Foto: Arautos do Evangelho |
22 de junho de 2014
Saciemos com Deus a fome do mundo
Celebrar o “Corpo de Deus” é relembrar uma história de amor. A mais
verdadeira e autêntica história de amor. Precisamente o amor de Deus
como se manifestou no tempo, como culminou em Cristo e como se há de
manifestar muito concretamente agora.
Ouvíamos na primeira leitura: Caminhava o povo pelo deserto, onde
faltava tudo. Não lhe faltaria o amor de Deus, desse mesmo Deus que o
tirara do Egito e o chamava à terra da liberdade. Daí o maná de que se
alimentaram ano após ano, como sinal dum amor que não cansa. Refiro-me,
claro está ao de Deus, apesar de tudo, apesar até daquele povo de cerviz
dura e esquecimento rápido, muito rápido em relação aos dons de Deus.
Toda a história bíblica, em seguida, cresce e acresce na revelação
dum Deus que não desiste nunca dum povo que, esse sim, desiste quase
sempre. O “quase” restringe-se a alguma gente religiosa e simples que
apesar de tudo esperava, ou a algum profeta que, de tempos a tempos,
lembrava a Lei e retomava a promessa.
Chegaram finalmente os tempos últimos. Quando já ninguém os preveria,
se é que ainda alguém os lembrava até... Um povo sombra do que fora, um
tempo ao invés do que sonharam. Exatamente aí, Deus criou em Maria uma
humanidade imaculada em que Ele próprio pudesse incarnar e ser
inevitavelmente um de nós.
Tal era a sua vontade de nos retomar para si, de nos refazer consigo,
de nos alimentar Ele próprio. De Deus criador a Deus redentor, assim
foi Jesus. Com palavras suas, e há bem pouco ouvidas: «Assim como o Pai,
que vive, me enviou, e eu vivo pelo Pai, também aquele que me come
viverá por mim».
Aprofundemos o mistério, ou seja, esta diviníssima verdade, que em
Jesus se faz também humana. - Porque é que não chegara a lembrança do
maná do deserto, porque é que foi necessário que o próprio Deus se
fizesse em Cristo o pão da nossa vida? Adiantam-se duas razões: porque é
essa a lógica do amor, que do dar coisas passa ao dar-se a si mesmo; e
porque tinha de ultrapassar o excessivo esquecimento nosso pelo
excessivo entregar-se seu.
Muito melhor do que poderíamos balbuciar tais verdades, demonstrou-as
o autor da Carta aos Hebreus num trecho inultrapassável. Como que
ouvindo um diálogo divino, a abrir a incarnação. Face à incapacidade do
povo em corresponder a Deus, entrevê em Deus a vontade se fazer povo,
carne e sangue de quem fosse seu: «Ao entrar no mundo, Cristo diz (ao
Pai): . Suprime, assim, o primeiro culto, para instaurar o segundo. E
foi por essa vontade que nós fomos santificados, pela oferta do corpo de
Jesus Cristo, feita uma vez para sempre» (Heb 10, 5 ss).
Vemos então o que é o corpo de Jesus Cristo, filho de Maria, em
primeira aceção: é a expressão física da vontade de Deus em estar
connosco e da vontade, finalmente humana, de estar com Deus. E assim
mesmo devemos entender o que o corpo seja. Biblicamente, «o corpo é o
que permite ao homem entrar em relação com os seus irmãos e com o
universo, é a sua capacidade de expressão» (Léon-Dufour). Não um objeto
de fazer ou desfazer, desfrutar ou dispensar, mas a manifestação
concreta de alguém que se dá ou pede o nosso dom. Quase em mútua
alimentação, mas sobressaindo o dom e a graça, pois que estes mesmos
geram a retribuição.
O “Corpo de Deus” demonstra-nos a compaixão divina no olhar de Jesus.
O corpo de Deus fala-nos com a autoridade absoluta com que atraía a
tantos e calava os demais. O corpo de Deus suporta-nos na paciência
infinita com que sofreu as nossas dores, salvando-as sob o peso delas. O
corpo de Deus alimenta-nos com tudo o que Cristo transporta, oferece e
salva. Sustenta-nos em Deus e para Deus; para sempre, como também
ouvimos: «Este é o pão que desceu do Céu; não é como aquele que os
vossos pais comeram, e morreram; quem comer deste pão viverá
eternamente».
