23 fevereiro, 2019

Papa na Liturgia Penitencial: há um longo caminho pela frente



"Precisamos de reconquistar os nossos irmãos e irmãs nas congregações e nas comunidades, reconquistar a sua confiança e conseguir novamente a sua disponibilidade para colaborarem connosco, para estabelecermos juntos o Reino de Deus", disse o Papa no final de sua alocução. 

Cidade do Vaticano 

No final do terceiro dia do Encontro sobre a Proteção dos Menores na Igreja, o Papa Francisco presidiu na Sala Regia do Palácio Apostólico, a uma Liturgia Penitencial na presença dos presidentes das Conferências Episcopais de todo o mundo. Eis suas palavras:

“Irmãos e irmãs, 
 
todos conhecemos a Parábola do Filho Pródigo. Nós a contamos frequentemente e frequentemente fizemos homilias sobre ela.  Nas nossas congregações e nas nossas comunidades a consideramos nada mais do que óbvia: declama-se aos pecadores para induzi-los ao arrependimento. Talvez se tenha tornado um hábito tão comum, que esquecemos algo importante. Esquecemos rapidamente de aplicar essa Escritura para nós mesmos, de nos ver pelo que somos, ou seja filhos pródigos. 

Precisamente como o filho pródigo do Evangelho, pedimos a nossa parte da herança, ganhamo-la e agora a estamos a esbanjar com muito desempenho. Esta crise dos abusos é uma expressão disso. O Senhor confiou-nos a administração dos bens da salvação, Ele confia e acredita que nós iremos cumprir Sua missão, que vamos proclamar a Boa Nova e vamos construir a estabelecer o Reino de Deus.

Muito pelo contrário, o que fazemos? Fazemos jus ao que nos foi confiado? Nós não poderíamos responder a essa pergunta com um "sim" honesto, não se tem dúvida disso. 

Frequentemente ficamos por demais parados, olhamos para outro lado, evitamos conflitos - estávamos demasiadamente confortáveis para nos confrontarmos com o lado escuro da Igreja.  Traímos portanto a confiança  em nós depostiada, de modo especial em relação ao abuso no âmbito da responsabilidade da Igreja, que é substancialmente nossa responsabilidade. Não garantimos às pessoas a proteção a que elas têm direito, destruímos a esperança e as pessoas foram brutalmente violadas no corpo e no espírito.

O filho pródigo do Evangelho perde tudo: não apenas a sua herança, mas também o seu estado social, a sua boa posição, a sua reputação. Não seria de admirar  a nós coubesse um destino semelhante, se as pessoas falam mal de nós, se há desconfiança em nós, se a nós alguns ameaçam retirar o seu apoio moral. Não devemos reclamar por causa disto: mais do que isto, precisaríamos de nos interrogar sobre o que deveríamos fazer de diferente. Ninguém pode furtar-se, ninguém pode dizer: mas eu pessoalmente não fiz nada de mal. Nós somos irmãos (no episcopado) e não somos responsáveis apenas por nós mesmos, mas também por cada membro da fraternidade e pela própria fraternidade.

O que precisamos fazer de modo diferente e por onde precisamos começar? Olhemos mais uma vez para o filho pródigo do Evangelho. Para ele a situação começa a melhorar ao resolver ser muito humilde, desempenhar cargos muito simples e não pretender nenhum privilégio. A sua situação muda quando ele se reconhece e admite ter cometido um erro, ele confessa isso ao Pai, fala com ele abertamente e está pronto para sofrer as consequências. Deste modo, o Pai experimenta a grande alegria pela volta do seu filho pródigo e ajuda a fazer com que os irmãos se ajudem mutuamente. 

Seremos capazes de fazer isso? Desejaremos fazer isso? O atual encontro vai desvendar isso, deve desvendá-lo, se quisermos demonstrar que somos dignos filhos do Senhor, nosso Pai celeste. Como ouvimos e discutimos hoje e nos dois dias precedentes, isso implica assumirmos responsabilidades, mostrarmos a accountability (a obrigação de se dar conta daquilo que se faz) e instituirmos a transparência.

O caminho à nossa frente para implementarmos de verdade tudo isto de modo sustentável e apropriado é longo. Conseguimos progressos variados caminhando com velocidades diferentes. O encontro atual foi somente um passo entre muitos. Não acreditemos que apenas porque começamos a trocar algo entre nós, todas as dificuldades tenham sido eliminadas. E como para o filho do Evangelho que volta para casa, nem tudo está resolvido – quanto mais não seja, ele vai precisar de reconquistar o eu irmão. Nós precisamos de fazer a mesma coisa: precisamos de reconquistar os nossos irmãos e irmãs nas congregações e nas comunidades, reconquistar a sua confiança e conseguir novamente a sua disponibilidade para colaborarem connosco, para estabelecermos juntos o Reino de Deus"

Testemunho

Durante a liturgia penitencial, também um testemunho:

O abuso, de qualquer tipo, é a maior humilhação que um indivíduo possa sofrer. É preciso confrontar com a consciência de que não se pode defender contra a força superior do agressor. Não  podes escapar do que acontece, mas tens que suportar, não importa o quão mau seja. Quando se vive o abuso, gostaríamos de acabar com tudo. Mas isso não é possível.

