09 agosto, 2018

Catequese II: As famílias à luz da Palavra de Deus

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A Sagrada Família com as suas vicissitudes ensina-nos a todos que a Palavra de Deus não é uma transmissão de verdades religiosas, uma catequese ou um ensinamento de normas morais para serem postas em prática; A Palavra é uma relação viva e profunda com Deus que se torna história na vida de cada família. 

Cidade do Vaticano

"Ajudai, ó Mãe, a nossa fé. Abri o nosso ouvido à Palavra, para reconhecermos a voz de Deus e o seu chamamento. Despertai em nós o desejo de seguir os teus passos, saindo da nossa terra e acolhendo a tua promessa. Ajuda-nos a deixar-nos tocar pelo teu amor, para podermos tocá-Lo com a fé. Ajuda-nos a confiar-nos plenamente a Ele, a crer no seu amor, sobretudo nos momentos de tribulação e cruz, quando a nossa fé é chamada a amadurecer. Semeai, na nossa fé, a alegria do Ressuscitado. Recordai-nos que quem crê nunca está só. Ensina-nos a ver com os olhos de Jesus, para que Ele seja luz no nosso caminho. E que esta luz da fé cresça sempre em nós até chegar aquele dia sem ocaso que é o próprio Cristo, vosso Filho, nosso Senhor!" (Papa Francisco, Encíclica Lumen fidei 29 de junho de 2013)

O ícone evangélico que é o pano de fundo destas catequeses imediatamente nos torna conscientes do significado religioso da Sagrada Família de Nazaré. Enquanto lemos no Evangelho de Lucas, todos os anos, pontualmente para a festa da Páscoa, José e Maria com Jesus vão ao templo de Jerusalém para cumprirem juntos, o seu ato de fé. Estamos diante de uma família em que todos os membros, pai, mãe e filho, juntos realizam uma longa jornada, com todas as dificuldades e os imprevistos do tempo (tanto que, no caminho de volta, Jesus perdeu-se), para comemorar o  seu ato de ação de graças pascal a Deus pela libertação que Ele trouxe para o povo de Israel da escravidão no Egipto. É uma família que, ao lembrar o amor salvador de Deus, a torna viva e ativa no presente com vista de um futuro em que a fidelidade divina dará plenitude e satisfação à Sua promessa.

A peregrinação não é apenas um simples ato devocional e religioso que faz parte das tradições do próprio povo. Certamente, não é uma novidade ver as famílias completas de cada membro participar nas festas religiosas que chamam a atenção de comunidades inteiras, como a festa do Padroeiro ou os eventos religiosos que caracterizam algumas culturas no seu viver, os tempos fortes do ano litúrgico, especialmente o Natal, a Semana Santa e a Páscoa.

O que a Sagrada Família faz não é apenas um ato tradicional, mas algo que revela um importante “background” do qual estamos conscientes através dos mesmos relatos evangélicos anteriores a narração desse episódio. Tanto Maria quanto José são desafiados por uma Palavra que, vindo do Alto de um modo inesperado e surpreendente, provoca uma resposta de fé. A leitura inexperiente dos dois relatos evangélicos, a de Lucas sobre Maria e a de Mateus sobre José, nem sempre faz compreender a adesão total da fé dos dois ao misterioso projeto divino. Muitas vezes, damos por certo e óbvio a aparição do anjo a Maria na sua casa em Nazaré e a José no sonho, e parece-nos normal que os dois dêem o seu consentimento.

Na realidade, as duas histórias do Evangelho pretendem transmitir um encontro com o divino e o Seu consequente chamamento envolvido num mistério tão profundo que as palavras não poderiam expressar. Lucas não fala de aparição, mas usa a expressão “entrou onde ela estava” (Lc 1, 28), enquanto Mateus, ao escrever “apareceu-lhe em sonho um anjo do Senhor” (Mt 1.20), afirma que não é tão evidente a manifestação do divino porque na verdade acontece no sonho.

