06 fevereiro, 2018

Nota para a receção do capítulo VIII da exortação apostólica 'Amoris Laetitia'



1. Na exortação apostólica pós-sinodal Amoris Laetitia sobre o amor na família (AL), publicada a 19 de março de 2016, o Papa Francisco dá-nos o quadro geral da compreensão cristã do matrimónio e da família e oportunas indicações sobre a respetiva formação e acompanhamento. No capítulo VIII – Acompanhar, discernir e integrar a fragilidade - não esquece as situações de fragilidade, especialmente as assim chamadas “irregulares”, em que ao matrimónio sucedeu a rutura e um casamento civil. Também estas deverão ser acompanhadas: «Os sacerdotes têm o dever de acompanhar as pessoas interessadas pelo caminho do discernimento segundo a doutrina da Igreja e as orientações do bispo» (AL, 300).

É o que pretendo fazer com esta Nota, aludindo diretamente a três documentos autorizados: a Amoris Laetitia, a correspondência entre os Bispos da Região Pastoral de Buenos Aires e o Papa Francisco e as indicações dadas aos sacerdotes da Diocese do Papa (Roma) pelo seu cardeal-vigário. Naturalmente, devem ler-se estes documentos na íntegra.

Além do mais que se pode e deve fazer no âmbito eclesial, incluindo o tribunal diocesano, atenda-se ao seguinte: «O diálogo com o sacerdote, no foro interno, concorre para a formação de um juízo correto sobre aquilo que dificulta a possibilidade duma participação mais plena na vida da Igreja e sobre os passos que a podem favorecer e fazer crescer. Uma vez que na própria lei não há gradualidade (cf. Familiaris Consortio, 34), este discernimento não poderá jamais prescindir das exigências evangélicas de verdade e caridade propostas pela Igreja. Para que isto aconteça, devem garantir-se as necessárias condições de humildade, privacidade, amor à Igreja e à sua doutrina, na busca da vontade de Deus e no desejo de chegar a uma resposta mais perfeita à mesma» (AL, 300).

E ainda, no que à formação da consciência respeita: «É claro que devemos incentivar o amadurecimento de uma consciência esclarecida, formada e acompanhada pelo discernimento responsável e sério do pastor, e propor uma confiança cada vez maior na graça. Mas esta consciência pode reconhecer não só que uma situação não corresponde objetivamente à proposta geral do Evangelho, mas reconhecer também, com sinceridade e honestidade, aquilo que, por agora, é a resposta generosa que se pode oferecer a Deus e descobrir com certa segurança moral que esta é a doação que o próprio Deus está a pedir no meio da complexidade concreta dos limites, embora não seja ainda plenamente o ideal objetivo. Em todo o caso, lembremo-nos que este discernimento é dinâmico e deve permanecer sempre aberto para novas etapas de crescimento e novas decisões que permitam realizar o ideal de forma mais plena» (AL, 303).

É nesta linha que o Papa considera: «Por causa dos condicionalismos ou dos fatores atenuantes, é possível que uma pessoa, no meio duma situação objetiva de pecado – mas subjetivamente não seja culpável ou não o seja plenamente -, possa viver em graça de Deus, possa amar e possa também crescer na vida de graça e de caridade, recebendo para isso a ajuda da Igreja» (AL, 305). Este trecho segue na nota de rodapé 351: «Em certos casos, poderia haver também a ajuda dos sacramentos.»

Reparemos no caráter restrito (em certos casos) e condicional (poderia) da frase. E o Papa ainda insiste: «Para evitar qualquer interpretação tendenciosa, lembro que, de modo algum, deve a Igreja renunciar a propor o ideal pleno do matrimónio, o projeto de Deus em toda a sua grandeza. […] Hoje, mais importante do que uma pastoral dos falhanços é o esforço pastoral para consolidar os matrimónios e assim evitar as ruturas»» (AL, 307).               


