25 dezembro, 2013

Homilia de D. Manuel Clemente no Dia de Natal - 2013



Uma verdade para genufletir
Missa do dia no Natal de 2013

«E o Verbo fez-se carne e habitou entre nós». Esta curta frase que acabámos de ouvir, preenche inteiramente o Natal que celebramos e dá-lhe o significado mais autêntico.

Correndo o risco de se perder entre tantas palavras que continuamente escutamos, oculta por tantas sombras em que a esquecemos ou contradizemos, mantém uma força impressionante, que certamente nos desperta cada vez que ressoa.

Trata-se, como sabemos, do Verbo de Deus e de Deus Verbo, Palavra dita que tanto nos cria como recria e ultima. É alfa e ómega, primeira e última letra do alfabeto que nos diz.

No princípio, esta Palavra trouxe-nos à vida: «Deus disse: “Façamos o ser humano à nossa imagem, à nossa semelhança”» (Gn 1, 26). Agora, depois de nos ter falado pelos profetas, Deus «falou-nos por seu Filho, […] pelo qual também criou o universo», como igualmente ouvimos. A diferença, ou melhor, a sucessão dos dois momentos está no encontro conseguido do Criador com a criatura. Encontro verdadeiro e concreto, com toda a intencionalidade divina a responder e a exceder a inegável expetativa humana.

De modo profetizado, é certo, mas não propriamente previsível. Podemos até dizer que, se correspondesse tal e qual aos nossos prognósticos, não seria certamente divino, porque Deus surpreende sempre e assim mesmo nos apela à conversão.

À conversão, de facto, amados irmãos. Iluminado por todas as luzes que acendemos, o Natal tem de ser visto a outra luz, que brilha de outro modo, desponta onde não esperávamos e incide no que não prevíamos.

Quando Jesus nasceu no presépio de Belém, a única luz veio do céu, pois as da terra iluminavam as cortes de Herodes ou de César Augusto. E isto mesmo apela à conversão do nosso olhar, para o fixarmos no presépio continuado deste mundo em que Deus nasce e aí mesmo nos espera. Presépio que não perde a sua qualidade essencial de verdade humilde, transcendente proximidade e comunhão realizada.

Fixemo-nos ainda um pouco naquelas palavras: «O Verbo fez-se carne». Carne que somos nós, humanidade de todos e de cada um, enquanto sente e sofre. Quando queremos dizer que algo tocou profundamente alguém, é assim mesmo que o referimos: «Sentiu na própria carne».

Isto para significar que a Palavra criadora é agora Palavra redentora, que toma por dentro a nossa condição para a remir de muitas contradições, enchendo de vida o que já seria definhamento e morte. Definhamos e morremos quando deixamos sumir-se o som da Palavra que nos cria e sustenta na vida. Renascemos por fim, quando essa mesma Palavra incarna na nossa carne e inteiramente nos profere.

Acolher o Natal de Cristo na nossa carne, é deixar que a sua presença e o seu Espírito nos recriem, no abandono total a um Deus que não desiste de ninguém, esteja onde estiver e como estiver. Como Pai, aguarda sempre o nosso regresso. E, ao contrário do irmão mais velho da parábola, vem buscar-nos em Cristo para lhe regressarmos por fim.

Vem buscar-nos aí mesmo onde nos extinguíamos, na carne enfraquecida da humanidade que sofre. Aliás, não nos encontraria doutro modo, como o sabia Ele e, tantas vezes, nos esquecemos nós.

Esquecemo-lo facilmente, quando nos alienamos em autossuficiências desmentidas; esquecemo-lo facilmente quando descuidamos a insuficiência dos outros, as suas necessidades à espera de solidariedade prática e convicta. Deus diz-Se na pobreza de Cristo e espera-nos na pobreza dos outros.

É tão bela e tão exigente a seguinte meditação do Papa Francisco, detalhando o Natal prolongado de Cristo: «O Salvador nasceu num presépio, entre animais, como sucedia com os filhos dos mais pobres; foi apresentado no Templo, juntamente com duas pombinhas, a oferta de quem não podia permitir-se pagar um cordeiro; cresceu num lar de simples trabalhadores e trabalhou com as suas mãos para ganhar o pão. Quando começou a anunciar o Reino, seguiam-no multidões de deserdados […]. A quantos sentiam o peso do sofrimento, acabrunhados pela pobreza, assegurou que Deus os tinha no âmago do seu coração […]; e com eles se identificou: “Tive fome e destes-me de comer”, ensinando-nos que a misericórdia para com eles é a chave do Céu» (Evangelium Gaudii, 197).

Concluamos de vez que a resposta às necessidades dos outros é o lugar legítimo da celebração do Natal. Percebamos por fim que o Verbo incarnado nos espera aí mesmo, na carne de quem sofre. Refere-o também e expressamente o Papa Francisco, noutro passo da sua exortação: «Às vezes sentimos a tentação de ser cristãos, mantendo uma prudente distância das chagas do Senhor. Mas Jesus quer que toquemos a miséria humana, que toquemos a carne sofredora dos outros» (EG, 270).

É certo, amados irmãos, que a quadra natalícia está repleta duma doçura especial, nos reencontros familiares e sociais que felizmente ocasiona. Multiplicamo-nos em expressões de muita arte e afeto, para traduzir um sentimento grande que nesta altura nos toca. Redobramos proximidades, que oxalá se mantenham depois. Mas toda a beleza e aconchego deste dia, não deve alhear-nos do imenso apelo à conversão que sobretudo é.
Celebrar a incarnação de Deus na realidade humana, do nascimento num presépio à morte numa cruz, só pode levar-nos ao seu encontro precisamente aí: na frágil e sofredora carne do mundo. A adoração legitima-se no serviço, a fé atua pela caridade – e desta mesma se alimenta, como num encontro interpessoal, generoso e verdadeiro.

Daqui a pouco recitaremos o Credo da nossa fé, resumo verdadeiro de tudo o que cremos. E, neste dia, iremos genufletir às palavras «E incarnou pelo Espírito Santo no seio da Virgem Maria e se fez homem».

É bom que a Liturgia o indique, realçando a verdade celebrada. Melhor ainda será, ao continuarmos assim diante de todos, como aquele Menino o fez já crescido e nos mandou repetir sempre. Como que resumindo o sentido pleno da sua vida entregue, «deitou água na bacia e começou a lavar os pés aos discípulos […]. Depois de lhes ter lavado os pés e de ter posto o manto, voltou a sentar-se e disse-lhes: “Compreendeis o que vos fiz? […] Se eu, o Senhor e o Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos outros”» (Jo 13, 5 ss).

De joelhos diante do imenso mistério de Deus incarnado, inclinemo-nos depois, em serviço constante, diante de toda a realidade humana em que a incarnação continua. Sirvamos nos outros Aquele que nos serviu primeiro. - Ensine-nos Maria, a “serva do Senhor”; ajude-nos José, o guardião da Vida!

+ Manuel Clemente, Patriarca de Lisboa
Sé de Lisboa, 25 de dezembro de 2013 (Missa do dia)

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