18 abril, 2019

Homilia na Missa Crismal


Renovo a ação de graças pelo vosso sacerdócio!

Preparamo-nos imediatamente para a celebração pascal e assim mesmo aqui estamos, para que tal aconteça com muito fruto para todos. Está o Povo de Deus, tão numerosamente representado – féis leigos, irmãos e irmãs especialmente consagrados, diáconos e sacerdotes do clero secular e regular da Diocese de Lisboa - nesta Missa justamente “crismal”, pela graça que daqui brotará com os óleos sacramentais em que o Espírito se derrama.
É um momento feliz e verdadeiro da Igreja que somos para o mundo que servimos. Verdadeiro, porque nos exprime e qualifica, como Povo de Deus, Corpo de Cristo e Templo do Espírito. Feliz, porque nos reencontramos assim, ganhando ânimo para correspondermos cada vez mais e melhor ao que Deus nos pede e o mundo precisa.
Saúdo-vos muito cordialmente a todos, reconhecendo e agradecendo o que o Espírito nos oferece em cada um de vós, na variedade dos carismas e na fidelidade com que os viveis para a Igreja e a missão.
Ouvimos no Evangelho aquele momento crismal por excelência que qualificou o ser e a missão do próprio Jesus, por isso mesmo o “Cristo”: Assim leu e a si mesmo aplicou o trecho profético: «O Espírito do Senhor está sobre mim, porque Ele me ungiu para anunciar a boa nova aos pobres. Ele me enviou a proclamar a redenção aos cativos e a vista os cegos, a restituir a liberdade aos oprimidos, a proclamar o ano da graça do Senhor».
Reparemos que tudo se passa em contexto celebrativo, como começava o trecho: «Segundo o seu costume, Jesus entrou na sinagoga a um sábado e levantou-se para fazer a leitura». A alusão é muito significativa para nós, que dedicamos este ano pastoral na diocese à formação litúrgica e no conjunto das dioceses portuguesas ao estímulo missionário. Como escreve o Papa Francisco na exortação apostólica Gaudete et Exsultate (nº 142) são duas realidades interligadas, projetando-se a Liturgia na Missão: «Partilhar a Palavra e celebrar juntos a Eucaristia torna-nos mais irmãos e vai-nos transformando pouco a pouco em comunidade santa e missionária». 



Mais santos e mais missionários é o que havemos de ser, para seguirmos Jesus Cristo e reproduzirmos os seus gestos de proximidade e acompanhamento concreto de pessoas e situações que pedem resposta capaz. Quando olhamos à nossa volta, não faltam dramas e tragédias iniludíveis.
Tanto há para redimir, de facto, com a redenção que Cristo anunciou naquele dia e é programa para a Igreja de sempre. Para redimir a própria vida, da conceção à morte natural de cada ser humano, ameaçada por muitas ações e omissões. Vítimas de inadmissíveis violências, sejam menores ou frágeis, mulheres ou idosos; vidas por realizar, carentes de formação, atividade e habitação condignas; migrantes à procura de condições de subsistência pessoal e familiar; reclusos e ex-reclusos por reintegrar socialmente; pessoas sós e doentes necessitados de cuidados continuados; vítimas de vários tráficos que persistem, degradando-nos a todos como humanidade…  
A lista poderia continuar e cada ponto há de ser um encargo para a sociedade que integramos, como para nós, discípulos de Cristo. Aproveito a ocasião para saudar e agradecer muito reconhecidamente a todos quantos, no âmbito religioso e na sociedade inteira, se entregam à resolução destes problemas. As suas pequenas ou grandes vitórias em qualquer das frentes, essas sim, deveriam encabeçar as notícias que se difundem, para nos motivar ainda mais.  
O olhar de Jesus foi sempre atento, a sua palavra esclarecedora e o seu gesto preciso. Viu e fez ver aos seguidores o que realmente acontecia e o que era preciso fazer. Não deixou ninguém indiferente, exceto quem não tivesse olhos para ver e ouvidos para ouvir.
Houve “redenções” imediatas, físicas e morais, que os Evangelhos nos contam. Mas na vida de Jesus tudo é sinal de realidades absolutas e definitivas. Doutra liberdade, doutra luz, duma graça maior e redenção total. Essa mesma de que o ministério sacerdotal é exercício.