2. A 5 de setembro de 2016 os Bispos da Região Pastoral de Buenos Aires publicaram uma Nota com Critérios básicos para a aplicação do capítulo VIII da Amoris Laetitia. Em Carta desse mesmo dia o Papa agradeceu o documento, nestes termos: «O texto é muito bom e explicita cabalmente o sentido do capítulo VIII da Amoris Laetitia. Não há outras interpretações». A recente publicação oficial destes documentos em Acta Apostolicae Sedis, CVIII/10 (2017) p. 1071 ss, requer-nos a indispensável receção. Os textos foram publicados em português em Lumen, setembro/outubro de 2016. p. 73 ss.

A Nota, assim autorizada, dá-nos uma sequência de aplicação do capítulo de que sublinho as seguintes passagens:

a) Quanto à finalidade: «Em primeiro lugar, recordamos que não convém falar de “autorizações” para aceder aos sacramentos, mas de um processo de discernimento acompanhado por um pastor. É um discernimento “pessoal e pastoral” (AL, 300)». E ainda: «Este caminho não acaba necessariamente nos sacramentos, mas pode orientar-se para outras formas de uma maior integração na vida da Igreja: uma maior presença na comunidade, a participação em grupos de oração ou reflexão, o compromisso nos diversos serviços eclesiais, etc. (cf. AL 299).»

b) Quanto ao processo: «… pode-se propor o compromisso em viver em continência. A Amoris laetitia não ignora as dificuldades desta opção (cf. nota 329) e deixa aberta a possibilidade de aceder ao sacramento da Reconciliação, quando se falhe nesse propósito (cf. nota 364, segundo o ensinamento de S. João Paulo II ao Cardeal W. Baum, de 22/03/1996)». Continuando: «Noutras circunstâncias mais complexas, e quando não se pôde obter uma declaração de nulidade, a opção mencionada pode não ser de facto fatível. Não obstante, é igualmente possível um caminho de discernimento. Quando se chega a reconhecer que, num caso concreto, há limitações que atenuam a responsabilidade e a culpabilidade (cf. 301-302), particularmente quando uma pessoa considere que cairia numa ulterior falta, prejudicando os filhos da nova união, a Amoris Laetitia abre a possibilidade do acesso aos sacramentos da Reconciliação e da Eucaristia (cf. notas 336 e 351). Estes sacramentos, por sua vez, dispõem a pessoa a prosseguir amadurecendo e crescendo com a força da graça.»

c) Entretanto, a Nota prossegue: «Todavia, há que evitar entender esta possibilidade como um acesso não restrito aos sacramentos, ou como se qualquer situação o justificasse. O que se propõe é um discernimento que distinga adequadamente cada caso. Por exemplo, requer especial cuidado “uma nova união que vem de um recente divórcio”, ou “a situação de alguém que reiteradamente falhou nos seus compromissos familiares” (AL, 298). Também quando há uma espécie de apologia ou de ostentação da própria situação “como se fizesse parte do ideal cristão” (AL, 297). Nestes casos mais difíceis, os pastores devem acompanhar com paciência, procurando algum caminho de integração (cf. AL, 297, 299). […] Quando houve injustiças não resolvidas, o acesso aos sacramentos é particularmente escandaloso.»

d) A estas observações, juntam-se as seguintes: «Pode ser conveniente que um eventual acesso aos sacramentos se realize de modo reservado, sobretudo quando se prevejam situações conflituosas. Todavia, simultaneamente, não se deve deixar de acompanhar a comunidade para que cresça no espírito de compreensão e de acolhimento, sem que isso implique criar confusões no ensino da Igreja sobre o matrimónio indissolúvel.»

e) O discernimento continuará ainda, sem desistir da proposta matrimonial cristã na sua inteireza: «O discernimento não se fecha, porque “é dinâmico e deve permanecer sempre aberto a novas etapas de crescimento e novas decisões, que permitam realizar o ideal cristão de modo mais pleno” (AL, 303), segundo a “lei da gradualidade” (AL, 295) e confiando na ajuda da graça.»

