Na homilia do dia 13, no santuário de Fátima, o Papa dissertou sobre a primeira leitura da Bíblia, em Is 61, 9. A linhagem (descendência do povo de Deus será conhecida […] como linhagem que o Senhor abençoou”.
- Segundo os judeus, esta linhagem ou descendência, nasce em Abraão e continua pelos tempos dependente da “berit”, do pacto ou aliança, com leis próprias e identidade. Esta realidade contínua, ontem como hoje, como teologia fundamental do monoteísmo judaico. Para os mais ortodoxos dos judeus, há os judeus monoteístas e os outros.
- Para nós, cristãos, com a vinda de Jesus , esta linhagem radica não só em Abraão, mas também se redefine com a pessoa de Jesus. Segundo o NT, Jesus é novo primogénito da nova linhagem (Rm 5, 12ss; Ef., 2, passim). É desta maneira que a Mãe de Jesus, precisamente por ser mãe biológica, recebe uma mais valia religiosa no mistério da incarnação. Não há Messias, Salvador, Senhor, Filho de Deus sem a mãe.
Neste sentido, o Papa realça, como já fizera, o papel de Maria em Fátima. Outro tanto se diga do papel dos Pastorinhos. Eles viram a luz que vinha do céu, colada à presença de Maria. Eles viram e acreditaram.
A compreensão da dialéctica entre o sensível e visível versus não-sensível e não-visível
O Papa, meditando neste mistério de Fátima, levanta a sua voz para a compreensão da dialéctica entre o sensível e visível versus não-sensível e não-visível. Para tanto, disse o Papa: “exige-se uma vigilância interior do coração que, na maior parte do tempo, não possuímos por causa da forte pressão das realidades externas e das imagens e preocupações que enchem a alma”. E continua: “Mais ainda, aquela Luz no íntimo dos Pastorinhos, que provém do futuro de Deus, é a mesma que se manifestou na plenitude dos tempos e veio para todos: o Filho de Deus feito homem (…).
Por isso a nossa esperança tem fundamento real, apoia-se num acontecimento que se coloca na história e ao mesmo tempo excede-a: é Jesus de Nazaré. (…) Mas quem tem tempo para escutar a sua Palavra e deixar-se fascinar pelo seu amor? Quem vela, na noite da dúvida e da incerteza, com o coração acordado em oração?”
O Papa repetiu por três vezes a verdade sobre a “linhagem do povo de Deus”. Na segunda vez disse: “A linhagem do povo de Deus será conhecida […] como linhagem que o Senhor abençoou” (Is 61, 9), com uma esperança inabalável e que frutifica num amor que se sacrifica pelos outros, mas não sacrifica os outros; antes – como ouvimos na segunda leitura – “Tudo desculpa, tudo acredita, tudo espera, tudo suporta” (1 Cor 13, 7).
Neste sentido disse Bento XXVI, “Iludir-se-ia quem pensasse que a missão profética de Fátima esteja concluída”,
Aqui reside aquele desígnio de Deus que interpela a humanidade desde os seus primórdios: “Onde está Abel, teu irmão?...”.
Identidade da acção pastoral e social cristã e católica
Continuando a ouvir o Papa, em discurso narrativo e não dogmático, gostaria também de salientar o seu pensamento quando, na Basílica da Santíssima Trindade se dirigiu aos responsáveis católicos pela acção social. Servindo-se da parábola do Bom Samaritano repetiu as palavras de Jesus ao doutor da lei: “Vai fazer o mesmo!”.
Bento XVI aplicou aos nossos dias estas palavras: “O amor incondicionado de Jesus que nos curou há-de converter-se em amor entregue gratuita e generosamente, através da justiça e da caridade, para vivermos com um coração de bom samaritano”. O Papa repetiu várias vezes a palavra “compaixão”. Este mundo, cheio de tecnologia e laicismo, precisa duma compaixão real, efectiva, que corresponda aos anseios do homem moderno.
Disse: “O cenário actual da história é de crise sócio-económica, cultural e espiritual, pondo em evidência a oportunidade de um discernimento orientado pela proposta criativa da mensagem social da Igreja. O estudo da sua doutrina social, que assume como principal força e princípio a caridade, permitirá marcar um processo de desenvolvimento humano integral que adquira profundidade de coração e alcance maior humanização da sociedade. Não se trata de puro conhecimento intelectual, mas de uma sabedoria que dê sabor e tempero, ofereça criatividade às vias cognoscitivas e operativas para enfrentar tão ampla e complexa crise.
Que as instituições da Igreja, unidas a todas as organizações não eclesiais, melhorem as suas capacidades de conhecimento e orientações para uma nova e grandiosa dinâmica que conduza para “aquela civilização do amor, que somente Deus colocou em todo o povo e cultura”.
Mais à frente, disse: “Muitas vezes, porém, não é fácil conseguir uma análise satisfatória da vida espiritual com a acção apostólica. A pressão exercida pela cultura dominante, que apresenta com insistência um estilo de vida fundado sobre a lei do mais forte, sobre o lucro fácil e fascinante, acaba por influir sobre o nosso modo de pensar, os nosso projectos e as perspectivas do nosso serviço, com o risco de esvaziá-los da motivação da fé e da esperança cristã que os tinha suscitado”. Neste sentido, refere por três vezes o problema da “identidade” da acção pastoral e social cristã e católica.
