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A Sagrada Família
com as suas vicissitudes ensina-nos a todos que a Palavra de Deus não é uma
transmissão de verdades religiosas, uma catequese ou um ensinamento
de normas morais para serem postas em prática; A Palavra é uma relação
viva e profunda com Deus que se torna história na vida de cada família.
Cidade do Vaticano
"Ajudai, ó Mãe, a nossa fé. Abri o nosso ouvido à Palavra, para reconhecermos a voz de Deus e o seu chamamento. Despertai em nós o desejo de seguir os teus passos, saindo da nossa terra e acolhendo a tua promessa. Ajuda-nos a deixar-nos tocar pelo teu amor, para podermos tocá-Lo com a fé. Ajuda-nos a confiar-nos plenamente a Ele, a crer no seu amor, sobretudo nos momentos de tribulação e cruz, quando a nossa fé é chamada a amadurecer. Semeai, na nossa fé, a alegria do Ressuscitado. Recordai-nos que quem crê nunca está só. Ensina-nos a ver com os olhos de Jesus, para que Ele seja luz no nosso caminho. E que esta luz da fé cresça sempre em nós até chegar aquele dia sem ocaso que é o próprio Cristo, vosso Filho, nosso Senhor!" (Papa Francisco, Encíclica Lumen fidei 29 de junho de 2013)
O ícone evangélico que é o pano de fundo destas catequeses
imediatamente nos torna conscientes do significado religioso da Sagrada
Família de Nazaré. Enquanto lemos no Evangelho de Lucas, todos os anos,
pontualmente para a festa da Páscoa, José e Maria com Jesus vão ao
templo de Jerusalém para cumprirem juntos, o seu ato de fé. Estamos diante
de uma família em que todos os membros, pai, mãe e filho, juntos
realizam uma longa jornada, com todas as dificuldades e os imprevistos
do tempo (tanto que, no caminho de volta, Jesus perdeu-se), para
comemorar o seu ato de ação de graças pascal a Deus pela libertação que
Ele trouxe para o povo de Israel da escravidão no Egipto. É uma família
que, ao lembrar o amor salvador de Deus, a torna viva e ativa no
presente com vista de um futuro em que a fidelidade divina dará plenitude
e satisfação à Sua promessa.
A peregrinação não é apenas um simples ato devocional e religioso que
faz parte das tradições do próprio povo. Certamente, não é uma novidade
ver as famílias completas de cada membro participar nas festas
religiosas que chamam a atenção de comunidades inteiras, como a festa do
Padroeiro ou os eventos religiosos que caracterizam algumas culturas no
seu viver, os tempos fortes do ano litúrgico, especialmente o Natal, a
Semana Santa e a Páscoa.
O que a Sagrada Família faz não é apenas um ato tradicional, mas algo
que revela um importante “background” do qual estamos conscientes
através dos mesmos relatos evangélicos anteriores a narração desse
episódio. Tanto Maria quanto José são desafiados por uma Palavra que,
vindo do Alto de um modo inesperado e surpreendente, provoca uma
resposta de fé. A leitura inexperiente dos dois relatos evangélicos, a
de Lucas sobre Maria e a de Mateus sobre José, nem sempre faz
compreender a adesão total da fé dos dois ao misterioso projeto divino.
Muitas vezes, damos por certo e óbvio a aparição do anjo a Maria na sua
casa em Nazaré e a José no sonho, e parece-nos normal que os dois dêem o
seu consentimento.
Na realidade, as duas histórias do Evangelho pretendem transmitir um
encontro com o divino e o Seu consequente chamamento envolvido num mistério
tão profundo que as palavras não poderiam expressar. Lucas não fala de
aparição, mas usa a expressão “entrou onde ela estava” (Lc 1, 28),
enquanto Mateus, ao escrever “apareceu-lhe em sonho um anjo do Senhor”
(Mt 1.20), afirma que não é tão evidente a manifestação do divino porque
na verdade acontece no sonho.
Portanto, não é a chamada “teofania” a mensagem central dos dois
evangelistas, mas é a Palavra de Deus que desafia o coração de Maria e o
coração de José a uma resposta total que marcará todas as suas vidas. Tal
Palavra comunica, informa, torna-os conscientes de eventos novos,
extraordinários e inesperados, mas acima de tudo quer criar um
relacionamento com a pessoa interpelada. Para ambos, Deus comunica a
mesma Palavra: “Não tenha medo”(Lc 1, 30, Mt 1.20).