Portanto, não é a chamada “teofania” a mensagem central dos dois evangelistas, mas é a Palavra de Deus que desafia o coração de Maria e o coração de José a uma resposta total que marcará todas as suas vidas. Tal Palavra comunica, informa, torna-os conscientes de eventos novos, extraordinários e inesperados, mas acima de tudo quer criar um relacionamento com a pessoa interpelada. Para ambos, Deus comunica a mesma Palavra: “Não tenha medo”(Lc 1, 30, Mt 1.20).

A este respeito, iluminantes são as palavras do Papa Francisco em Amoris laetitia: «A Palavra de Deus não se mostra como uma sequência de teses abstratas, mas sim como uma companheira de viagem também para as famílias que estão em crise ou atravessam alguma dor, e lhes indica o objetivo da jornada, quando Deus “Isso enxugará toda lágrima dos seus olhos e não haverá mais morte nem luto, nem lamentação ou problema” (Ap 21,4)» (Al 22). Se Maria e José vão todos os anos ao templo de Jerusalém para a festa da Páscoa, dispostos ao sacrifício e os imprevistos que implica uma viagem daquele tempo, levando com eles Jesus, é porque eles fizeram e continuaram a experimentar a Palavra de Deus na sua vida concreta.

Toda a história é uma trama tecida pelo mesmo fio que é a Palavra. É a Palavra que os leva a dar à luz o Filho na gruta de Belém, realizando o que a Bíblia profetizou em Miqueias: «E tu, Belém, terra de Judá, não é, de modo algum, a menor entre as principais cidades de Judá; porque de ti sairá um príncipe, que apascentará o meu povo Israel» (Mt 2,6); É a mesma Palavra que os convida a fugir para o Egipto para salvar Jesus das mãos de Herodes (Mt 2:13); e novamente é a Palavra que os faz retornar à terra de Israel na morte de Herodes (Mt 2: 19-23).

A Sagrada Família com as suas vicissitudes ensina-nos que a Palavra de Deus não é uma transmissão de verdades religiosas, uma catequese ou um ensinamento de normas morais para serem postas em prática; A Palavra é uma relação viva e profunda com Deus que se torna história na vida de cada família.

É por isso que o lugar próprio originário em que a narração da experiência da Palavra divina é transmitida, é precisamente a família, como reitera o próprio Papa Francisco: «A Bíblia também considera a família como a sede da catequese dos filhos. Isto resplandece na descrição da celebração da Pascal (ver Ex 12: 26-27, Dt 6: 20-25), e em 3 seguida foi explicado na hagadá judaica, isto é, na narração dialógica que acompanha o rito da ceia pascal. Ainda mais, um Salmo exalta o anúncio familiar da fé: “O que ouvimos e conhecemos e os nossos pais nos disseram que não o manteremos escondido dos nossos filhos, contaremos à geração futura as ações gloriosas e poderosas do Senhor e as maravilhas que ele realizou. Ele estabeleceu um ensinamento em Jacó, colocou uma lei em Israel, que ordenou aos nossos pais que a façam conhecer aos seus filhos, para que a geração futura conheça os filhos que nascerão. Eles se levantarão para contar aos seus filhos” (78,3-6). Portanto, a família é o lugar onde os pais se tornam os primeiros mestres da fé para os seus filhos.

É uma tarefa “artesanal”, de pessoa para pessoa: “Quando o seu filho num amanhã lhe perguntar [...] tu lhe responderás” (Ex 13,14)» (Al 16). Estamos tão acostumados a reduzir a transmissão da fé apenas ao ensino das normas, da verdade, das práticas religiosas, esquecemos que a fé é uma experiência viva e concreta de Deus. Mas se essa experiência não é realizada e não se faz carne nas quatro paredes da casa, a fé cristã é limitada apenas a um mero ato religioso ritualístico dentro dos edifícios das nossas igrejas com pouquíssimas ressonâncias na realidade quotidiana. É comum o lamentar-se que, muitas vezes, as crianças e os jovens de hoje, completando o processo de iniciação cristã com admissão aos sacramentos, já não frequentam mais as paróquias, deixam de entrar nas igrejas para qualquer ato litúrgico, nem mesmo aos ditos “feriados religiosos” de Natal e Páscoa.

