Uma verdade para genufletir
Missa do dia no Natal de 2013
«E o Verbo fez-se carne e habitou entre nós». Esta curta frase que
acabámos de ouvir, preenche inteiramente o Natal que celebramos e dá-lhe
o significado mais autêntico.
Correndo o risco de se perder entre tantas palavras que continuamente
escutamos, oculta por tantas sombras em que a esquecemos ou
contradizemos, mantém uma força impressionante, que certamente nos
desperta cada vez que ressoa.
Trata-se, como sabemos, do Verbo de Deus e de Deus Verbo, Palavra
dita que tanto nos cria como recria e ultima. É alfa e ómega, primeira e
última letra do alfabeto que nos diz.
No princípio, esta Palavra trouxe-nos à vida: «Deus disse: “Façamos o
ser humano à nossa imagem, à nossa semelhança”» (Gn 1, 26). Agora,
depois de nos ter falado pelos profetas, Deus «falou-nos por seu Filho,
[…] pelo qual também criou o universo», como igualmente ouvimos. A
diferença, ou melhor, a sucessão dos dois momentos está no encontro
conseguido do Criador com a criatura. Encontro verdadeiro e concreto,
com toda a intencionalidade divina a responder e a exceder a inegável
expetativa humana.
De modo profetizado, é certo, mas não propriamente previsível.
Podemos até dizer que, se correspondesse tal e qual aos nossos
prognósticos, não seria certamente divino, porque Deus surpreende sempre
e assim mesmo nos apela à conversão.
À conversão, de facto, amados irmãos. Iluminado por todas as luzes
que acendemos, o Natal tem de ser visto a outra luz, que brilha de outro
modo, desponta onde não esperávamos e incide no que não prevíamos.
Quando Jesus nasceu no presépio de Belém, a única luz veio do céu,
pois as da terra iluminavam as cortes de Herodes ou de César Augusto. E
isto mesmo apela à conversão do nosso olhar, para o fixarmos no presépio
continuado deste mundo em que Deus nasce e aí mesmo nos espera.
Presépio que não perde a sua qualidade essencial de verdade humilde,
transcendente proximidade e comunhão realizada.
Fixemo-nos ainda um pouco naquelas palavras: «O Verbo fez-se carne».
Carne que somos nós, humanidade de todos e de cada um, enquanto sente e
sofre. Quando queremos dizer que algo tocou profundamente alguém, é
assim mesmo que o referimos: «Sentiu na própria carne».
Isto para significar que a Palavra criadora é agora Palavra
redentora, que toma por dentro a nossa condição para a remir de muitas
contradições, enchendo de vida o que já seria definhamento e morte.
Definhamos e morremos quando deixamos sumir-se o som da Palavra que nos
cria e sustenta na vida. Renascemos por fim, quando essa mesma Palavra
incarna na nossa carne e inteiramente nos profere.
Acolher o Natal de Cristo na nossa carne, é deixar que a sua presença
e o seu Espírito nos recriem, no abandono total a um Deus que não
desiste de ninguém, esteja onde estiver e como estiver. Como Pai,
aguarda sempre o nosso regresso. E, ao contrário do irmão mais velho da
parábola, vem buscar-nos em Cristo para lhe regressarmos por fim.
Vem buscar-nos aí mesmo onde nos extinguíamos, na carne enfraquecida
da humanidade que sofre. Aliás, não nos encontraria doutro modo, como o
sabia Ele e, tantas vezes, nos esquecemos nós.
Esquecemo-lo facilmente, quando nos alienamos em autossuficiências
desmentidas; esquecemo-lo facilmente quando descuidamos a insuficiência
dos outros, as suas necessidades à espera de solidariedade prática e
convicta. Deus diz-Se na pobreza de Cristo e espera-nos na pobreza dos
outros.
É tão bela e tão exigente a seguinte meditação do Papa Francisco,
detalhando o Natal prolongado de Cristo: «O Salvador nasceu num
presépio, entre animais, como sucedia com os filhos dos mais pobres; foi
apresentado no Templo, juntamente com duas pombinhas, a oferta de quem
não podia permitir-se pagar um cordeiro; cresceu num lar de simples
trabalhadores e trabalhou com as suas mãos para ganhar o pão. Quando
começou a anunciar o Reino, seguiam-no multidões de deserdados […]. A
quantos sentiam o peso do sofrimento, acabrunhados pela pobreza,
assegurou que Deus os tinha no âmago do seu coração […]; e com eles se
identificou: “Tive fome e destes-me de comer”, ensinando-nos que a
misericórdia para com eles é a chave do Céu» (Evangelium Gaudii, 197).
Concluamos de vez que a resposta às necessidades dos outros é o lugar
legítimo da celebração do Natal. Percebamos por fim que o Verbo
incarnado nos espera aí mesmo, na carne de quem sofre. Refere-o também e
expressamente o Papa Francisco, noutro passo da sua exortação: «Às
vezes sentimos a tentação de ser cristãos, mantendo uma prudente
distância das chagas do Senhor. Mas Jesus quer que toquemos a miséria
humana, que toquemos a carne sofredora dos outros» (EG, 270).
É certo, amados irmãos, que a quadra natalícia está repleta duma
doçura especial, nos reencontros familiares e sociais que felizmente
ocasiona. Multiplicamo-nos em expressões de muita arte e afeto, para
traduzir um sentimento grande que nesta altura nos toca. Redobramos
proximidades, que oxalá se mantenham depois. Mas toda a beleza e
aconchego deste dia, não deve alhear-nos do imenso apelo à conversão que
sobretudo é.
Celebrar a incarnação de Deus na realidade humana, do nascimento num
presépio à morte numa cruz, só pode levar-nos ao seu encontro
precisamente aí: na frágil e sofredora carne do mundo. A adoração
legitima-se no serviço, a fé atua pela caridade – e desta mesma se
alimenta, como num encontro interpessoal, generoso e verdadeiro.
Daqui a pouco recitaremos o Credo da nossa fé, resumo verdadeiro de
tudo o que cremos. E, neste dia, iremos genufletir às palavras «E
incarnou pelo Espírito Santo no seio da Virgem Maria e se fez homem».
É bom que a Liturgia o indique, realçando a verdade celebrada. Melhor
ainda será, ao continuarmos assim diante de todos, como aquele Menino o
fez já crescido e nos mandou repetir sempre. Como que resumindo o
sentido pleno da sua vida entregue, «deitou água na bacia e começou a
lavar os pés aos discípulos […]. Depois de lhes ter lavado os pés e de
ter posto o manto, voltou a sentar-se e disse-lhes: “Compreendeis o que
vos fiz? […] Se eu, o Senhor e o Mestre, vos lavei os pés, também vós
deveis lavar os pés uns aos outros”» (Jo 13, 5 ss).
De joelhos diante do imenso mistério de Deus incarnado, inclinemo-nos
depois, em serviço constante, diante de toda a realidade humana em que a
incarnação continua. Sirvamos nos outros Aquele que nos serviu
primeiro. - Ensine-nos Maria, a “serva do Senhor”; ajude-nos José, o
guardião da Vida!
+ Manuel Clemente, Patriarca de Lisboa
Sé de Lisboa, 25 de dezembro de 2013 (Missa do dia)
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