Podemos concluir que, também para os Bispos signatários desta Nota, o discernimento não se deterá no que aconteceu ou ainda acontece, devendo caminhar para a adequação plena à verdade evangélica sobre o matrimónio: cf. Mt 5, 31-32; 19, 3-9; Mc 10, 2-12; Lc 16, 18.


3. Logo de seguida, a 19 de setembro de 2016, o então Cardeal Vigário do Papa para a Diocese de Roma, Agostino Vallini, dissertou sobre o tema no respetivo Congresso Pastoral. Sobre estes casos e o papel dos sacerdotes, que não substituem nem desacompanham as consciências, dispôs o seguinte: «Como deve ser entendida esta abertura? Certamente não no sentido de um acesso indiscriminado aos sacramentos, como por vezes acontece, mas de um discernimento que distinga adequadamente caso por caso. Quem pode decidir? Do teor do texto e da mens do seu Autor, não me parece que haja outra solução a não ser a do foro interno. De facto, o foro interno é o caminho favorável para abrir o coração às confidências mais íntimas e, se se tiver estabelecido no tempo uma relação de confiança com um confessor ou com um guia espiritual, é possível iniciar e desenvolver com ele um itinerário de conversão longo, paciente, feito de pequenos passos e de verificações progressivas. Portanto, não pode ser senão o confessor, a certa altura, na sua consciência, depois de muita reflexão e oração, a ter de assumir a responsabilidade perante Deus e o penitente, e pedir que o acesso aos sacramentos se faça de forma reservada. Nestes casos, não termina o caminho de discernimento (cf. AL, 303: discernimento dinâmico) para se alcançarem novas etapas em ordem ao ideal cristão pleno.» E acrescentou: «Precisamente a delicadeza de saber discernir, caso por caso, a vontade de Deus sobre essas pessoas, pede-nos a nós, sacerdotes, que nos preparemos bem para sermos capazes de tomar essas graves decisões». Esta preparação é extensiva a «agentes pastorais leigos» (cf. citado número de Lumen, p. 93-94).


4. Insistindo no acolhimento cordial e respeitoso de todas as pessoas, especialmente nos casos referidos, o Papa Francisco pretende sobretudo ressaltar o valor do matrimónio cristão e a necessidade de o preparar e acompanhar. É uma insistência retomada ao longo de toda a Amoris laetitia, como se lê em trechos tão claros como este: «Como cristãos, não podemos renunciar a propor o matrimónio, para não contradizer a sensibilidade atual, para estar na moda, ou por sentimentos de inferioridade face ao descalabro moral e humano; estaríamos a privar o mundo dos valores que podemos e devemos oferecer» (AL, 35).

Quer antes quer depois da celebração do matrimónio, o Papa Francisco refere o seu caráter vinculativo: «Tanto a pastoral pré-matrimonial como a matrimonial devem ser, antes de mais nada, uma pastoral do vínculo, na qual se ofereçam elementos que ajudem quer a amadurecer o amor quer a superar os momentos duros» (AL, 211). E quase concluindo: «Em suma, a espiritualidade matrimonial é uma espiritualidade do vínculo habitado pelo amor divino» (AL, 315).

Quem seguir o magistério do Papa Francisco sobre o matrimónio dar-se-á conta de tal insistência. Insistência que devemos compartilhar, para sermos fiéis à sua intenção. Ainda muito recentemente: «É sabido como a família, sobretudo no Ocidente, é considerada, infelizmente, uma instituição superada. Em vez da estabilidade de um projeto definitivo, preferem-se ligações fugazes. Ora não se mantém de pé uma casa construída sobre a areia de relacionamentos frágeis e volúveis; mas é preciso a rocha, sobre a qual assentar bases sólidas. E a rocha é precisamente aquela comunhão de amor, fiel e indissolúvel, que une o homem e a mulher, comunhão essa que tem uma beleza austera, um caráter sacro e inviolável e uma função natural na ordem social» (Discurso ao corpo diplomático, in L’Osservatore Romano, ed. port., 11 de janeiro de 2018, p. 10).        


