Quaresma de 2014: oportunidade e graça
Entramos em Quaresma, esperançosamente entramos, como oportunidade e
graça para algo de mais verdadeiro e definitivo. Mas “entremos” mesmo,
caríssimos irmãos. Dificuldade grande do nosso mundo de superinformação e
sobrecarga imagética é exatamente essa, de nada nos implicar realmente e
permanecermos meros espetadores de acontecimentos que não podiam deixar
de ser nossos, irrecusavelmente nossos.
O alheamento em que ficamos é também a alienação contemporânea em
relação ao que devíamos levar muito a sério e mais a fundo. Muito a
sério, porque séria é a vida e as dificuldades em que se encontra por
esse mundo além e aquém, do internacional ao local. Mais a fundo, pois
tratando-se da vida, própria ou alheia, tocamos sempre na raiz das
coisas, indispensável de tomar.
Compreende-se a falta de atitude, derivada que é da perplexidade em
que ficamos diante da variedade dos relatos e da dificuldade dos temas,
não resumíveis aos apontamentos rápidos e aos discursos divergentes, que
geralmente nos são fornecidos. Seja da economia ou da sociedade, seja
da política ou dos costumes… - Quem fala certo, qual a melhor saída,
quais as ações mais corretas?
Seja como for, é preciso “entrar”, ainda que a porta seja estreita,
segundo a alusão evangélica. Urge passar de espetador a ator, com papel
definido e argumento sólido.
Os trechos bíblicos que escutámos interpelam-nos e ajudam-nos nesse
sentido. Dizem-nos, com São Paulo, que o próprio Deus tomou a iniciativa
de “entrar” decididamente no drama do mundo, para o resolver no mais
profundo dele e fazendo que, em Cristo, tudo retorne ao que nunca devia
deixar de ser: «A Cristo, que não conhecera o pecado, identificou-o Deus
com o pecado por amor de nós, para que em Cristo nos tornássemos
justiça de Deus».
Logo aqui, surge a consequência: Perante tanta miséria alheia ou
própria, tanta dificuldade acrescida por falta de solidariedade
autêntica, por tanta perda do sentido humano e humanizante que a
economia, a política e a cultura haviam de ter, não podemos ficar de
fora, como quem adia resoluções ou esquece responsabilidades.
Só estaremos com Deus, quando estivermos como Cristo, que de todos se
abeirou para deixar claro e claríssimo, por palavras e obras, que tudo
recomeça quando fazemos nossas as carências dos outros e aí mesmo
retomamos uma convivência que salva – a eles e a nós.
Uma convivência que salva e que é preciso restaurar, como prevalência
do outro como outro, mesmo que não nos gratifique imediatamente. Não é
de somenos que o Papa Francisco indique como «o grande risco do mundo
atual, com a sua múltipla e avassaladora oferta de consumo» precisamente
o contrário, ou seja, «uma tristeza individualista que brota do coração
comodista e mesquinho, da busca desordenada de prazeres superficiais,
da consciência isolada» (Evangelii Gaudium 2).
A entrada quaresmal no caminho que Deus nos abre em Cristo e no
seguimento de Cristo, só acontece com os outros e pelos outros,
ultrapassando o egoísmo alheado pelo apoio concreto a quem precisa de
acolhimento, companhia e ajuda. Foi assim que Cristo venceu o pecado do
egoísmo pela vitória da comunhão. Não há outra Quaresma a fazer, rumo à
Páscoa que o mundo espera, na sua total consequência.
Mais fácil de enunciar do que cumprir, pensaríamos… Por nós seria
assim, mas com Cristo pode ser outra coisa. No Evangelho há pouco
ouvido, falou-nos de esmola, de oração e de jejum, práticas penitenciais
em suma. Mas exercitadas à sua maneira, inteiramente polarizado em Deus
Pai e nos outros, como inteiramente desapossado de si mesmo. Ajuda aos
outros, sim, mas em real benefício deles e não em ostentação de
liberalidades pretensas. Oração reiterada, com certeza, mas na relação
filial com Deus, que preenche e transborda dum coração entregue. Jejum,
também, mas que nos liberte pelo essencial, que assim chegará a todos.
