Foto: Patriarcado de Lisboa |
Um tempo novo, de todos para cada um e de cada um para todos
Missa da meia-noite no Natal de 2013
Com a saudação amiga que vos dirijo, vão também os votos sinceros de
que este Natal corresponda àquelas aspirações de felicidade e paz que o
Criador não deixa de suscitar no coração humano.
É muito significativo que o nascimento de Cristo, dois milénios
atrás, marque o nosso calendário, de crentes e até de não crentes, do
modo tão particular e profundo com que continua sempre.
Do sentimento pessoal ao ambiente familiar, em muitas instituições
particulares ou públicas, no mundo cultural e inter-religioso, perpassa
um certo espírito de Natal que a ninguém deixa absolutamente de fora. E,
num país como o nosso, em que o cristianismo, mesmo sem ser exclusivo, é
propriamente estrutural, tudo isto sobressai, com muitas expressões de
verdade, bondade e beleza. Dessas mesmas que tanto requeremos, como pão
para a boca e para o espírito.
Será este o primeiro motivo de meditação: O Natal de Cristo não
perde, antes redobra, a sua novidade e atração, abrindo um futuro que
não é outra coisa senão o que aconteceu no presépio de Belém, fazendo-se
presépio do mundo.
Mais do que qualquer espaço ou geografia, afinal tão condicionados
pela nossa vontade de os preencher e dominar, manifestou-se ali «a graça
de Deus, fonte de salvação para todos os homens», como há pouco
ouvimos. Sendo graça, é dom de Deus e não conquista nossa. Sendo de
Deus, é total e há de chegar a cada um, começando pela pequenez das
nossas pessoas e situações, como naquele Menino e naquela lapa de Belém,
pois «nem havia lugar para eles na hospedaria».
Na sua recente exortação – que tão bem acolhida foi, dentro e fora do
espaço eclesial estrito, por reafirmar princípios de redobrada urgência
sociocultural –, escreve o Papa Francisco: «Dar prioridade ao tempo é
ocupar-se mais com iniciar processos do que possuir espaços. […]
Trata-se de privilegiar as ações que geram novos dinamismos na sociedade
e comprometem outras pessoas e grupos que os desenvolverão até
frutificarem em acontecimentos históricos importantes. Sem ansiedade,
mas com convicções claras e tenazes» (Evangelii Gaudium, 223).
Creio estar aqui a razão mais forte para a persistência do Natal de
Cristo e da sua influência em nós. Nada começou estrondosamente, antes
no silêncio da noite e na pequenez daquele estábulo e dos seus
ocasionais ocupantes. Mas era tanta a verdade intrínseca do que ali
acontecia – verdade total, pois reunia céu e terra – que nunca mais
deixou de crescer e crescer por atração, ano após ano e século após
século. Dito doutro modo e com o Papa Francisco, criou um “tempo” novo,
duma novidade que sobra para o futuro.
Então como agora, havia aquele povo e os outros povos, havia
governadores e impérios, havia gente simples e alguns poderosos, a
sobrevivência duns e o esbanjamento doutros. Havia de tudo o que ainda
hoje tão contraditoriamente nos chega...
Mas nasceu aquele Menino, o “eterno nascido de ainda agora” como lhe
chamou um dos nossos clássicos (Pe. Manuel Bernardes); e como nasceu
assim viveu, autêntico, generoso e solidário, todo divino por ser “Deus
de Deus” e todo humano por ser “Filho de Maria”. E as coisas começaram a
mudar, numa convivência nova que não parou de crescer. Continuará a
crescer, se for como ali foi. O único poder do céu é a sua partilha na
terra, feita com simplicidade e confiança, estas sim vencedoras e
convincentes.
Um episódio entre tantos, contado há dias por uma generosa mãe de
família que alarga o coração a muitos sem-abrigo da nossa cidade. Certa
noite, quando já tinham distribuído todos os alimentos que traziam, foi
abordada por uma jovem que insistentemente lhe pedia alguma coisa para
comer. Mesmo sabendo que já não havia nada na panela, ainda voltou a
abri-la e, vendo bem, encontrou que chegasse e até sobrasse… Dizia-me
esta senhora que não desiste de voltar semana após semana ao encontro
dos sem-abrigo, por eles com certeza, mas também para permanecer no
grande milagre que só acontece a quem partilha. Como àqueles pastores de
que o Evangelho falava, a quem «a glória do Senhor cercou de luz».
Sabemos como os grandes problemas que enfrentamos enquanto sociedade
também requerem soluções estruturais e propriamente políticas. Mas
nenhuma delas se conseguirá sem começar pelo princípio. E o princípio do
tempo novo que esta noite celebramos está no coração de quem se dispõe a
ser com os outros, dos outros e para os outros. Como o daquele Menino
chamado “Emanuel”, que significa precisamente Deus connosco, só
percetível quando estamos de facto com os outros.
É este sentimento e convicção que compartilho com todos, em noite tão
singular. As grandes dificuldades de hoje não são maiores do que as de
há dois mil anos. Mas são as de agora, das que atingem a vida em todo o
arco da existência humana, da conceção à morte natural; das que
dificultam a sobrevivência digna e o trabalho para todos; das que quase
se opõem à constituição e ao sustento das famílias e à criação dos
filhos, tal como ao acompanhamento dos doentes ou idosos; das que nos
tocam diretamente a nós e das que pesam drasticamente sobre os naturais
doutros países, a quem tudo falta e nos batem à porta…
Que nada disto nos tolha e paralise, como não o fez àquele Menino, do
presépio em que nasceu até à cruz em que se entregou por nós e para
nós, humanidade inteira de qualquer tempo ou geografia. Viveu em pouco
espaço e por poucos anos. Mas tão intensamente o fez, em cada gesto,
encontro e atitude, que abriu um caminho onde a história ganhou rumo, o
nosso rumo.
Façamos o mesmo, agora nós: Na vossa casa, na vossa vizinhança, na
vossa escola, empresa ou hospital, seja onde for que estiverdes hoje,
amanhã ou depois, fazei o que importa e não desistais do possível – uma
palavra, um gesto, um compromisso -, um que seja, dia após dia, no mesmo
sentido de solidariedade, justiça e paz. Vereis que o caminho se abre,
etapa após etapa, luminoso e certo. E - deixai-me dizer assim - com dois
mil anos de garantia…
Daquela noite em Belém, sem lugar na hospedaria, à outra tarde em
Jerusalém, fora dos muros da cidade, três décadas depois; das tábuas do
presépio ao madeiro da cruz, tanto bastou a Cristo para se entregar por
nós, na intensidade do seu amor total, do pouco para o muito, do quase
nada para o imenso tudo que finalmente irradia.
Comenta um teólogo: «O Messias deve nascer como um menino, pois assim
o quer a profecia: “Um menino nos nasceu”. E só por ser um menino é que
“o seu reino será grande”. […] É como uma universalidade vertical:
entre a glória mais esplendorosa do alto e a pobreza mais extrema cá de
baixo, reina uma perfeita correspondência e unidade» (cf. H.U. von
Balthasar, Luz de la Palabra, Madrid, Ediciones Encuentro, 1998, p. 21).
A partir daqui, neste tempo novo que então começou, sabemos que a
totalidade do dom se manifesta na simplicidade dos gestos – autênticos e
concretos, consequentes e solidários.
É isto mesmo que permite dizer-vos, sobretudo a quem mais precisar
neste momento, no corpo ou no espírito: - Santo, luminoso e feliz Natal!
Estaremos convosco num tempo novo, que só pode ser de todos para cada
um e de cada um para todos.
+ Manuel Clemente, Patriarca de Lisboa
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