5. Com tudo isto presente, indico algumas alíneas operativas: a) Acompanhar e integrar as pessoas na vida comunitária, na sequência das exortações apostólicas pós-sinodais Familiaris Consortio, 84, Sacramentum Caritatis, 29 e Amoris Laetitia, 299 (cf. apêndice). b) Verificar atentamente a especificidade de cada caso. c) Não omitir a apresentação ao tribunal diocesano, quando haja dúvida sobre a validade do matrimónio. d) Quando a validade se confirma, não deixar de propor a vida em continência na nova situação. e) Atender às circunstâncias excecionais e à possibilidade sacramental, em conformidade com a exortação apostólica e os documentos acima citados. f) Continuar o discernimento, adequando sempre mais a prática ao ideal matrimonial cristão e à maior coerência sacramental.


Reunião de Vigários, 6 de fevereiro de 2018

+ Manuel, Cardeal-Patriarca


Apêndice:
  • S. João Paulo II, Familiaris Consortio, 84: «Juntamente com o Sínodo exorto vivamente os pastores e a inteira comunidade dos féis a ajudar os divorciados, promovendo com caridade solícita que eles não se considerem separados da Igreja, podendo, e melhor devendo, enquanto batizados, participar na sua vida. Sejam exortados a ouvir a Palavra de Deus, a frequentar o Sacrifício da Missa, a perseverar na oração, a incrementar as obras de caridade e as iniciativas da comunidade em favor da justiça, a educar os filhos na fé cristã, a cultivar o espírito e as obras de penitência para assim implorarem, dia a dia, a graça de Deus. Reze por eles a Igreja, encoraje-os, mostre-se mãe misericordiosa e sustente-os na fé e na esperança.»
  • Bento XVI, Sacramentum Caritatis, 29: «… os divorciados recasados, não obstante a sua situação, continuam a pertencer à Igreja, que os acompanha com especial solicitude na esperança de que cultivem, quanto possível, um estilo cristão de vida, através da participação na Santa Missa ainda que sem receber a comunhão, da escuta da Palavra de Deus, da adoração eucarística, da oração, da cooperação na vida comunitária, do diálogo franco com um sacerdote ou um mestre de vida espiritual, da dedicação ao serviço da caridade, das obras de penitência, do empenho na educação dos filhos.»
  • Francisco, Amoris Laetitia, 299: «Acolho as considerações de muitos Padres sinodais que quiseram afirmar que “os batizados que se divorciaram e voltaram a casar civilmente devem ser mais integrados na comunidade cristã sob as diferentes formas possíveis, evitando toda a ocasião de escândalo. A lógica da integração é a chave do seu acompanhamento pastoral, para saberem que não só pertencem ao Corpo de Cristo que é a Igreja, mas podem ter disso mesmo uma experiência feliz e fecunda. São batizados, são irmãos e irmãs, o Espírito Santo derrama neles dons e carismas para o bem de todos. A sua participação pode exprimir-se em diferentes serviços eclesiais, sendo necessário, por isso, discernir quais das diferentes formas de exclusão atualmente praticadas em âmbito litúrgico, pastoral, educativo e institucional possam ser superadas. Não só não devem sentir-se excomungados, mas podem viver e maturar como membros vivos da Igreja, sentindo-a como uma mãe que sempre os acolhe, cuida afetuosamente deles e encoraja-os no caminho da vida e do Evangelho. Esta integração é necessária também para o cuidado e a educação cristã dos seus filhos, que devem ser considerados o elemento mais importante”.»
Patriarcado de Lisboa

Sem comentários:

Enviar um comentário