Há poucas pessoas que se perguntam como poderá um jovem ter o único desejo de ir à igreja se não experimentar a concretude da Palavra de Deus em casa e na vida de cada dia. É urgente, portanto, mudar o registo e começar de novo como se Jesus Cristo fosse anunciado pela primeira vez. O Papa Francisco insiste, com razão, sobre isso: «Diante das famílias e no meio delas, deve ressoar sempre de novo o primeiro anúncio, que é o “mais belo, mais importante, mais atraente e, ao mesmo tempo, mais necessário” e “deve ocupar o centro da atividade evangelizadora”.

É o anúncio principal, “aquele que sempre se tem de voltar a ouvir de diferentes maneiras e aquele que sempre se tem de voltar a anunciar, duma forma ou doutra”. Porque “nada há de mais sólido, mais profundo, mais seguro, mais consistente e mais sábio que esse anúncio” e “toda a formação cristã é, primariamente, o aprofundamento do querigma”» (Al 58). Como anunciar o querigma hoje? Mais uma vez, José e Maria abrem caminho para nós. Eles vão a Jerusalém não para uma festa, mas apenas para a Páscoa, que não é apenas a festa mais importante para o povo de Israel, por causa do seu significado, mas é o que toca realmente a vivência concreta da pessoa.

Por outras palavras, os pais de Jesus experimentaram a Páscoa nos acontecimentos das suas vidas; não é uma pura memória do passado, não é apenas uma celebração ritual, mas uma experiência viva de morte e ressurreição na existência deles. Eles certamente não tinham o menor conhecimento e consciência da Páscoa do Filho Jesus, mas sabemos que aqueles que escrevem as histórias do Evangelho começam sempre do querigma, do anúncio  fundamental da morte e ressurreição de Cristo e depois narram todos os outros episódios à luz daquele evento. Maria e José vivem o seu ser Família de acordo com os ritmos da Palavra porque estão totalmente enxertados na lógica da pascal.

Da mesma forma, a Palavra de Deus torna-se carne em toda a chamada Igreja doméstica, apenas vivendo o mistério pascal na vida familiar; na verdade, é precisamente a Páscoa de Cristo que dá sabor e gosto de família às nossas casas. E a Páscoa não é uma ideia ou uma verdade ou um anúncio para ser transmitido às famílias, mas já está presente em cada família a partir do dia da celebração do Sacramento do Matrimónio. O seu Sacramento nupcial é a atualização do mistério pascal de Cristo vivo e operante na sua relação de amor.

Quantos esposos cristãos estão cientes dessa verdade extraordinária? Quantos sabem que a sua vida conjugal e familiar, em virtude da graça nupcial dada pelo Sacramento do Matrimónio, é uma contínua celebração da Páscoa? A quantos foram revelados que todos os acontecimentos de sofrimento, de dor e de morte são inerentes a lógica pascal, e é por isso que não há um evento tão doloroso que não seja sempre a penúltima palavra e o prelúdio de uma surpreendente ressurreição?

Se ninguém reparte a Palavra de Deus para eles, quem será capaz de procurar e perceber o Grande Mistério encoberto na sua carne? É por isso que «Os Padres sinodais também evidenciaram que “a Palavra de Deus é fonte de vida e espiritualidade para a família. Toda a pastoral familiar deverá deixar-se moldar interiormente e formar os membros da igreja doméstica, através da leitura orante e eclesial da Sagrada Escritura. A Palavra de Deus é não só uma boa nova para a vida privada das pessoas, mas também um critério de juízo e uma luz para o discernimento dos vários desafios que têm de enfrentar os cônjuges e as famílias”» (Al 227).

Para que as nossas famílias se tornem o que são em virtude do Sacramento, é essencial um cuidado pastoral comum que se mova e se mova nesse sentido. É um trabalho artesanal que exige pouca atenção diária que suavize o caminho para uma verdadeira espiritualidade conjugal e familiar. Precioso é, portanto, a contribuição e o apoio dos pastores que são chamados a «encorajar as famílias a crescer na fé. Por esta razão, é bom exortar as frequentes confissões, a direção espiritual, a participação em retiros. Mas não nos devemos esquecer de convidar para criar espaços semanais de oração familiar, porque “uma família que reza unida permanece unida”.

