14 março, 2014

Homilia de D. Manuel Clemente nas Exéquias de D. José Policarpo

Foto: Patriarcado de Lisboa
A amável lucidez de um grande pastor da Igreja
Homilia na Missa exequial de D. José da Cruz Policarpo, cardeal e patriarca emérito

Irmãos em Cristo e excelentíssimos Senhores: É à imagem de Cristo “bom pastor” que poderemos apreciar e agradecer o perfil e o trabalho de D. José da Cruz Policarpo, cardeal da Santa Igreja e estimadíssimo patriarca de Lisboa. Isto se dirá de todos os ministros ordenados, mas muito em especial de quem tão inesperadamente partiu, para ficar sempre connosco, em Jesus Cristo nossa vida.
Cristo, que de si mesmo disse: «Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida pelas ovelhas». Dar a vida é, portanto, o único sinal do bom pastoreio. Como o foi no Senhor D. José Policarpo, bom, belo e verdadeiro “sacramento” da presença de Cristo Pastor entre nós. 
A tantas e tão justas homenagens que agora ouvimos e sempre coincidem na altíssima figura que ele foi na Igreja e na sociedade, deixai-me juntar a minha, felizmente preenchida por décadas de convívio próximo e colaboração pastoral direta, do Seminário à Diocese e da Diocese à Conferência Episcopal. E faço-o para não ser redundante, e ilustrar com o que me proporcionou a mim tudo quanto proporcionou a todos.
Nascido doze anos depois dele, conheci-o na primeira nomeação, quando foi enviado para um Seminário próximo da minha terra. Para os jovens de então, cedo representou a imagem dum padre convincente, como continuou a ser. E bem precisávamos disso, naquela altura em que começavam a chegar-nos em catadupa tantos apelos e seduções de um mundo e de um modo muito diversos daqueles em que tínhamos nascido.
Estávamos em pleno Concílio Vaticano II, como logo depois na sua primeira aplicação litúrgica e pastoral, chegando-nos por esta ordem. Mas também na necessária leitura dos “sinais” que tal mundo nos dava, requerendo outro juízo, com evangélico critério. Neste preciso ponto, o então jovem Padre Policarpo foi para nós todos uma bússola de norte fixo, sobretudo depois de concluir o doutoramento em Roma, versando exatamente os “sinais dos tempos”.
Não os versou apenas do ponto de vista teórico. Fê-lo da maneira mais prática e exigente, pois lhe foi cometida a tarefa de relançar a primeira instituição formativa da Diocese, o Seminário dos Olivais. E isto logo a seguir à crise profunda que o abalara e quase extinguira no final dos anos sessenta, por razões ligadas às aludidas mudanças epocais, em que inegáveis boas vontades duns e doutros não se conjugavam facilmente.
Aí nos reencontrámos, quando me aceitou como aluno e discípulo. E muito tinha ele de fazer, para acertar as nossas vocações em discernimento com o discernimento maior do que seria a Igreja, do que seria a sociedade portuguesa e do que deveria ser aquela para esta, à luz dum Evangelho de sempre e em tempos que pediam mudanças.
Precisávamos de fundamentar a nossa fé cristã em bases bastante sólidas, para que o sentimento e a razão se aliassem em convicções capazes de enfrentar os grandes reptos socioculturais de então. Recordo eu e recordarão todos os colegas desses anos como foi essencial e entusiasmante a convivência com o jovem reitor que tínhamos, ainda ele na casa dos trinta, quer nas aulas universitárias – especialmente as de Fé e Teologia –, quer na formação interna do Seminário, nas celebrações, na reflexão e no convívio. Talvez não tivéssemos persistido todos sem isso; e certamente não seríamos o que somos, sem ele.
Recordo, em concreto, o que foi a sua participação no sínodo de 1974, como perito do saudoso Cardeal Ribeiro. Desse sínodo sairia no ano seguinte a exortação Evangelii Nuntiandi do Papa Paulo VI, documento sobremaneira marcante para quanto se pensa e faz em termos de fermentação evangélica do mundo, como o Papa Francisco não deixa de o retomar hoje em dia. Pois bem, assim que voltou, o nosso reitor envolveu-nos diretamente no estudo dos pontos sinodais, preparando a publicação em que tratou desta temática, bem atual como vemos.
