04 agosto, 2018

O escândalo do desenvolvimento da doutrina

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 A essência do cristianismo é a caridade  (Vatican Media)

Em 2000 anos de história, a Igreja desenvolveu uma doutrina que baseia os seus fundamentos na Sagrada Escritura, na Tradição e no seu magistério vivo, crescendo cada vez mais na inteligência da fé. 

Sergio Centofanti  - Cidade do Vaticano

O anúncio da modificação do Catecismo da Igreja Católica sobre o tema da pena de morte tem gerado um intenso debate ao redor do mundo. Cada desenvolvimento da doutrina na história da Igreja suscitou consensos ou críticas construtivas, mas também resistências e rejeições.

Hoje pode provocar barulho uma nota da Amoris laetitia ou um novo ensinamento sobre a pena de morte, mas olhando para trás, percorrendo rapidamente 2.000 anos de cristianismo, vemos que muitas coisas mudaram e hoje chegamos a supor que sempre tenha sido assim. O facto é que toda a mudança pode gerar escandalo e confusão. 

A pena de morte na Bíblia

Basta ler a Bíblia para compreender quanto caminho foi percorrido. Hoje ficamos horrorizados diante de certas ordens dadas por Deus a Moisés, conforme relatado pelas Sagradas Escrituras. Em Levítico (Capítulo 20), o Senhor ordena matar idólatras, adúlteros, sodomitas, incestuosos e mesmo aqueles que maltratam o pai ou a mãe devem ser condenados à morte. É certo que Moisés viveu à mais de 3.000 anos atrás. Naturalmente, essas ordens estão contidas no Antigo Testamento, mas no final da leitura sempre dizemos: Palavras do Senhor. 

Progressos doutrinais na primeira comunidade cristã

Pensemos no trauma vivido pelos primeiros cristãos convertidos do judaísmo: quanta coragem tiveram ao ter de abandonar as leis fundamentais do seu povo, como a circuncisão. Quanta abertura de mente e de espírito para aceitar os pagãos na Igreja, na época algo considerado ilícito.
Pedro - narram os Actos dos Apóstolos - já tinha recebido o Espírito Santo, mas ainda não o entendia. Somente diante de um centurião romano, Cornélio, e a sua família, é iluminado e diz: "Em verdade, reconheço que Deus não faz distinção de pessoas, mas em toda nação lhe é agradável aquele que o temer e fizer o que é justo. Deus enviou a sua palavra aos filhos de Israel, anunciando-lhes a boa nova da paz, por meio de Jesus Cristo. Este é o Senhor de todos." 

Nesta frase, "eu reconheço" há todo o gradual progresso do nosso conhecimento da verdade de Deus. Um caminho que não termina enquanto durar a história. Cresce a inteligência da fé. 

Primeiros Concílios Ecuménicos

Pense no caminho da Igreja nos primeiros Concílios Ecuménicos ao estabelecer os fundamentos das verdades cristãs, a partir da Trindade e dos dogmas cristológicos. Tantas as lutas contra as heresias neste período sob o lema "Extra ecclesiam nulla salus" (fora da Igreja não há salvação). Nenhum paraíso, portanto, para os não-batizados.
No entanto, pouco a pouco se compreendeu de maneira mais profunda este conceito, como diz a Declaração Dominus Jesus assinada pelo cardeal Ratzinger:  "Quanto ao modo como a graça salvífica de Deus, dada sempre através de Cristo no Espírito e em relação misteriosa com a Igreja, atinge os não cristãos, o Concílio Vaticano II limitou-se a afirmar que Deus a dá « por caminhos só por Ele conhecidos" (n.21). Entendemos melhor que Deus quer salvar todos. 

Heresias e violência

A luta contra os heréticos, contra aqueles que pensam de maneira diferente, sabemos disto, trouxe terríveis consequências na história: guerras religiosas, fogueira, inquisição. Ainda que muitas lendas obscuras promovidas pela propaganda anticatólica tenham sido desmascaradas por historiadores, não nos escondamos atrás de um dedo: a Igreja, filha do seu tempo, muitas vezes partilhou a sua mentalidade.
Hoje trememos ao ler a Bula pontifícia "Ad Extirpanda", promulgada em 1252 pelo Papa Inocêncio IV e confirmada pelo Papa Alexandre IV em 1259 e pelo Papa Clemente IV em 1265:  o documento aprovava a tortura dos suspeitos de heresia, embora muito reduzida quando comparada com o que foi feito por contemporâneos: não devia buscar mutilações, nem derramamento de sangue, nem a morte. Tudo isto porque a salvação da alma era considerada acima de todas as coisas. Quantas mudanças desde então. 

