26 maio, 2016

Homilia na Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo [VIDEO]


A memória viva da Ceia do Senhor

«Irmãos: Eu recebi do Senhor o que também vos transmiti: o Senhor Jesus, na noite em que ia ser entregue, tomou o pão e, dando graças, partiu-o e disse: “Isto é o meu Corpo, entregue por vós. Fazei isto em memória de Mim. Do mesmo modo, no fim da ceia, tomou o cálice e disse: “Este cálice é a nova aliança no meu Sangue. Todas as vezes que o beberdes, fazei-o em memória de Mim”. Na verdade, todas as vezes que comerdes deste pão e beberdes deste cálice, anunciareis a morte do Senhor, até que Ele venha.»
Assim encontramos, neste trecho de São Paulo, a primeira narrativa da Ceia do Senhor. E, parecendo sucinta, diz-nos tudo o que fazemos como cristãos nos vinte séculos que levamos no mundo e para o mundo.
Diz-nos que somos uma memória, em torno dum sacramento e responsabilizados numa missão.
Que somos uma memória... Porque exatamente isso somos, a memória de quanto Jesus disse e fez, e de como se disse no que fez. A Ceia foi a última, porque já nada mais há a assinalar, quando num gesto se resume a vida inteira, com o seu significado para Deus e para todos. Aquele pão feito corpo, indicava quem o dizia assim, pois tudo nele fora oferta, não guardando para si nada do que recebera do seu Pai.
Do nascimento virginal em Maria, pois que era oferta exclusiva de Deus, à vida em Nazaré da Galileia, com a simplicidade das obras e dos dias em que totalmente vivia e convivia; aos anos seguintes, de terra em terra para abrir a todos o Reino que trazia, tudo em Jesus era corpo entregue, e assim foi até à cruz. Tudo como um pão que se oferece e a si mesmo se reparte. Tudo como sangue derramado, na aliança definitiva, em que à vida se corresponde com a vida – para a vida do mundo.
E porque a oferta foi inteira, preenche-nos inteiramente a memória e assim mesmo deve ser, pois dela somos herdeiros e atores. A memória dum corpo entregue, nisto mesmo percebendo à luz de Cristo que dizer “corpo” não é referir uma coisa que se tenha e de que se possa dispor a bel-prazer próprio ou alheio, mas exatamente o que somos e havemos de ser como “pessoas”, isto é, sujeitos em relação. Como as palavras de Jesus eram Jesus Palavra, os silêncios de Jesus eram Jesus Silêncio, os gestos de Jesus eram Jesus Gesto, a vida de Jesus era Jesus Vida.
E em tudo isto “corpo”, isto é, pessoa divina e humana, em relação que diviniza a humanidade que o acolhe. Falava para animar, calava para escutar, agia para salvar, vivia para dar vida. E assim mesmo morreu, num corpo trespassado de que mais saía sangue, ou seja vida e vida e nova, do que entravam os pregos ou a lança, que lhe perfuraram pés, mãos e peito, como também os espinhos da coroa que lhe deram. O corpo trespassado de Jesus é como um pão de grãos triturados, que afinal nos alimenta e sacia.

A esta luz fortíssima, amados irmãos, vislumbremos hoje o que realmente somos, a partir do Corpo entregue do Senhor Jesus. Vislumbremos que, enquanto corpo, enquanto falamos e calamos, fazemos ou deixamos de fazer isto ou aquilo, é sempre e só a nós que mencionamos, uns dos outros, uns com os outros e uns para os outros.
Vejamos, muito consequentemente, o que significa também a corporeidade de cada um, desde a vida embrionária à vida saudável, enfraquecida, ou moribunda, que, em qualquer dos casos, é sempre manifestação da pessoa que se forma, mantém ou vai partindo. Porque «a vida não acaba, apenas se transforma» e a relação permanece, ativa ou latente. Na vida e na Páscoa do Senhor aprendemos o que seja a vida: é comunhão, corporalmente atuada em palavras, silêncios e gestos, que quanto mais se reparte mais acresce, na fermentação absoluta do Espírito de Cristo. Esse mesmo Espírito que compartilha com o Pai e nos faz viver em vida repartida.
Comungamo-Lo pois, ao Corpo de Cristo, para sermos comunhão e fazermos comunhão. Por isso mesmo, na epístola paulina de que se retira a notícia da Ceia do Senhor, logo se referem as exigências para legitimamente o fazermos. Se comungamos o Senhor que se oferece como alimento, temos de alimentar também os outros, com tudo o que lhes devemos de respeito, disponibilidade e serviço. Porque a morte do Senhor, como a Ceia assinalou, foi morte para si e vida para os outros, sintetizando ali o que fora a sua vida inteira e inteiramente o fora. Um corpo num gesto, um sinal absoluto de doação e partilha.
Dois mil anos de cristianismo, com tudo o que os recordam e retomam – como esta mesma Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo, e logo na procissão que faremos – guardam apenas como memória autêntica a vida do Senhor, oferecida na Ceia em que a Cruz se assinalou. Pensemos nisto em nós, quando fazemos o sinal da Cruz; pensemos nisto para os outros, quando com eles nos cruzarmos. Como vidas repartidas e assim mesmo, só assim, ressuscitadas no mundo de Deus, no mundo do amor de Cristo para todos.
Porque esta memória é memória viva, e assim mesmo sacramento. São Paulo diz-nos que “comemos deste pão”. Não lembramos um gesto do passado, revivemo-lo realmente agora, alimentamo-nos hoje como então. Numa Ceia que não termina, como nunca acaba a entrega do Senhor na Cruz, para a vida do mundo. Cabe sempre repetir as palavras de Madre Teresa de Calcutá a um sacerdote que se preparava para celebrar: «Celebra esta Missa como se fosse a primeira, celebra-a como se fosse a última, celebra-a como se fosse a única». Como realmente é, pois uma entrega absoluta, como foi a do Senhor, é maior do que todo o tempo e preenche inteiramente todo o espaço. Como o nosso, aqui e agora, nesta Sé Patriarcal, ou no mais humilde templo em que aconteça.

Responsabilidade também. Tratando-se do Corpo do Senhor em nós, transforma-nos com Ele num corpo de resposta. Sairemos logo à tarde em procissão, também assim nos oferecendo à cidade, com o Corpo eucarístico do Senhor Jesus. Mas já agora, como aqui estamos uns com os outros, estejamos também uns para os outros, na atenção, na delicadeza, na oração comum. E de seguida, em casa ou na rua, no trabalho e no lazer, na escola ou no hospital, seja onde for e quando for, sejamos igualmente corpo entregue e sangue derramado, isto é, gesto solidário e vida compartilhada.
Só assim irmãos caríssimos, só assim, esta Solenidade ficará inteiramente legitimada em nós e por nós. E seremos a memória viva do Senhor Jesus, para a salvação do mundo. Esta é também a nossa identidade missionária.


Sé de Lisboa, 26 de maio de 2016

+ Manuel, Cardeal-Patriarca



Patriarcado de Lisboa

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