Povo sacerdotal aqui reunido e caríssimos irmãos sacerdotes: Dos muitos males que o afligem, o mundo precisa de ser libertado no que tem de mais profundo e atávico. Males que se enraízam no coração humano, modo de dizer no que em cada um de nós é mais contraditório ainda. Reparemos no que São Paulo não hesita em escrever de si mesmo e da absoluta necessidade da redenção de Cristo. São palavras fortíssimas que nos devem dar que pensar e converter: «Sim, eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita coisa boa; pois o querer está ao meu alcance, mas realizar o bem, isso não. É que não é o bem que eu quero que faço, mas o mal que eu não quero, isso é que pratico» (Rm 8, 18-19). 
Para dizer de seguida que o que não poderíamos resolver por nós nem pela letra e os sacrifícios da antiga Lei, resolveu-o o próprio Deus no sacrifício de Cristo: «Deus fez o que era impossível à Lei, por estar sujeita à fraqueza da carne: ao enviar o seu próprio Filho, em carne idêntica à do pecado e como sacrifício de expiação pelo pecado, condenou o pecado na carne para que assim a justiça exigida pela Lei possa ser plenamente cumprida em nós, que já não procedemos de acordo com a carne, mas com o Espírito» (Rm 8, 3-4).
Não nos pareça o trecho como algo muito complexo e só entendível por alguns. Para nós sacerdotes, como para todo o povo sacerdotal, é o cerne da questão e da salvação que nos toca. Não chegamos a Deus sem Deus, mas só retornando por Jesus ao Pai, no Espírito que Os une.   
Cumpre recordar aqui o que há quarenta anos escreveu São João Paulo II, na encíclica Redemptor Hominis (nº 9), portal do seu pontificado: «… não esqueçamos, nem sequer por um momento, que Jesus Cristo, Filho de Deus vivo, se tornou a nossa reconciliação junto do Pai. Ele precisamente e só Ele satisfez ao amor eterno do Pai, àquela paternidade que desde o princípio se expressou na criação do mundo, na doação ao homem de toda a riqueza do que foi criado, ao fazê-lo pouco inferior aos anjos”, enquanto criado “à imagem e semelhança de Deus”». 
Ou seja, só em Cristo e no Espírito de Cristo conseguimos a perfeita filiação divina. Filiação que, dando todo o lugar a Deus Pai, dá também todo o lugar aos outros e à criação inteira. Foi ainda São Paulo a dizê-lo com grande inspiração e rasgo: «Pois até a criação se encontra em expetativa ansiosa, aguardando a revelação dos filhos de Deus. De facto, a criação foi sujeita à destruição – não voluntariamente, mas por disposição daquele que a sujeitou – na esperança de que também ela seja libertada da escravidão da corrução, para alcançar a liberdade dos filhos de Deus» (Rm 8, 19-21).   
Faz-nos muito bem meditar nestas passagens e noutras coincidentes, pois nelas residem o que podemos designar como realismo cristão e aquela “ecologia integral” em que o magistério pontifício tem insistido. Realismo particularmente sentido em tempos difíceis, em que a própria sobrevivência estava sempre em risco, pareceu ultrapassado noutros mais recentes, em que tudo parecia garantido para satisfações imediatas e futuros previsíveis. – Para quê recorrer à graça divina, se a vida podia ser bastante e gratuita, ao menos para alguns?

Diante desta presumida riqueza, a proposta evangélica nada teria a oferecer. E também por isso Jesus dizia ser difícil a um rico entrar no Reino dos Céus. Na verdade, a primeira condição é querer entrar, pedir para entrar no mundo novo que só Deus oferece, quando Cristo o atinge na humanidade que redime. O preço que pagou foi fazer-se um de nós, para nos fazer de Deus. Foi este o sacrifício e a oferta que permanece.      
Quando a nossa vida não tem como princípio, meio e fim o sacrifício de Cristo, não é, nem se pode chamar “cristã”. É apenas a nossa vida, melhor ou pior, como vai acontecendo e definhando. A vida cristã ou, melhor dizendo, a vida de Cristo em nós, só acontece a partir do que nos conseguiu na sua Páscoa. 
Para nós sacerdotes, esta é a convicção que nos leva a ser sinais ativos do sacrifício de Cristo, para cuja celebração e herança convocamos a todos, a fim de se tornarem um povo sacerdotal também. Anunciamos, celebramos e partilhamos a redenção que Jesus nos obteve, oferecendo na Eucaristia o seu sacrifício, em cada sacramento a sua graça, em toda a caridade o seu amor. Nada menos do que isto nos chamaria ao ministério e nada menos nos pedem a Igreja e o Mundo.
Resume-o o prefácio desta Missa Crismal, a Deus Pai dirigido, com palavras que nos faz bem soletrar e reter, especialmente a nós sacerdotes, por tão bem dizerem o que somos e fazemos: «[Os sacerdotes] renovam em nome de Cristo o sacrifício da redenção humana, preparando para os vossos filhos o banquete pascal; dirigem com amor fraterno o vosso povo santo, alimentam-no com a palavra e fortalecem-no com os sacramentos. Como verdadeiras testemunhas da fé e da caridade, comprometem-se generosamente a cumprir a sua missão, prontos, como Cristo, a dar a vida por Vós e pelos homens seus irmãos». 
Esta é a nossa verdade sacerdotal e ministerial, aqui tão intensamente revivida, no meio do Povo Deus a quem e por quem se oferece. Pelo que conheço e sei de tantos de vós que aqui estais, esta é maravilhosamente a vossa vida, para bem de muitos. Com todo o Povo de Deus aqui presente, redobro a ação de graças pelo vosso sacerdócio!    

Sé Patriarcal, 18 de abril de 2019

+ Manuel, Cardeal-Patriarca

Patriarcado de Lisboa
 

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