25 dezembro, 2013

Homilia de D. Manuel Clemente na Missa da Noite de Natal - 2013

Foto: Patriarcado de Lisboa


Um tempo novo, de todos para cada um e de cada um para todos
Missa da meia-noite no Natal de 2013

Com a saudação amiga que vos dirijo, vão também os votos sinceros de que este Natal corresponda àquelas aspirações de felicidade e paz que o Criador não deixa de suscitar no coração humano.

É muito significativo que o nascimento de Cristo, dois milénios atrás, marque o nosso calendário, de crentes e até de não crentes, do modo tão particular e profundo com que continua sempre.

Do sentimento pessoal ao ambiente familiar, em muitas instituições particulares ou públicas, no mundo cultural e inter-religioso, perpassa um certo espírito de Natal que a ninguém deixa absolutamente de fora. E, num país como o nosso, em que o cristianismo, mesmo sem ser exclusivo, é propriamente estrutural, tudo isto sobressai, com muitas expressões de verdade, bondade e beleza. Dessas mesmas que tanto requeremos, como pão para a boca e para o espírito.

Será este o primeiro motivo de meditação: O Natal de Cristo não perde, antes redobra, a sua novidade e atração, abrindo um futuro que não é outra coisa senão o que aconteceu no presépio de Belém, fazendo-se presépio do mundo.

Mais do que qualquer espaço ou geografia, afinal tão condicionados pela nossa vontade de os preencher e dominar, manifestou-se ali «a graça de Deus, fonte de salvação para todos os homens», como há pouco ouvimos. Sendo graça, é dom de Deus e não conquista nossa. Sendo de Deus, é total e há de chegar a cada um, começando pela pequenez das nossas pessoas e situações, como naquele Menino e naquela lapa de Belém, pois «nem havia lugar para eles na hospedaria».  

Na sua recente exortação – que tão bem acolhida foi, dentro e fora do espaço eclesial estrito, por reafirmar princípios de redobrada urgência sociocultural –, escreve o Papa Francisco: «Dar prioridade ao tempo é ocupar-se mais com iniciar processos do que possuir espaços. […] Trata-se de privilegiar as ações que geram novos dinamismos na sociedade e comprometem outras pessoas e grupos que os desenvolverão até frutificarem em acontecimentos históricos importantes. Sem ansiedade, mas com convicções claras e tenazes» (Evangelii Gaudium, 223).

Creio estar aqui a razão mais forte para a persistência do Natal de Cristo e da sua influência em nós. Nada começou estrondosamente, antes no silêncio da noite e na pequenez daquele estábulo e dos seus ocasionais ocupantes. Mas era tanta a verdade intrínseca do que ali acontecia – verdade total, pois reunia céu e terra – que nunca mais deixou de crescer e crescer por atração, ano após ano e século após século. Dito doutro modo e com o Papa Francisco, criou um “tempo” novo, duma novidade que sobra para o futuro.

Então como agora, havia aquele povo e os outros povos, havia governadores e impérios, havia gente simples e alguns poderosos, a sobrevivência duns e o esbanjamento doutros. Havia de tudo o que ainda hoje tão contraditoriamente nos chega...

Mas nasceu aquele Menino, o “eterno nascido de ainda agora” como lhe chamou um dos nossos clássicos (Pe. Manuel Bernardes); e como nasceu assim viveu, autêntico, generoso e solidário, todo divino por ser “Deus de Deus” e todo humano por ser “Filho de Maria”. E as coisas começaram a mudar, numa convivência nova que não parou de crescer. Continuará a crescer, se for como ali foi. O único poder do céu é a sua partilha na terra, feita com simplicidade e confiança, estas sim vencedoras e convincentes.

Um episódio entre tantos, contado há dias por uma generosa mãe de família que alarga o coração a muitos sem-abrigo da nossa cidade. Certa noite, quando já tinham distribuído todos os alimentos que traziam, foi abordada por uma jovem que insistentemente lhe pedia alguma coisa para comer. Mesmo sabendo que já não havia nada na panela, ainda voltou a abri-la e, vendo bem, encontrou que chegasse e até sobrasse… Dizia-me esta senhora que não desiste de voltar semana após semana ao encontro dos sem-abrigo, por eles com certeza, mas também para permanecer no grande milagre que só acontece a quem partilha. Como àqueles pastores de que o Evangelho falava, a quem «a glória do Senhor cercou de luz».

Sabemos como os grandes problemas que enfrentamos enquanto sociedade também requerem soluções estruturais e propriamente políticas. Mas nenhuma delas se conseguirá sem começar pelo princípio. E o princípio do tempo novo que esta noite celebramos está no coração de quem se dispõe a ser com os outros, dos outros e para os outros. Como o daquele Menino chamado “Emanuel”, que significa precisamente Deus connosco, só percetível quando estamos de facto com os outros.  

É este sentimento e convicção que compartilho com todos, em noite tão singular. As grandes dificuldades de hoje não são maiores do que as de há dois mil anos. Mas são as de agora, das que atingem a vida em todo o arco da existência humana, da conceção à morte natural; das que dificultam a sobrevivência digna e o trabalho para todos; das que quase se opõem à constituição e ao sustento das famílias e à criação dos filhos, tal como ao acompanhamento dos doentes ou idosos; das que nos tocam diretamente a nós e das que pesam drasticamente sobre os naturais doutros países, a quem tudo falta e nos batem à porta…

Que nada disto nos tolha e paralise, como não o fez àquele Menino, do presépio em que nasceu até à cruz em que se entregou por nós e para nós, humanidade inteira de qualquer tempo ou geografia. Viveu em pouco espaço e por poucos anos. Mas tão intensamente o fez, em cada gesto, encontro e atitude, que abriu um caminho onde a história ganhou rumo, o nosso rumo.

Façamos o mesmo, agora nós: Na vossa casa, na vossa vizinhança, na vossa escola, empresa ou hospital, seja onde for que estiverdes hoje, amanhã ou depois, fazei o que importa e não desistais do possível – uma palavra, um gesto, um compromisso -, um que seja, dia após dia, no mesmo sentido de solidariedade, justiça e paz. Vereis que o caminho se abre, etapa após etapa, luminoso e certo. E - deixai-me dizer assim - com dois mil anos de garantia…

Daquela noite em Belém, sem lugar na hospedaria, à outra tarde em Jerusalém, fora dos muros da cidade, três décadas depois; das tábuas do presépio ao madeiro da cruz, tanto bastou a Cristo para se entregar por nós, na intensidade do seu amor total, do pouco para o muito, do quase nada para o imenso tudo que finalmente irradia.
Comenta um teólogo: «O Messias deve nascer como um menino, pois assim o quer a profecia: “Um menino nos nasceu”. E só por ser um menino é que “o seu reino será grande”. […] É como uma universalidade vertical: entre a glória mais esplendorosa do alto e a pobreza mais extrema cá de baixo, reina uma perfeita correspondência e unidade» (cf. H.U. von Balthasar, Luz de la Palabra, Madrid, Ediciones Encuentro, 1998, p. 21). A partir daqui, neste tempo novo que então começou, sabemos que a totalidade do dom se manifesta na simplicidade dos gestos – autênticos e concretos, consequentes e solidários.     

É isto mesmo que permite dizer-vos, sobretudo a quem mais precisar neste momento, no corpo ou no espírito: - Santo, luminoso e feliz Natal! Estaremos convosco num tempo novo, que só pode ser de todos para cada um e de cada um para todos.

+ Manuel Clemente, Patriarca de Lisboa    
Sé de Lisboa, 25 de dezembro de 2013 (Missa da meia-noite)

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