Compreensão gradual da liberdade de consciência

E quanto caminho foi percorrido em relação à doutrina da Encíclica Mirari vos do Papa Gregório XVI, de 1832. É óbvio, estamos em um contexto histórico muito difícil para o papado, passaram-se quase 200 anos, mas algumas frases nos fizeram compreender melhor as razões dos progressos doutrinais.
Gregorio XVI define a liberdade de consciência como um "delírio" um "erro venenoso", que abre o caminho para "aquela total e irrestrita liberdade de opinião, que aumenta cada vez mais em detrimento da Igreja e do Estado", em acréscimo "àquela péssima, nunca suficientemente execrável, detestável e abominável "liberdade da imprensa" em divulgar escritos de qualquer tipo". A Igreja aprendeu melhor a entender o que é a liberdade também daqueles que não estão na Igreja. 

Escandalizado por uma doutrina em mudança

O escândalo do desenvolvimento da doutrina esconde um problema central da fé: uma Lei que não muda dá segurança e poder ao homem que, desta forma, consegue controlar os seus comportamentos religiosos e também a manipular as exigências das normas divinas. Uma Lei que muda, tira esse poder e coloca-o nas mãos de um Outro. Esta foi a grande batalha de Jesus com os fariseus. Jesus colocou-se como Lei viva, enquanto os fariseus pediam uma Lei escrita e silenciosa que eles pudessem administrar.
Se a Lei é viva, ela não deixa de falar e de dizer coisas novas e, acima de tudo, força-nos a mudar. Isto não nos agrada, porque em cada um de nós existe sempre um fariseu que aparece com as suas razões imutáveis e imóveis. A lei do amor, no entanto, move-nos, impele-nos a um contínuo êxodo do eu para o tu. É um contínuo progredir no conhecimento da verdade absoluta que é Deus e Deus é amor. E o amor obriga-nos a mudar para o outro. A beleza é que também Deus - que é o mesmo, ontem, hoje e sempre - mudou por amor a nós: e se fez homem. 

Pertencer à verdade

Voltando Pedro perante os pagãos, estava a aprender que não era ele o mestre da verdade, mas que ele pertencia à Verdade. Enquanto falava, o Espírito Santo desceu sobre todos os que ouviam o seu discurso: "Os fiéis da circuncisão, que tinham vindo com Pedro, profundamente se admiraram, vendo que o dom do Espírito Santo era derramado também sobre os pagãos; pois eles os ouviam falar noutras línguas e glorificar a Deus. Então Pedro tomou a palavra: Porventura pode-se negar a água do batismo a estes que receberam o Espírito Santo como nós? “. É Deus que nos faz compreender sempre melhor a Si mesmo. Faz-nos compreender que a essência do cristianismo é o amor.  

Nenhum Pedro será contra a Igreja

Por fim, para aqueles que contrapõe Bento XVI e João Paulo II a Francisco, podemos recordar as reconfortantes palavras pronunciadas pelo Papa Ratzinger a 27 de maio de 2006 em Cracóvia, perante um milhão de jovens.
Aos jovens crescidos na fé fé pelo Papa Wojtyla, o Papa Bento XVI diz com força: "Não tenham medo de construir a vossa vida na Igreja e com a Igreja! Tenham orgulho do amor por Pedro e pela Igreja que lhe foi confiada. Não se deixem enganar por aqueles que querem opor-se a Cristo para a Igreja! (...) Vós jovens conheceram bem o Pedro dos nossos tempos. Não tenhais medo de construir a vossa vida na Igreja e com a Igreja! Sede orgulhosos do amor a Pedro e à Igreja que lhe foi confiada (...). Vós, jovens, conhecestes bem o Pedro dos nossos tempos. Por isso, não vos esqueçais que nem aquele Pedro que da janela de Deus Pai está a observar o nosso encontro, nem este Pedro que agora se encontra diante de vós, nem qualquer Pedro sucessivo, jamais será contra vós, nem contra a construção de uma casa duradoura sobre o rochedo. Ao contrário, ele há-de empenhar o seu coração e ambas as suas mãos para vos ajudar a edificar a vossa vida sobre Cristo e com Cristo".

VATICAN NEWS

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