Assim com Jesus, “Corpo de Deus” no mundo para alimentar
definitivamente a quem O aceite. Pão disponível, como ficou naquela
ceia, que é a última porque é a única. Mas, na segunda leitura, São
Paulo como que estendia a dimensão deste corpo à larguíssima medida de
todos os comungantes.
- Pois, como havemos de entender o que ele diz?! Falava aos cristãos
de Corinto, que eram vários, mas viviam de um só, ressuscitado e
presente, presente porque ressuscitado e em oferta infinita de si mesmo.
Concluindo: «Visto que há um só pão, nós, embora sejamos muitos,
formamos um só corpo, porque participamos do mesmo pão».
Esta afirmação atinge-nos diretamente e, como se diz, em cheio. Se
nos alimentamos de Cristo, palavra e sacramento, formamos com Ele e
entre nós um só corpo, exprimindo o mesmo sentimento de um Deus que de
si mesmo nos sustenta e que, também de si, nos oferece ao mundo, como
Cristo continuado em todos os confins da terra e em cada ocasião do
tempo.
Não é de modo algum por acaso que cada celebração eucarística se
conclui, ou melhor, se expande, com palavras de envio: «Ide em paz e o
Senhor vos acompanhe!». É Ele que vai connosco, para, através de nós,
acompanhar a todos, colmatando assim a imensa solidão do mundo.
Como Ele é “pão”, é assim por nós, que O recebemos, que quer
alimentar o mundo. Já o dissera na multiplicação dos pães: «Dai-lhes vós
mesmos de comer!». Somos nós também, somos nós agora, urgentemente
agora, o corpo de Cristo no mundo, o pão de Deus para matar tanta fome:
fome de vida e fome de paz, fome de alimentos e fome de companhia, fome
de trabalho e fome de verdade. Fome das vidas sem Deus e fome divina de
conviver com todos.
Por tudo isto comecei, dizendo que celebrar o “Corpo de Deus” é
retomar uma história de amor. A verdadeira história dum amor verdadeiro.
- E quanta luz a brilhar daí, quantas lições a tirar de seguida! Deus
que nos alimenta com a vida de Cristo, vida de Cristo feita pão do
mundo, pão do céu a distribuir na terra, por nós todos que o havemos de
levar. Pão da verdade, pão da caridade, pão e oferta nas vidas que se
entregam.
E também corporeidade reencontrada e perfeita, onde se corrija tudo o
que amesquinha os corpos sem alma, os gestos sem sentido, a contrafação
egoísta do que havia de ser expressão de sentimentos belos, autênticos e
finalmente compensadores.
Começamos agora o caminho sinodal da Igreja de Lisboa, partilhando o
grande sonho do Papa Francisco, o “sonho missionário de chegar a todos”.
Cumpramo-lo então e de modo profundamente eucarístico. Oiçamo-lo na
exortação Evangelii Gaudium (nº 264): «A primeira motivação para
evangelizar é o amor que recebemos de Jesus, aquela experiência de
sermos salvos por Ele que nos impele a amá-lo cada vez mais. Com efeito,
um amor que não sentisse a necessidade de falar da pessoa amada, de a
apresentar, de a tornar conhecida, que amor seria? (…) Como é doce
permanecer diante dum crucifixo ou de joelhos diante do Santíssimo
Sacramento, e fazê-lo simplesmente para estar à frente dos seus olhos!
Como nos faz bem deixar que Ele volte a tocar a nossa vida e nos envie
para comunicar a sua vida nova!».
Celebraremos assim o “Corpo de Deus” completo e perfeito, como pode e
deve ser no mundo, por Cristo e em nós, no mesmo Espírito de vida e
amor. Festejemo-lo agora e alarguemo-lo depois. Saciemos com Deus a fome
do mundo, saciemos no mundo a fome divina. A que Jesus tinha de nós, a
que tão profundamente temos de Deus.
+ Manuel Clemente
Sé de Lisboa, 22 de junho de 2014
Patriarcado de Lisboa
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