Foto: Patriracado de Lisboa |
Porque o grão caído na terra frutifica num mundo de irmãos
Homilia na solenidade de São Vicente, padroeiro do patriarcado de Lisboa
1.A solenidade de São Vicente, diácono e mártir, padroeiro principal
do patriarcado de Lisboa, celebra-se este ano no especial contexto da
receção atenta e consequente da exortação apostólica Evangelii Gaudium,
em que o Papa Francisco nos entregou um verdadeiro “programa” de missão
geral e evangelizadora.
É uma feliz coincidência que, hoje mesmo, a nossa diocese encete um
caminho sinodal nesse sentido, que até 2016 – tricentenário da nossa
qualificação “patriarcal” – a todos nos fará cumprir, o mais cabalmente
possível, a determinação pontifícia, como vem no número 25 da exortação:
«Sublinho que aquilo que pretendo deixar expresso aqui, possui um
significado programático e tem consequências importantes. Espero que
todas as comunidades se esforcem por usar os meios necessários para
avançar no caminho de uma conversão pastoral e missionária, que não pode
deixar as coisas como estão».
Isto mesmo, caríssimos irmãos. Como se o Papa dissesse que, se
queremos mudar o mundo, temos de começar por nós, Igreja de Cristo para o
mundo, retomando e aprofundando a sua atitude essencial de Filho de
Deus e irmão universal, tão profundamente orante e tão ativamente
evangélico. E há tanto para mudar no nosso mundo, nos vários patamares
da sociabilidade humana, das famílias às comunidades, da vida pessoal à
vida pública, do que se passa fronteiras adentro ao que se passa nas
relações internacionais… Do que se passa e do que ainda não passa e
devia passar, em termos de solidariedade concreta e humanidade
compartilhada!
É bem significativo que tenhamos São Vicente por padroeiro, e
precisamente na atual conjuntura. Viveu há muitos séculos, no outro lado
da Península Ibérica, sendo diácono e acompanhando o seu bispo, quando o
Império Romano se opunha ainda à Igreja de Cristo. Chegou a perseguição
e Vicente não recuou nem fugiu, enfrentando os tormentos com uma
coragem que não mais foi esquecida.
Daí que lhe guardassem os restos mortais, pois que assinalavam tanta
vida. Vida pascal e portanto vitoriosa, na vitória de Cristo sobre a
morte. Segundo a tradição de Lisboa, coeva da fundação da nacionalidade,
foram essas relíquias que se guardaram aqui e ainda hoje reverenciamos.
Não tanto a elas, mas sumamente ao que nos lembram – a vitória
evangélica das vidas que se entregam. Porque – como há pouco ouvimos no
Evangelho de João - «se o grão de trigo cair na terra e não morrer, fica
só ele; mas, se morrer, dá muito fruto».
Nas atuais circunstâncias, que com os nossos concidadãos partilhamos,
a memória de Vicente na memória de Cristo é-nos muito inspiradora.
Revivendo em cada comunidade cristã o mesmo empenho e tal entrega, nada
nos deterá na missão evangélica. Serviço solidário, porque dum diácono
se tratava, adstrito por isso à ação caritativa. Serviço solidário
ainda, por atender às necessidades do corpo e do espírito, na realidade
total de quantos encontrava.
E hoje em dia, sabemo-lo bem, só com idêntica amplitude e projeção
podemos cumprir o que o mundo pede à Igreja que somos e havemos de ser,
em função de Deus e dos outros. Respostas parciais, num resumo
materialista ou espiritualista que fosse, não são verdadeiramente
humanas e humanizadoras, nem correspondem a um desenvolvimento autêntico
– aquele que Paulo VI referia «a todos os homens e ao homem todo».
2. É neste sentido global que tanto nos importam as indicações do
Papa Francisco sobre o “espírito” da missão evangelizadora que temos por
diante. Encontramo-las no último capítulo da exortação apostólica e
cada uma delas nos reconduz a Cristo e a Vicente, para o serviço atual
dum mundo de que Deus não desiste.
