23 junho, 2014

Homilia de D. Manuel Clemente no Corpo de Deus de 2014

Foto: Arautos do Evangelho
  
22 de junho de 2014

Saciemos com Deus a fome do mundo
Celebrar o “Corpo de Deus” é relembrar uma história de amor. A mais verdadeira e autêntica história de amor. Precisamente o amor de Deus como se manifestou no tempo, como culminou em Cristo e como se há de manifestar muito concretamente agora.
Ouvíamos na primeira leitura: Caminhava o povo pelo deserto, onde faltava tudo. Não lhe faltaria o amor de Deus, desse mesmo Deus que o tirara do Egito e o chamava à terra da liberdade. Daí o maná de que se alimentaram ano após ano, como sinal dum amor que não cansa. Refiro-me, claro está ao de Deus, apesar de tudo, apesar até daquele povo de cerviz dura e esquecimento rápido, muito rápido em relação aos dons de Deus.
 Toda a história bíblica, em seguida, cresce e acresce na revelação dum Deus que não desiste nunca dum povo que, esse sim, desiste quase sempre. O “quase” restringe-se a alguma gente religiosa e simples que apesar de tudo esperava, ou a algum profeta que, de tempos a tempos, lembrava a Lei e retomava a promessa.
Chegaram finalmente os tempos últimos. Quando já ninguém os preveria, se é que ainda alguém os lembrava até... Um povo sombra do que fora, um tempo ao invés do que sonharam. Exatamente aí, Deus criou em Maria uma humanidade imaculada em que Ele próprio pudesse incarnar e ser inevitavelmente um de nós.
Tal era a sua vontade de nos retomar para si, de nos refazer consigo, de nos alimentar Ele próprio. De Deus criador a Deus redentor, assim foi Jesus. Com palavras suas, e há bem pouco ouvidas: «Assim como o Pai, que vive, me enviou, e eu vivo pelo Pai, também aquele que me come viverá por mim».
Aprofundemos o mistério, ou seja, esta diviníssima verdade, que em Jesus se faz também humana. - Porque é que não chegara a lembrança do maná do deserto, porque é que foi necessário que o próprio Deus se fizesse em Cristo o pão da nossa vida? Adiantam-se duas razões: porque é essa a lógica do amor, que do dar coisas passa ao dar-se a si mesmo; e porque tinha de ultrapassar o excessivo esquecimento nosso pelo excessivo entregar-se seu.
Muito melhor do que poderíamos balbuciar tais verdades, demonstrou-as o autor da Carta aos Hebreus num trecho inultrapassável. Como que ouvindo um diálogo divino, a abrir a incarnação. Face à incapacidade do povo em corresponder a Deus, entrevê em Deus a vontade se fazer povo, carne e sangue de quem fosse seu: «Ao entrar no mundo, Cristo diz (ao Pai): . Suprime, assim, o primeiro culto, para instaurar o segundo. E foi por essa vontade que nós fomos santificados, pela oferta do corpo de Jesus Cristo, feita uma vez para sempre» (Heb 10, 5 ss).
Vemos então o que é o corpo de Jesus Cristo, filho de Maria, em primeira aceção: é a expressão física da vontade de Deus em estar connosco e da vontade, finalmente humana, de estar com Deus. E assim mesmo devemos entender o que o corpo seja. Biblicamente, «o corpo é o que permite ao homem entrar em relação com os seus irmãos e com o universo, é a sua capacidade de expressão» (Léon-Dufour). Não um objeto de fazer ou desfazer, desfrutar ou dispensar, mas a manifestação concreta de alguém que se dá ou pede o nosso dom. Quase em mútua alimentação, mas sobressaindo o dom e a graça, pois que estes mesmos geram a retribuição.
O “Corpo de Deus” demonstra-nos a compaixão divina no olhar de Jesus. O corpo de Deus fala-nos com a autoridade absoluta com que atraía a tantos e calava os demais. O corpo de Deus suporta-nos na paciência infinita com que sofreu as nossas dores, salvando-as sob o peso delas. O corpo de Deus alimenta-nos com tudo o que Cristo transporta, oferece e salva. Sustenta-nos em Deus e para Deus; para sempre, como também ouvimos: «Este é o pão que desceu do Céu; não é como aquele que os vossos pais comeram, e morreram; quem comer deste pão viverá eternamente».