A este respeito, iluminantes são as palavras do Papa Francisco em Amoris laetitia:
«A Palavra de Deus não se mostra como uma sequência de teses abstratas,
mas sim como uma companheira de viagem também para as famílias que
estão em crise ou atravessam alguma dor, e lhes indica o objetivo da
jornada, quando Deus “Isso enxugará toda lágrima dos seus olhos e não
haverá mais morte nem luto, nem lamentação ou problema” (Ap 21,4)» (Al
22). Se Maria e José vão todos os anos ao templo de Jerusalém para a
festa da Páscoa, dispostos ao sacrifício e os imprevistos que implica
uma viagem daquele tempo, levando com eles Jesus, é porque eles fizeram e
continuaram a experimentar a Palavra de Deus na sua vida concreta.
Toda a história é uma trama tecida pelo mesmo fio que é a Palavra. É a
Palavra que os leva a dar à luz o Filho na gruta de Belém, realizando o
que a Bíblia profetizou em Miqueias: «E tu, Belém, terra de Judá, não
é, de modo algum, a menor entre as principais cidades de Judá; porque de
ti sairá um príncipe, que apascentará o meu povo Israel» (Mt 2,6); É a
mesma Palavra que os convida a fugir para o Egipto para salvar Jesus das
mãos de Herodes (Mt 2:13); e novamente é a Palavra que os faz retornar à
terra de Israel na morte de Herodes (Mt 2: 19-23).
A Sagrada Família com as suas vicissitudes ensina-nos que a
Palavra de Deus não é uma transmissão de verdades religiosas, uma
catequese ou um ensinamento de normas morais para serem postas em
prática; A Palavra é uma relação viva e profunda com Deus que se torna
história na vida de cada família.
É por isso que o lugar próprio originário em que a narração da
experiência da Palavra divina é transmitida, é precisamente a família,
como reitera o próprio Papa Francisco: «A Bíblia também considera a
família como a sede da catequese dos filhos. Isto resplandece na
descrição da celebração da Pascal (ver Ex 12: 26-27, Dt 6: 20-25), e em 3
seguida foi explicado na hagadá judaica, isto é, na narração dialógica
que acompanha o rito da ceia pascal. Ainda mais, um Salmo exalta o
anúncio familiar da fé: “O que ouvimos e conhecemos e os nossos pais nos
disseram que não o manteremos escondido dos nossos filhos, contaremos à
geração futura as ações gloriosas e poderosas do Senhor e as maravilhas
que ele realizou. Ele estabeleceu um ensinamento em Jacó, colocou uma
lei em Israel, que ordenou aos nossos pais que a façam conhecer aos seus
filhos, para que a geração futura conheça os filhos que nascerão. Eles
se levantarão para contar aos seus filhos” (78,3-6). Portanto, a família é
o lugar onde os pais se tornam os primeiros mestres da fé para os seus
filhos.
É uma tarefa “artesanal”, de pessoa para pessoa: “Quando o seu filho
num amanhã lhe perguntar [...] tu lhe responderás” (Ex 13,14)» (Al 16).
Estamos tão acostumados a reduzir a transmissão da fé apenas ao ensino
das normas, da verdade, das práticas religiosas, esquecemos que a fé é
uma experiência viva e concreta de Deus. Mas se essa experiência não é
realizada e não se faz carne nas quatro paredes da casa, a fé cristã é
limitada apenas a um mero ato religioso ritualístico dentro dos
edifícios das nossas igrejas com pouquíssimas ressonâncias na realidade
quotidiana. É comum o lamentar-se que, muitas vezes, as crianças e os
jovens de hoje, completando o processo de iniciação cristã com admissão
aos sacramentos, já não frequentam mais as paróquias, deixam de entrar
nas igrejas para qualquer ato litúrgico, nem mesmo aos ditos “feriados
religiosos” de Natal e Páscoa.