Como aconteceu com Vicente, «a primeira motivação para evangelizar é o
amor que recebemos de Jesus, aquela experiência de sermos salvos por
Ele que nos impele a amá-lo cada vez mais» (EG, 264). Por espantoso que
pareça, é esta a única razão de estarmos hoje aqui e nos projetarmos em
missão, amanhã e sempre.
Aconteceu-nos na vida a presença de Cristo, pensarmos nele como só se
pensa em alguém vivo e que nos faz viver, doutra maneira e melhor.
Doutra maneria, mas no mundo de toda gente e de todos os dias. Melhor,
porque transfigura tudo, do nascer ao morrer, do ganhar ao perder, do
fruir ao sofrer, como só uma vida humana divinamente vivida –
precisamente a de Cristo – realiza e oferece.
Vida oferecida e continuamente praticável, em constante doação aos
outros – pois isso mesmo é viver. Vida que, convencendo-nos
profundamente a nós, garante a coincidência com o que todos igualmente
esperam, através de nós. E o Papa acrescenta, com palavras que
certamente lhe brotam de muita meditação evangélica: «Toda a vida de
Jesus, a sua forma de tratar os pobres, os seus gestos, a sua coerência,
a sua generosidade simples e quotidiana e, finalmente, a sua total
entrega, tudo é precioso e fala à nossa vida pessoal. Todas as vezes que
alguém volta a descobri-lo, convence-se de que é isso mesmo o que os
outros precisam, embora não o saibam» (EG, 265). Foi sempre esta e só
esta a garantia e a força dos evangelizadores autênticos.
De relação se trata, e no sentido absoluto que se chama amor. Melhor
dizendo, participamos no amor de Cristo ao Pai e aos outros, com os
quais se irmana, plena e realmente. Por isso aprendemos de Cristo e com
ele exercitamos uma religião plenamente social, que compartilha a sua
dedicação ao bem de todos e cada um: «Para sermos evangelizadores com
espírito é preciso também desenvolver o prazer espiritual de estar
próximo da vida das pessoas, até chegar a descobrir que isto se torna
fonte de uma alegria superior. A missão é uma paixão por Jesus e,
simultaneamente, uma paixão pelo seu povo» (EG, 268).
Mais adiante, com grande realismo cristão, certamente espiritual mas
nada “espiritualista”, o Papa dirá que esta participação nos sentimentos
de Cristo em relação aos outros é, por si mesma, revelação de Deus:
«Cada vez que nos encontramos com um ser humano no amor, ficamos capazes
de descobrir algo de novo sobre Deus. Cada vez que os nossos olhos se
abrem para reconhecer o outro, ilumina-se mais a nossa fé para
reconhecer a Deus» (EG, 273). Resumiremos que, na caridade de Cristo,
missão e teologia se tornam numa coisa só.
3. É ainda na recordação do martírio de São Vicente que podemos
concluir. Podia ter sido uma vida mais, um momento forte de convicções
demonstradas, apesar dos tormentos, mas acabando ali. Porém, o facto de
estarmos agora, tantos séculos volvidos, nesta catedral que lhe guarda
as relíquias, significa outra coisa e infindamente mais. Significa que
nele, na sua memória viva, na totalidade com que reviveu a morte de
Cristo em testemunho de Deus e na entrega por todos, reforçamos a
convicção de que vale sempre a pena ir até ao fim, abrindo o futuro onde
diziam que acabávamos. Como escreve o Papa: «A sua ressurreição [de
Cristo] não é algo do passado, contém uma força de vida que penetrou o
mundo. […] É verdade que muitas vezes parece que Deus não existe: vemos
injustiças, maldades, indiferenças e crueldades que não cedem. Mas
também é certo que, no meio da obscuridade, sempre começa a desabrochar
algo de novo que, mais cedo ou mais tarde, produz fruto» (EG, 276).
Não precisaremos de mais neste momento, para, com São Vicente,
testemunharmos a Páscoa de Cristo, em incansável missão. Porque o grão
caído na terra frutifica num mundo de irmãos.
+ Manuel Clemente
Sé de Lisboa, 22 de janeiro de 2014
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