Assim com Jesus, “Corpo de Deus” no mundo para alimentar definitivamente a quem O aceite. Pão disponível, como ficou naquela ceia, que é a última porque é a única. Mas, na segunda leitura, São Paulo como que estendia a dimensão deste corpo à larguíssima medida de todos os comungantes.
- Pois, como havemos de entender o que ele diz?! Falava aos cristãos de Corinto, que eram vários, mas viviam de um só, ressuscitado e presente, presente porque ressuscitado e em oferta infinita de si mesmo. Concluindo: «Visto que há um só pão, nós, embora sejamos muitos, formamos um só corpo, porque participamos do mesmo pão».
Esta afirmação atinge-nos diretamente e, como se diz, em cheio. Se nos alimentamos de Cristo, palavra e sacramento, formamos com Ele e entre nós um só corpo, exprimindo o mesmo sentimento de um Deus que de si mesmo nos sustenta e que, também de si, nos oferece ao mundo, como Cristo continuado em todos os confins da terra e em cada ocasião do tempo.
Não é de modo algum por acaso que cada celebração eucarística se conclui, ou melhor, se expande, com palavras de envio: «Ide em paz e o Senhor vos acompanhe!». É Ele que vai connosco, para, através de nós, acompanhar a todos, colmatando assim a imensa solidão do mundo.
Como Ele é “pão”, é assim por nós, que O recebemos, que quer alimentar o mundo. Já o dissera na multiplicação dos pães: «Dai-lhes vós mesmos de comer!». Somos nós também, somos nós agora, urgentemente agora, o corpo de Cristo no mundo, o pão de Deus para matar tanta fome: fome de vida e fome de paz, fome de alimentos e fome de companhia, fome de trabalho e fome de verdade. Fome das vidas sem Deus e fome divina de conviver com todos.
Por tudo isto comecei, dizendo que celebrar o “Corpo de Deus” é retomar uma história de amor. A verdadeira história dum amor verdadeiro. - E quanta luz a brilhar daí, quantas lições a tirar de seguida! Deus que nos alimenta com a vida de Cristo, vida de Cristo feita pão do mundo, pão do céu a distribuir na terra, por nós todos que o havemos de levar. Pão da verdade, pão da caridade, pão e oferta nas vidas que se entregam.
E também corporeidade reencontrada e perfeita, onde se corrija tudo o que amesquinha os corpos sem alma, os gestos sem sentido, a contrafação egoísta do que havia de ser expressão de sentimentos belos, autênticos e finalmente compensadores.
Começamos agora o caminho sinodal da Igreja de Lisboa, partilhando o grande sonho do Papa Francisco, o “sonho missionário de chegar a todos”. Cumpramo-lo então e de modo profundamente eucarístico. Oiçamo-lo na exortação Evangelii Gaudium (nº 264): «A primeira motivação para evangelizar é o amor que recebemos de Jesus, aquela experiência de sermos salvos por Ele que nos impele a amá-lo cada vez mais. Com efeito, um amor que não sentisse a necessidade de falar da pessoa amada, de a apresentar, de a tornar conhecida, que amor seria? (…) Como é doce permanecer diante dum crucifixo ou de joelhos diante do Santíssimo Sacramento, e fazê-lo simplesmente para estar à frente dos seus olhos! Como nos faz bem deixar que Ele volte a tocar a nossa vida e nos envie para comunicar a sua vida nova!». 
Celebraremos assim o “Corpo de Deus” completo e perfeito, como pode e deve ser no mundo, por Cristo e em nós, no mesmo Espírito  de vida e amor. Festejemo-lo agora e alarguemo-lo depois. Saciemos com Deus a fome do mundo, saciemos no mundo a fome divina. A que Jesus tinha de nós, a que tão profundamente temos de Deus. 
+ Manuel Clemente
Sé de Lisboa, 22 de junho de 2014

Patriarcado de Lisboa

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