Além disso, quando visitamos as casas, devemos convidar todos os membros da família a um momento para rezar uns pelos outros e para confiar a família às mãos do Senhor. Ao mesmo tempo, convém incentivar cada um dos cônjuges a reservar momentos de oração a sós diante de Deus, porque cada qual tem as suas cruzes secretas. Por que não contar a Deus o que turba o coração ou pedir-Lhe a força para curar as próprias feridas e pedir as luzes necessárias para poder cumprir o próprio compromisso?» (Al 227).

Mais que ensinar ou instruir ou educar, o papa Francisco frequentemente fala de “encorajar” porque ele sabe que a arte do verdadeiro mestre não é apenas a do saber ensinar, mas sobretudo a de infundir força diante das dificuldades e de saber transmitir mais com o coração do que com a razão, o que queremos dar ao outro. O Santo Padre está bem ciente de que é preciso muita coragem para começar uma família, e ele mesmo está muito surpreso (o escreve no início de Amoris laetitia) que «apesar dos numerosos sinais de crise no matrimónio “o desejo da família permanece vivo, especialmente entre os jovens, e isto incentiva a Igreja”» (Al 1).

Rezar, então, diante de um drama familiar, como a perda súbita de um filho ou a morte prematura do próprio cônjuge ou a perda de trabalho de ambos ou a forte crise de um casal, não é tão fácil e óbvio. Se não se entra na lógica do mistério pascal sempre vivo e ativo em cada matrimónio, os ensinamentos tornam-se palavras que voam facilmente no primeiro sopro de vento. É necessário muito encorajamento; mas também precisamos de testemunhos concretos que suavizem o caminho e mostrem que em Cristo morto e ressuscitado tudo é possível. Que melhor testemunho de vida que podemos encontrar do que, da Família de Nazaré.

As famílias «Como Maria, são exortadas a viver, com coragem e serenidade, os desafios familiares tristes e entusiasmantes, e a guardar e meditar no coração as maravilhas de Deus (cf. Lc 2, 19.51). No tesouro do coração de Maria, estão também todos os acontecimentos de cada uma das nossas famílias, que Ela guarda solicitamente. Por isso pode ajudar-nos a interpretá-los de modo a reconhecer a mensagem de Deus na história familiar» (Al 30). A Palavra de Deus, portanto, dá a cada família a sabedoria da vida e a luz necessárias para poder interpretar cada acontecimento familiar, grande ou pequeno que seja, e assim provar o prelúdio daquelas Núpcias Eternas às quais cada família foi sempre  chamada.

Em Família

Para refletir

1. Porque a Palavra de Deus muitas vezes é vista nas nossas famílias como algo distante, puramente religiosa e incompreensível? Quais são as causas e quais são as propostas possíveis? 

2. Raramente uma família, em momentos de dificuldades profundas e de uma crise severa, se volta para encontrar luz e apoio na Palavra de Deus. O que está a faltar e o que pode ser feito?

Prática

1. Houve assuntos familiares em que a Palavra de Deus realmente se encarnou na sua casa? Conte.

2. Se celebra a Páscoa em família, apenas a vivemos. Dar gosto pascal aos acontecimentos familiares é como provar o vinho novo das bodas de Cana. À luz da catequese, experimentou o mistério pascal vivo e operante na vossa casa?

Na Igreja

Para refletir

1. Se “a Bíblia é povoada por famílias” (Al 8), como o Papa Francisco nos diz, porque a Sagrada Escritura é vista como abstrata e distante das famílias atuais? Qual o cuidado pastoral, ou melhor, qual espiritualidade falta nas nossas comunidades cristãs?

2. Nós estamos a verificar cada vez mais uma frequência menor de católicos nas nossas liturgias e muitas vezes paramos neste sintoma de sinal externo de um problema mais profundo. Como a Igreja poderia ou deveria enfrentar esta situação?

Prática

1. Como se certificar de que a Bíblia não só entre, ou seja lida nas casas, mas se torne uma verdadeira luz para as famílias?

2. Estamos mais preocupados em celebrar o mistério pascal nas nossas igrejas e menos tornando-o vivo nas famílias? Quais poderiam ser as propostas para uma mudança de mentalidade?

RADIO VATICANO

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