E não tomemos como espiritualismo utópico estas recomendações
evangélicas, que alguém julgasse inadequadas para uma situação social
tão árdua como a que suportamos agora: tanta vida mal garantida, tanta
desigualdade crescente, tanto desemprego ainda, tanto abandono de
idosos…
Bem pelo contrário, o mais que justificado desengano em relação a
grandes propostas de resolução do todo pelo todo, ou de sucessão de
sistemas por sistemas, esse mesmo é que nos reconduz ao comportamento de
Cristo, quando inaugurou nalguns quilómetros palmilhados e nalguns
gestos preenchidos a convivência nova em que a humanidade floresceu. A
essa convivência chamou o seu “reino”, como a mais pequena das sementes
que se torna a maior das plantas, como um encontro verdadeiramente
pessoal que, por isso mesmo, se abre ao mundo inteiro.
Como lembra o Papa Francisco, «o todo é superior à parte», mas
exatamente pelo fermento que leveda toda a massa (cf. Evangelii Gaudium,
nº 237)
Sim, caríssimos irmãos, e exatamente assim. Não nos paralise a
complexidade dos grandes problemas, que tanto desafiam as previsões dos
entendidos e mais exigem a sua contribuição empenhada. Comecemos onde
estamos e com quem estamos, com quem nos procura ou procuremos nós.
Tem a política e tem a economia o seu campo de incidência e estudo,
como chamadas são todas as ciências e humanidades, neste momento difícil
que o nosso mundo tem de superar, rumo a um futuro mais justo e mais
integrador de aspirações, povos e culturas. Certamente que assim é e
deve ser. Mas nada se resolverá sem solucionarmos aquilo a que o Papa
Francisco chama, muito certeiramente, «a crise do compromisso
comunitário», assim intitulando um capítulo inteiro da sua notável
exortação apostólica. Crise que, por deixar de nos reconhecer como
pessoas concretas, excluiu tragicamente a muitos e acabou por globalizar
a indiferença (cf. Evangelii Gaudium, 54).
A isto responde ainda, como respondeu sempre, o apelo bíblico a uma
resposta mais profunda, que parta do mais íntimo de cada um, não só
racionalmente enquanto “consciência”, mas mais sensivelmente enquanto
“coração”. Assim o ouvimos no trecho profético, apelando a uma atitude
radical, que ultrapasse qualquer formalismo inconsequente: «Diz agora o
Senhor: “Convertei-vos a Mim de todo o coração […]. Rasgai o vosso
coração e não os vossos vestidos”».
Difícil é, mas impossível não. Permite-o a graça divina, quando o
queremos sinceramente nós. Temos uma Quaresma para tal, e muita gente à
espera que aconteça. Quando verificamos a imensa esperança que pessoas
de grande coração, como o Papa Francisco, levantam por esse mundo além,
não podemos deixar de pensar no que acontecerá quando muitos outros e
outras o acompanharem também. Corações “rasgados”, certamente, no
sentido pleno de abarcarem a todos e de se aproximarem de cada um,
sinais vivos do coração de Cristo, no seu incessante dizer: «Vinde a
mim, todos os que estais cansados e oprimidos e eu vos aliviarei!» (Mt
11, 28).
Ficamos a pensar e a concluir que este mesmo coração há de ser o de
cada comunidade que legitimamente queira dizer-se “cristã”. Como é
“quaresmal” esta outra passagem da exortação pontifícia, um programa
sério e inadiável agora: «Cada cristão e cada comunidade são chamados a
ser instrumentos de Deus ao serviço da libertação e promoção dos pobres,
para que possam integrar-se plenamente na sociedade; isto supõe estarem
docilmente atentos, para ouvir o clamor do pobre e socorrê-lo»
(Evangelii Gaudium, 187).
Num coração “rasgado” entram constantemente os outros, as suas
necessidades e anseios. Assim é o de Cristo e o de quem seja
verdadeiramente um dos seus. É por eles que a Igreja de Cristo serve o
mundo. É para isso que a sua graça não lhes falta.
- Santa Quaresma, rumo à Páscoa de todos!
+ Manuel Clemente
Sé de Lisboa, Quarta Feira de Cinzas, 5 de março de 2014
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