Gostarias de escapar, então acontece que não és mais tu mesmo. Gostarias de fugir tentando escapar de ti mesmo. Assim, com o tempo, ficas completamente sozinho. Estás sozinho, porque te retiraste para outro lugar e não podes ou não queres voltar para ti mesmo. Quanto mais acontece, menos retornas a ti mesmo. És outra pessoa e permanecerás sempre assim. O que carregas dentro é como um fantasma, que os outros não são capazes de ver. Nunca te verão e não te conhecerão completamente. O que mais magoa é a certeza de que ninguém vai entender-te. E isso fica contigo pelo resto da vida.

As tentativas de retornar ao verdadeiro eu e de participar no mundo "precedente", como antes do abuso, são tão dolorosas quanto o próprio abuso. Vives sempre em dois mundos ao mesmo tempo. Eu gostaria que os agressores pudessem entender que criam essa divisão nas vítimas. Pelo resto das nossas vidas.

Quanto maior o teu desejo e as ~tuas tentativas de reconciliar esses dois mundos, mais dolorosa é a certeza de que isso não é possível. Não há sonho sem lembranças do que aconteceu, nenhum dia sem recordações (flashbacks).

Agora consigo administrar melhor essa situação, aprendendo a viver com essas duas vidas. Eu tento concentrar-me sobre o meu direito divino de estar vivo. Eu posso e devo estar aqui. Isso dá-me coragem. Acabou agora. Eu posso continuar. Eu tenho que continuar. Se eu desistisse agora ou parasse, deixaria que essa injustiça interferisse na minha vida. Eu posso evitar que isso aconteça aprendendo a controlá-lo e aprendendo a falar sobre isso.

Exame de consciência

A Parábola do Pai misericordioso mostra-nos que Deus oferece o perdão e uma esperança futura. O Filho que deixou o Pai, porém, não pode permanecer longe, mas deve reconhecer a sua culpa, arrepender-se e retornar ao Pai.

Durante três dias, conversamos entre nós e ouvimos as vozes das vítimas sobreviventes sobre os crimes que as crianças e os jovens sofreram na nossa Igreja. Perguntamos um ao outro: como podemos agir com responsabilidade e quais são as medidas que precisamos de tomar agora? Mas para enfrentar o futuro com nova coragem, devemos dizer, como o filho pródigo: "Pai, pequei". Devemos avaliar onde há necessidade de ações concretas para as Igrejas locais, para os membros das nossas Conferências Episcopais, para nós mesmos. E isso exigirá da nossa parte uma visão honesta da situação nos nossos países e das nossas ações.

Que abusos foram cometidos contra crianças e jovens por clérigos e outros membros da Igreja no meu país? O que eu sei sobre as pessoas da minha diocese que foram abusadas e violentadas por padres, diáconos e religiosos? Como a Igreja no meu país respondeu àqueles que foram submetidos a abusos de poder, consciência e abuso sexual? Que obstáculos colocamos na frente deles? Nós os ouvimos? Nós procuramos ajudá-los? Procuramos justiça para eles? Eu mantive as minhas responsabilidades?

Na Igreja do meu país, como nos comportamos com os bispos, sacerdotes, diáconos e religiosos acusados de abuso sexual? Como tratamos aqueles cujos crimes foram estabelecidos? E o que eu pessoalmente fiz para evitar essa injustiça e estabelecer justiça? O que eu deixei de fazer? Que atenção demos no nosso país às pessoas cuja fé foi abalada e às pessoas que sofreram e foram indiretamente feridas e afetadas por tais horríveis eventos? Há ajuda para famílias e parentes das pessoas que foram abusadas? Ajudamos as pessoas nas paróquia onde o acusado e os criminosos estavam a trabalhar? Eu permiti-me acompanhar os sofrimentos dessas pessoas? Que medidas adotamos no nosso país para evitar uma nova injustiça? Trabalhamos para sermos coerentes nas nossas ações? Fomos coerentes? Na minha diocese, fiz todo o possível para fazer justiça e aliviar as feridas das vítimas e das pessoas que sofrem por causa delas? Eu negligenciei o que é importante?

VN

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