No pequeno discurso que fez aos Bispos saliento dois pontos. No primeiro, o Papa referiu o que muitos referem: a Igreja encontra-se num estado de “fadiga” e de “Invernos” (a fadiga da Igreja e o Inverno da Igreja). Mas num segundo tempo, o Papa vê que a resposta a esta fadiga e Inverno já está a acontecer em “novas comunidades eclesiais”.
O Espírito Santo “está a criar uma nova primavera, fazendo despertar nos jovens e adultos a alegria de serem cristãos, de viverem na Igreja que é o Corpo vivo de Cristo. Graças aos carismas, a radicalidade do Evangelho, o conteúdo objectivo da fé, o fluxo vivo da sua tradição comunicam-se persuasivamente e são acolhidos como experiência pessoal, com adesão da liberdade ao evento presente de Cristo”.
No meio da realidades e verdade da fé destas novas comunidades carismáticas, o Papa chama a atenção para a unidade da Igreja e diz aos Bispos que, se é preciso alguma redirecção para a unidade, para “encontrarem a estrada justa, que as correcções sejam feitas com compreensão – aquela compreensão espiritual e humana que sabe unir guia [direcção], gratidão e uma certa abertura e disponibilidade para aceitar aprender”.
O Papa exorta todos os católicos a serem testemunhas da ressurreição
No Porto, na homilia da eucaristia, o Papa dissertou sobre a leitura de Actos 1, 20-22, que tem como objectivo a substituição apostólica de Judas por Matias. O Papa refere a “desproporção” de forças em campo, que hoje nos espanta, e já há dois mil anos admirava os que viam e ouviam a Cristo. O Papa refere a pessoa de Jesus e os doze, aparentemente insignificantes, que, nesta desproporção de forças em campo, acabaram por levar o Evangelho por todo o lado.
E como os Actos referem a pessoa de Matias como alguém que tinha acompanhado Jesus desde o Baptismo de João até à Ressurreição, o Papa exorta todos os católicos a serem testemunhas da Ressurreição, como foi Matias e os doze. ”Meus irmãos, é necessário que vos torneis comigo testemunhas da ressurreição de Jesus. Na realidade, se não fordes vós as suas testemunhas no próprio ambiente, quem será em vosso lugar?
Mais à frente diz: “Temos de vencer a tentação de nos limitarmos ao que ainda temos, ou julgamos ter, de nosso e seguro: seria morrer a prazo, enquanto presença de Igreja no mundo, que aliás só pode ser missionária, no movimento expansivo do Espírito”.
Mais à frente diz: “Temos de vencer a tentação de nos limitarmos ao que ainda temos, ou julgamos ter, de nosso e seguro: seria morrer a prazo, enquanto presença de Igreja no mundo, que aliás só pode ser missionária, no movimento expansivo do Espírito”.
Nesta perspectiva de Igreja missionária, o Papa apresenta uma vez mais esta Igreja no quadro cultural dos nossos dias: “Nestes últimos anos, alterou-se o quadro antropológico, cultural, social e religioso da humanidade; hoje, a Igreja é chamada a enfrentar desafios novos e está pronta a dialogar com culturas e religiões diversas, procurando construir juntamente com cada pessoa de boa vontade a pacífica convivência dos povos”.
E afirma: “Sim! Somos chamados a servir a humanidade do nosso tempo, confiando unicamente em Jesus, deixando-nos iluminar pela sua Palavra: “Não fostes vós que me escolhestes; fui Eu que vos escolhi e destinei, para que vedes e deis fruto e o vosso fruto permaneça” (Jo 15, 16).
A Igreja e a cultura
Finalmente, no CCB, o Papa disserta sobre a Igreja e a cultura. A este propósito fez três afirmações importantes.
Na primeira disse: “De facto a cultura reflecte hoje uma “tensão”, que por vezes toma formas de conflito, entre o presente e a tradição. A dinâmica da sociedade absolutiza o presente, isolando-o do património cultural do passado e sem a intenção de delinear um futuro”. E mais adiante: “Este conflito entre a tradição e o presente exprime-se na crise da verdade, pois só esta pode orientar e traçar o rumo de uma existência realizada, como indivíduo e como povo”.
A segunda afirmação, em narrativa histórica tem a ver com a própria Igreja. Ele disse: “Prezados amigos, há toda uma aprendizagem a fazer quanto à forma de a Igreja estar no mundo, levando a sociedade a perceber que, proclamando a verdade, é um serviço que a Igreja presta à sociedade, abrindo horizontes novos de futuro, de grandeza e dignidade”. E mais adiante: “A convivência da Igreja, na sua adesão firme ao carácter perene da verdade, com o respeito por outras “verdades” ou com a verdade de outros é uma aprendizagem que a própria Igreja está a fazer. Nesse respeito dialogante, podem abrir-se novas portas para a comunicação da verdade”.
A terceira afirmação que gostaria de aqui deixar, já no fim do seu pequeno discurso, refere a “beleza” das artes e da cultura: “Caros amigos… Fazei coisas belas, mas sobretudo tornai as vossas vidas lugres de beleza”.
CONCLUSÕES:
Na minha perspectiva, o Papa deixou-nos os seguintes reptos:
1) Repensar Fátima como “lugar teológico”;
2) Repensar a história a partir da fé cristã e a sua revelação dinâmica;
3) Repensar a identidade da verdade cristã no mundo moderno de democracia e em diálogo com outras “verdades”;
4) Repensar os novos movimentos de orientação carismática na hierarquia da Igreja.
Pe. Joaquim Carreira das Neves, OFM
Labat n.º 107 de Setembro/Outubro de 2010
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