Há poucas pessoas que se perguntam como poderá um jovem ter o único
desejo de ir à igreja se não experimentar a concretude da Palavra de
Deus em casa e na vida de cada dia. É urgente, portanto, mudar o
registo e começar de novo como se Jesus Cristo fosse anunciado pela
primeira vez. O Papa Francisco insiste, com razão, sobre isso: «Diante
das famílias e no meio delas, deve ressoar sempre de novo o primeiro
anúncio, que é o “mais belo, mais importante, mais atraente e, ao mesmo
tempo, mais necessário” e “deve ocupar o centro da atividade
evangelizadora”.
É o anúncio principal, “aquele que sempre se tem de voltar a ouvir de
diferentes maneiras e aquele que sempre se tem de voltar a anunciar,
duma forma ou doutra”. Porque “nada há de mais sólido, mais profundo,
mais seguro, mais consistente e mais sábio que esse anúncio” e “toda a
formação cristã é, primariamente, o aprofundamento do querigma”» (Al
58). Como anunciar o querigma hoje? Mais uma vez, José e Maria abrem
caminho para nós. Eles vão a Jerusalém não para uma festa, mas apenas
para a Páscoa, que não é apenas a festa mais importante para o povo de
Israel, por causa do seu significado, mas é o que toca realmente a
vivência concreta da pessoa.
Por outras palavras, os pais de Jesus experimentaram a Páscoa nos
acontecimentos das suas vidas; não é uma pura memória do passado, não é
apenas uma celebração ritual, mas uma experiência viva de morte e
ressurreição na existência deles. Eles certamente não tinham o menor
conhecimento e consciência da Páscoa do Filho Jesus, mas sabemos que
aqueles que escrevem as histórias do Evangelho começam sempre do
querigma, do anúncio fundamental da morte e ressurreição de Cristo e
depois narram todos os outros episódios à luz daquele evento. Maria e
José vivem o seu ser Família de acordo com os ritmos da Palavra porque
estão totalmente enxertados na lógica da pascal.
Da mesma forma, a Palavra de Deus torna-se carne em toda a chamada
Igreja doméstica, apenas vivendo o mistério pascal na vida familiar; na
verdade, é precisamente a Páscoa de Cristo que dá sabor e gosto de
família às nossas casas. E a Páscoa não é uma ideia ou uma verdade ou um
anúncio para ser transmitido às famílias, mas já está presente em cada
família a partir do dia da celebração do Sacramento do Matrimónio. O seu
Sacramento nupcial é a atualização do mistério pascal de Cristo vivo e
operante na sua relação de amor.
Quantos esposos cristãos estão cientes dessa verdade extraordinária?
Quantos sabem que a sua vida conjugal e familiar, em virtude da graça
nupcial dada pelo Sacramento do Matrimónio, é uma contínua celebração da
Páscoa? A quantos foram revelados que todos os acontecimentos de
sofrimento, de dor e de morte são inerentes a lógica pascal, e é por
isso que não há um evento tão doloroso que não seja sempre a penúltima
palavra e o prelúdio de uma surpreendente ressurreição?
Se ninguém reparte a Palavra de Deus para eles, quem será capaz de
procurar e perceber o Grande Mistério encoberto na sua carne? É por isso
que «Os Padres sinodais também evidenciaram que “a Palavra de Deus é
fonte de vida e espiritualidade para a família. Toda a pastoral familiar
deverá deixar-se moldar interiormente e formar os membros da igreja
doméstica, através da leitura orante e eclesial da Sagrada Escritura. A
Palavra de Deus é não só uma boa nova para a vida privada das pessoas,
mas também um critério de juízo e uma luz para o discernimento dos
vários desafios que têm de enfrentar os cônjuges e as famílias”» (Al
227).
Para que as nossas famílias se tornem o que são em virtude do
Sacramento, é essencial um cuidado pastoral comum que se mova e se mova
nesse sentido. É um trabalho artesanal que exige pouca atenção diária
que suavize o caminho para uma verdadeira espiritualidade conjugal e
familiar. Precioso é, portanto, a contribuição e o apoio dos pastores
que são chamados a «encorajar as famílias a crescer na fé. Por esta
razão, é bom exortar as frequentes confissões, a direção espiritual, a
participação em retiros. Mas não nos devemos esquecer de convidar para criar
espaços semanais de oração familiar, porque “uma família que reza unida
permanece unida”.
