o contrário, ou seja, «uma tristeza individualista que brota do coração comodista e mesquinho, da busca desordenada de prazeres superficiais, da consciência isolada» (Evangelii Gaudium 2).

A entrada quaresmal no caminho que Deus nos abre em Cristo e no seguimento de Cristo, só acontece com os outros e pelos outros, ultrapassando o egoísmo alheado pelo apoio concreto a quem precisa de acolhimento, companhia e ajuda. Foi assim que Cristo venceu o pecado do egoísmo pela vitória da comunhão. Não há outra Quaresma a fazer, rumo à Páscoa que o mundo espera, na sua total consequência.

Mais fácil de enunciar do que cumprir, pensaríamos… Por nós seria assim, mas com Cristo pode ser outra coisa. No Evangelho há pouco ouvido, falou-nos de esmola, de oração e de jejum, práticas penitenciais em suma. Mas exercitadas à sua maneira, inteiramente polarizado em Deus Pai e nos outros, como inteiramente desapossado de si mesmo. Ajuda aos outros, sim, mas em real benefício deles e não em ostentação de liberalidades pretensas. Oração reiterada, com certeza, mas na relação filial com Deus, que preenche e transborda dum coração entregue. Jejum, também, mas que nos liberte pelo essencial, que assim chegará a todos.

E não tomemos como espiritualismo utópico estas recomendações evangélicas, que alguém julgasse inadequadas para uma situação social tão árdua como a que suportamos agora: tanta vida mal garantida, tanta desigualdade crescente, tanto desemprego ainda, tanto abandono de idosos…  

Bem pelo contrário, o mais que justificado desengano em relação a grandes propostas de resolução do todo pelo todo, ou de sucessão de sistemas por sistemas, esse mesmo é que nos reconduz ao comportamento de Cristo, quando inaugurou nalguns quilómetros palmilhados e nalguns gestos preenchidos a convivência nova em que a humanidade floresceu. A essa convivência chamou o seu “reino”, como a mais pequena das sementes que se torna a maior das plantas, como um encontro verdadeiramente pessoal que, por isso mesmo, se abre ao mundo inteiro.

Como lembra o Papa Francisco, «o todo é superior à parte», mas exatamente pelo fermento que leveda toda a massa (cf. Evangelii Gaudium, nº 237) 
Sim, caríssimos irmãos, e exatamente assim. Não nos paralise a complexidade dos grandes problemas, que tanto desafiam as previsões dos entendidos e mais exigem a sua contribuição empenhada. Comecemos onde estamos e com quem estamos, com quem nos procura ou procuremos nós.

Tem a política e tem a economia o seu campo de incidência e estudo, como chamadas são todas as ciências e humanidades, neste momento difícil que o nosso mundo tem de superar, rumo a um futuro mais justo e mais integrador de aspirações, povos e culturas. Certamente que assim é e deve ser. Mas nada se resolverá sem solucionarmos aquilo a que o Papa Francisco chama, muito certeiramente, «a crise do compromisso comunitário», assim intitulando um capítulo inteiro da sua notável exortação apostólica. Crise que, por deixar de nos reconhecer como pessoas concretas, excluiu tragicamente a muitos e acabou por globalizar a indiferença (cf. Evangelii Gaudium, 54).

A isto responde ainda, como respondeu sempre, o apelo bíblico a uma resposta mais profunda, que parta do mais íntimo de cada um, não só racionalmente enquanto “consciência”, mas mais sensivelmente enquanto “coração”. Assim o ouvimos no trecho profético, apelando a uma atitude radical, que ultrapasse qualquer formalismo inconsequente: «Diz agora o Senhor: “Convertei-vos a Mim de todo o coração […]. Rasgai o vosso coração e não os vossos vestidos”».

Difícil é, mas impossível não. Permite-o a graça divina, quando o queremos sinceramente nós. Temos uma Quaresma para tal, e muita gente à espera que aconteça. Quando verificamos a imensa esperança que pessoas de grande coração, como o Papa Francisco, levantam por esse mundo além, não podemos deixar de pensar no que acontecerá quando muitos outros e outras o acompanharem também. Corações “rasgados”, certamente, no sentido pleno de abarcarem a todos e de se aproximarem de cada um, sinais vivos do coração de Cristo, no seu incessante dizer: «Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos e eu vos aliviarei!» (Mt 11, 28).

Ficamos a pensar e a concluir que este mesmo coração há de ser o de cada comunidade que legitimamente queira dizer-se “cristã”. Como é “quaresmal” esta outra passagem da exortação pontifícia, um programa sério e inadiável agora: «Cada cristão e cada comunidade são chamados a ser instrumentos de Deus ao serviço da libertação e promoção dos pobres, para que possam integrar-se plenamente na sociedade; isto supõe estarem docilmente atentos, para ouvir o clamor do pobre e socorrê-lo» (Evangelii Gaudium, 187).

Num coração “rasgado” entram constantemente os outros, as suas necessidades e anseios. Assim é o de Cristo e o de quem seja verdadeiramente um dos seus. É por eles que a Igreja de Cristo serve o mundo. É para isso que a sua graça não lhes falta.

- Santa Quaresma, rumo à Páscoa de todos!

+ Manuel Clemente
Sé de Lisboa, Quarta Feira de Cinzas, 5 de março de 2014     

Sem comentários:

Enviar um comentário