Misericórdia, a alma da Quaresma
Nas leituras da Missa de Cinzas, ouvimos São Paulo aos coríntios - e
agora a nós, em princípio de Quaresma: «Nós vos pedimos em nome de
Cristo. Reconciliai-vos com Deus». E imediatamente a seguir,
significativamente a seguir: «A Cristo, que não conhecera o pecado,
identificou-o Deus com o pecado por amor de nós, para que em Cristo nos
tornássemos justiça de Deus».
- E porque disse eu “significativamente”? Porque a reconciliação com
Deus, a conversão, tem de significar coincidência com os seus
sentimentos. Os sentimentos de Deus, que, em Cristo vem ao nosso
encontro, para nos recuperar por fim. E porque, vir ao nosso encontro,
significa tomar-nos onde estamos, distantes e, de facto, mal, muito mal,
quando longe de Deus. Tratou-se duma imensa distância que só Deus pôde
superar pela incarnação, paixão e morte de Cristo, que fez sua a nossa
condição, para a tornar divina, religando-a a Deus Pai no amor do
Espírito.
São estes os sentimentos constantes do Deus com quem havemos de nos
reconciliar e coincidir. Tanto mais quanto, no Espírito de Cristo, somos
nós agora e para os outros o sinal concreto do mesmo Deus que os
procura. Uma Quaresma que nos reconcilie com os sentimentos de Deus é
essencial para que isso mesmo chegue a muitos mais. Reconciliemo-nos com
Deus, para que o mundo Lhe retorne e se restaure. «Uma alma que se
eleva, eleva realmente o mundo».
O que contemplarmos em Deus que nos procura, pela proximidade de
Jesus a todos e a cada um, isso mesmo havemos de reproduzir na atenção
detalhada aos outros, para que, através de nós, no mesmo Espírito, Deus
os continue a recuperar também.
Também ouvimos ao profeta Joel: «Convertei-vos ao Senhor, vosso Deus,
porque Ele é clemente e compassivo, paciente e misericordioso». O
profeta ainda não sabia o que nós sabemos já, ou seja, como a clemência,
compaixão, paciência e misericórdia divinas ganhariam em Cristo a sua
configuração absoluta. Maior razão para nos rendermos à misericórdia
divina, que tão próxima se fez de nós, na vida e nos sentimentos de
Cristo.
A Quaresma que iniciamos tem este conteúdo vivo, de nos rendermos à
misericórdia de Deus e de a reproduzirmos em nós, para que chegue a
todos; e o mundo passe com Cristo para o Pai, repassado por fim dum amor
definido, absolutamente próximo e inteiramente solidário. Tanta coisa
depende disso, que nenhum de nós tardará decerto. Jejuemos do mais, pois
só assim bastaremos; partilhemos os bens, que só em comum serão nossos;
perseveremos na oração, para prosseguirmos com Deus.
Entrar em Quaresma é aceitar um desafio imenso, como é entrar no
próprio coração divino. É um modo poético, e assim mesmo verdadeiro, de
corresponder à revelação bíblica do que Deus foi revelando de Si
próprio, ao longo daquela história exemplar para todos os povos, tempos e
lugares, como aqui e agora. Coração divino, que em Jesus demonstrou a
correspondência absoluta com o coração humano, faminto e sedento de
tantas fomes e sedes.
Correspondência e proximidade que têm um nome próprio e convincente,
ouvido já: “misericórdia”. O realismo deste sentimento divino, traduzido
nas atitudes de Cristo, reproduzidas pelo Espírito na Igreja que somos,
tem hoje a irrecusável urgência das necessidades acrescidas do tempo
que corre.
Mesmo alguns sinais de recuperação económica demoram em repercutir-se
na vida e no estado de espírito de muitas pessoas e famílias, que por
excessivos encargos e falta de trabalho e perspetivas não conseguem
satisfazer necessidades básicas, nem olhar com otimismo o futuro,
especialmente os mais jovens...
Os crentes participam com os seus concidadãos «nas alegrias e
esperanças, nas tristezas e angústias» da sociedade que integram. Mas,
exatamente por serem crentes, em tudo hão de estar com os sentimentos de
Deus revelados em Cristo, isto é, com misericórdia que os aproxime de
toda a pobreza e fragilidade, em comprovada presença e concreto apoio,
correspondendo às multiplicadas carências dos outros. Pode haver, como
legitimamente acontece, mesmo entre os discípulos de Cristo, diferenças
na análise dos problemas e perspetivas distintas para a respetiva
resolução. O que não pode haver é desistência ou atraso quanto ao
essencial, que é responder com empenho às carências pontuais ou
persistentes da sociedade que integram.
Por “misericórdia”, entende-se biblicamente uma atitude favorável em
relação a quem se encontre na miséria e carência; atitude e propriedade
divina, que deve caraterizar também os cristãos. Na Mensagem que nos
dirigiu para esta Quaresma, o Papa Francisco dá-nos um objetivo tão
sugestivo como concreto, quando escreve: «Amados irmãos e irmãs, como
desejo que os lugares onde a Igreja se manifesta, particularmente as
nossas paróquias e as nossas comunidades, se tornem ilhas de
misericórdia no meio do mar da indiferença!»
As sempre referidas práticas quaresmais, que o Evangelho formulou
como esmola, oração e jejum, ganham hoje uma especial tradução como
união reforçada a Deus e ao próximo. Pedindo insistentemente a Deus que
nos dê o seu Espírito misericordioso, sempre prometido: «Pois se vós,
que sois maus, sabeis dar coisas boas aos vossos filhos, quanto mais o
Pai do Céu dará o Espírito Santo àqueles que lho pedem!» (Lc 11, 13). Espírito que, em Jesus, se revela na atenção constante e detalhada a quem sofre e do que quer que sofra.
Igualmente, esmola e jejum traduzem-se como sobriedade solidária,
para que o espaço que esvaziamos em nós se transforme em lugar para os
outros. Como a misericórdia, em que o tudo de Deus dá lugar à
recuperação de todos. Este é o lugar que queremos, na Quaresma que
encetamos. Para que, finalmente, ninguém fique de fora.
Da renúncia quaresmal de 2014, juntámos 300 000 euros para a Ajuda de
Berço, que reforçarão o seu trabalho exemplar de apoio a mães gestantes
e em dificuldade. Como foi dito, destinam-se especialmente à construção
de uma unidade de cuidados continuados pediátricos, para bebés que
deles necessitem depois.
Entretanto, e ouvido o Conselho Presbiteral, a renúncia quaresmal de
2015 no Patriarcado destina-se a apoiar as instituições sociais
diocesanas, designadamente as que acompanham os mais novos, como a Casa
do Gaiato de Lisboa, ou pessoas sem-abrigo e fragilizadas, como a
Comunidade Vida e Paz.
Também assim, trata-se de traduzir do modo mais concreto a misericórdia, que é a alma da Quaresma.
Sé de Lisboa, 18 de fevereiro de 2015
+ Manuel Clemente, Cardeal-Patriarca
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