Além disso, quando visitamos as casas, devemos convidar todos os
membros da família a um momento para rezar uns pelos outros e para
confiar a família às mãos do Senhor. Ao mesmo tempo, convém incentivar
cada um dos cônjuges a reservar momentos de oração a sós diante de Deus,
porque cada qual tem as suas cruzes secretas. Por que não contar a Deus
o que turba o coração ou pedir-Lhe a força para curar as próprias
feridas e pedir as luzes necessárias para poder cumprir o próprio
compromisso?» (Al 227).
Mais que ensinar ou instruir ou educar, o papa Francisco
frequentemente fala de “encorajar” porque ele sabe que a arte do
verdadeiro mestre não é apenas a do saber ensinar, mas sobretudo a de
infundir força diante das dificuldades e de saber transmitir mais com o
coração do que com a razão, o que queremos dar ao outro. O Santo Padre
está bem ciente de que é preciso muita coragem para começar uma família,
e ele mesmo está muito surpreso (o escreve no início de Amoris laetitia)
que «apesar dos numerosos sinais de crise no matrimónio “o desejo da
família permanece vivo, especialmente entre os jovens, e isto incentiva a
Igreja”» (Al 1).
Rezar, então, diante de um drama familiar, como a perda súbita de um
filho ou a morte prematura do próprio cônjuge ou a perda de trabalho de
ambos ou a forte crise de um casal, não é tão fácil e óbvio. Se não se
entra na lógica do mistério pascal sempre vivo e ativo em cada
matrimónio, os ensinamentos tornam-se palavras que voam facilmente no
primeiro sopro de vento. É necessário muito encorajamento; mas também
precisamos de testemunhos concretos que suavizem o caminho e mostrem que
em Cristo morto e ressuscitado tudo é possível. Que melhor testemunho
de vida que podemos encontrar do que, da Família de Nazaré.
As famílias «Como Maria, são exortadas a viver, com coragem e
serenidade, os desafios familiares tristes e entusiasmantes, e a guardar
e meditar no coração as maravilhas de Deus (cf. Lc 2, 19.51). No
tesouro do coração de Maria, estão também todos os acontecimentos de
cada uma das nossas famílias, que Ela guarda solicitamente. Por isso
pode ajudar-nos a interpretá-los de modo a reconhecer a mensagem de Deus
na história familiar» (Al 30). A Palavra de Deus, portanto, dá a cada
família a sabedoria da vida e a luz necessárias para poder interpretar
cada acontecimento familiar, grande ou pequeno que seja, e assim provar o
prelúdio daquelas Núpcias Eternas às quais cada família foi sempre
chamada.
Em Família
Para refletir
1. Porque a Palavra de Deus muitas vezes é vista nas nossas famílias
como algo distante, puramente religiosa e incompreensível? Quais são as
causas e quais são as propostas possíveis?
2. Raramente uma família, em
momentos de dificuldades profundas e de uma crise severa, se volta para
encontrar luz e apoio na Palavra de Deus. O que está a faltar e o que
pode ser feito?
Prática
1. Houve assuntos familiares em que a Palavra de Deus realmente se encarnou na sua casa? Conte.
2. Se celebra a Páscoa em família, apenas a vivemos. Dar gosto
pascal aos acontecimentos familiares é como provar o vinho novo das
bodas de Cana. À luz da catequese, experimentou o mistério pascal
vivo e operante na vossa casa?
Na Igreja
Para refletir
1. Se “a Bíblia é povoada por famílias” (Al 8), como o Papa Francisco
nos diz, porque a Sagrada Escritura é vista como abstrata e distante
das famílias atuais? Qual o cuidado pastoral, ou melhor, qual
espiritualidade falta nas nossas comunidades cristãs?
2. Nós estamos a verificar cada vez mais uma frequência menor de
católicos nas nossas liturgias e muitas vezes paramos neste sintoma de
sinal externo de um problema mais profundo. Como a Igreja poderia ou
deveria enfrentar esta situação?
Prática
1. Como se certificar de que a Bíblia não só entre, ou seja lida nas casas, mas se torne uma verdadeira luz para as famílias?
2. Estamos mais preocupados em celebrar o mistério pascal nas nossas
igrejas e menos tornando-o vivo nas famílias? Quais poderiam ser as
propostas para uma mudança de mentalidade?
RADIO VATICANO
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