Entretanto, Portugal vivia as grandes transformações da mudança do regime, com epicentro físico e mental por vezes próximo, muito próximo, do nosso Seminário e da Faculdade de Teologia. Nesse contexto, onde aspirações e perguntas, certezas e debates, percursos próprios e destinos gerais mais ou menos se cruzavam, de novo se impuseram a inteligência e a serenidade do “nosso” Padre Policarpo. E, mais uma vez, a leitura que fazia dos sinais que chegavam, o discernimento evangélico das coisas que aconteciam, acabou por nos contagiar em termos de esperança ativa.
Em junho de 1978 passou a ser “D. José Policarpo”, bispo auxiliar de Lisboa, colaborador direto e inspirado do Cardeal Ribeiro, a quem viria a suceder vinte anos depois. Até lá, ainda reitor dos Olivais até 1997, sucessivamente diretor da Faculdade de Teologia e reitor da Universidade Católica, consolidou o seu amadurecimento precoce e continuou, na Diocese e na Igreja em geral, nos meios eclesiais e na constante intervenção sociocultural, a ser, para nós e para muitos, aquela alta síntese de lucidez e bondade que pessoalmente moldou e geralmente inspira o modo de ser Igreja em Portugal.
“Lucidez e bondade”, disse e quero repetir, como caraterização maior do que foi D. José Policarpo na sociedade e na Igreja. Garanto até, com toda a convicção que mantenho, que não seríamos, como somos, um evidente caso de colaboração positiva Igreja – Estado, cada qual no seu campo e em benefício comum da sociedade plural que integramos, sem a marca forte da sua magnífica personalidade, do seu certeiro magistério e da grandeza do seu coração. Coração de “bom pastor”, sempre disponível a todas as “ovelhas”.
Nem lhe faltou clareza no anúncio evangélico, nem lhe faleceu o gosto de ouvir e conversar, com um misto muito seu de profundidade e largueza de vistas, que tantas vezes nos libertava a nós e às circunstâncias. Assim na vida interna da Igreja e assim com quem quer que fosse e onde quer que estivesse. As personalidades sólidas são desta maneira, como tão felizmente o foi o “nosso” Cardeal Policarpo.
Mas à lucidez e à bondade com que o caraterizo, quero ainda ilustrá-las com palavras suas. Retiro-as do texto introdutório do último volume das Obras escolhidas. Escritas em setembro passado, acabam por ser quase uma súmula de convicções, que de si mesmo apresentou.
Assim escrevendo, referindo-se ao cinquentenário do Concílio, ao Ano da Fé e à Nova Evangelização: «Estes temas desafiam as Igrejas particulares e, de modo especial, os seus Bispos, a reverem o modo como receberam o Concílio: a centralidade de Jesus Cristo, a fé n’Ele como a luz que conduz a Igreja no tempo, o sentido da missão que exige algo cada vez mais difícil: compreender os caminhos da missão num diálogo lúcido, mas repassado de amor, com o complexo mundo contemporâneo. A evolução cultural, e o papel da religião e da fé nessa evolução, é desafio conciliar carregado de exigências e de consequências».
«Compreender os caminhos da missão num diálogo lúcido, mas repassado de amor, com o mundo contemporâneo»: Demos muitas graças a Deus por nos ter oferecido D. José da Cruz Policarpo como irmão em Cristo, pai na fé e pastor da Igreja, com tão amável lucidez. E comprometamo-nos aqui, junto dos sinais da sua morte plena de vida, a continuar-lhe o caminho e o sentimento, para prosseguirmos como Igreja a servir evangelicamente o mundo.
O mundo de que Deus nunca desiste, como tão bem o comprovou, dando-nos a presença e o ministério de D. José da Cruz Policarpo, com os muitos frutos daquela cruz que levou no nome e na vida.

Sé de Lisboa, 14 de março de 2014

+ Manuel Clemente, patriarca de Lisboa
Patriarcado de Lisboa 

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