Os filósofos, desde os pré-socráticos, até aos nossos dias, procuram a verdade através da razão. Diante da Natureza interrogam a verdade da realidade da mesma Natureza: é verdadeiro o que está de acordo com a realidade. A história da filosofia é a história da procura da verdade. Na ciência, é verdadeiro o que se experimenta. Na história, é verdadeiro o que acontece.
Tomás de Aquino, na esteira de Aristóteles, define a verdade como a adaequatio intellectus et rei (adequação devida da inteligência à realidade). Mas o homem, ser inteligente, racional, livre, mortal, o único que sabe que sabe, que fala e escreve, que se interroga, que ama sem determinismo biológico, que coloca o problema de Deus e da fé, da verdade e do erro, quem é o homem face à verdade?
Para a Bíblia, a verdade define-se com o sema ´emet : o que é sólido, seguro e de confiança. Deus aparece como “Rocha”. Só quem nela colocar os pés da inteligência e amor é verdadeiro.
Neste sentido, verdade é igual a fidelidade (emunah e a hesed) – homens de verdade são os crentes em Deus e sua Lei (Ex 18, 21; Nem 7, 2, etc.).
Mais tarde, nos livros sapienciais e apocalípticos, verdade confunde-se com a doutrina da sabedoria e com a verdade revelada (Pr 23, 23; Qo 12, 10; Si 4, 28LXX: “Luta pela verdade até à morte”). Depressa se passa para a semântica do “mistério” (Sb 6, 22) – verdade é o desígnio misterioso de Deus a realizar na história. Para Daniel, “o livro da verdade” (Dn 10, 31) é aquele em que está escrito o desígnio de Deus (ver Dn 9, 13; 8, 26; 10, 1; 11, 20). Em Qumran (1QH 7, 26s), a “inteligência da verdade de Deus” é o conhecimento do mistério.
No NT, a começar por Paulo, a “verdade de Deus” designa a fidelidade de Deus às suas promessas (Rm 3, 7; ver 3, 3; 15, 8; 2Cor 1, 18ss), e as promessas têm a ver com a pessoa de Jesus.
Segundo Paulo, neste sentido, “à verdade da Lei” opõe-se “a verdade do Evangelho” (Gl 2, 5. 14) ou “a palavra da verdade” (Cl 1, 5; Ef 1, 13; 2Tm 2, 15). A esta verdade só se vai pela fé.
Assim se explica a catequese polémica das cartas pastorais contra a “falsa doutrina” (1Tm 1, 10; 4, 6; 2Tm 4, 3; Tt 1, 9; 2, 1). E só a Igreja do Deus vivo é “a coluna e o fundamento da verdade” (1Tm 3, 15).
No quarto evangelho, a verdade tem um nome: chama-se Jesus Cristo, o Unigénito do Pai (1, 17: “A Lei foi dada por Moisés, mas a graça e a verdade vêm-nos por Jesus Cristo”; 14, 6: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”). Mas esta verdade cristocêntrica não está pronta – é uma verdade em aberto e construção por obra e graça do Espírito da Verdade: 14, 17; 15, 26; 16, 13.
Bento XVI tem-se apresentado nesta dinâmica como homem “da fidelidade ao serviço da verdade”. Segundo Michel KUBLER (Benoît XVI, Pape de Contre-Réforme?,Bayard, Paris, 2005), há três motivos fundamentais que movimentam a dinâmica de Bento XVI: Fidelidade, Verdade, Serviço.
Segundo este Papa, a teologia tem como função “pesquisar inteligentemente a fé como resposta à voz da verdade, como apelo e ajuda ao povo de Deus, segundo o mandato apostólico (cf, 1Pd 3, 15)” (p. 18).
Muitos católicos continuam a temer este Papa como demasiado conservador; outros vêem nele o teólogo e o homem crente da verdade para quem não há nem esquerda nem direita; só a verdade interessa.
Em 1977, quando foi nomeado arcebispo de Munique, disse que “nunca devemos pactuar com o espírito do tempo…[mas], sim, interpelar os vícios e os perigos da época” e, sobretudo, nunca fugir aos problemas (p. 31). Na declaração Dominus Jesus de João Paulo II, no ano 2000, da autoria do Cardeal Ratzinger, refere as igrejas protestantes como “deficientes da verdade…”.
Na meditação de sexta feira santa de 2005, no Coliseu de Roma, denunciou as “imundícies” (Schmutz) da barca de Pedro a “meter água por toda a parte” (p. 34).
Em 1985 declarou “que pertence definitivamente ao passado o que está interiormente morto…” (p. 48).
Em 1998, por ocasião do primeiro Congresso Mundial dos novos movimentos ou comunidades, declarou que a Igreja “precisa de menos organização e mais Espírito!” (p. 49). Pôs de sobreaviso as “revelações” de Cristo a Vassula Ryden, o fundamentalismo historicista do “terceiro segredo de Fátima” e a passividade das “novas comunidades” desinteressadas da acção social, afirmando que “não basta rezar para se ser salvo…” (p. 33). Para este Papa, a verdade da Igreja gira à volta da eucaristia e respectiva dinâmica política e social. O mistério da verdade, na eucaristia, obriga-o a denunciar os perigos da cultura da morte contra a cultura da vida – aborto, manipulação genética…
Na sua viagem recente ao Brasil sublinhou que “a Igreja é fé, não ideologia”. Disse que “a Igreja não faz proselitismo. Ela age mais por atracção (…). Esta é a fé que fez a América Latina, o continente da esperança, e não uma ideologia política, não um movimento social e tão pouco económico. A fé no Deus encarnado, morto e ressuscitado em Jesus Cristo”.
A força da Igreja deve assentar na fé e não em “ideologias políticas” ou em “movimentos sociais ou económicos”, referindo, indirectamente, “o socialismo do séc. XXI” de Hugo Chávez. António Marujo intitula esta viagem ao Brasil: “Samba do Papa entre o aborto e o social”. Será assim?
O papa João Paulo II, como homem do teatro, da poesia, da dança e de tudo o que é belo, convivia muito bem com o samba e com as danças da América Latina e África. Bento XVI é diferente. Nenhum papa é mimético em relação ao seu antecessor. O mimetismo só vale para o valor da verdade, dos princípios, dos valores universais.
Hoje em dia, para muita gente, verdade é igual a moda, satisfação e prazer. É verdade o que me sabe bem, me dá prazer, me torna notável, famoso, “charmoso”.
Para os filósofos gregos, para Jesus Cristo e para os cristãos não pode ser assim. Jesus, em Jo 17, 13-20 diz-nos, através da sua oração ao Pai: “Mas agora vou para Ti e, ainda no mundo, digo isto para que eles tenham em si a plenitude da minha alegria. Entreguei-lhes a tua palavra, e o mundo odiou-os, porque eles não são do mundo, como também Eu não sou do mundo. Não te peço que os retires do mundo, mas que os livres do Maligno. De facto, eles não são do mundo, como também Eu não sou do mundo. Consagra-os na Verdade; a Verdade é a tua palavra. Assim como Tu me enviaste ao mundo, também Eu os enviei ao mundo, e por eles totalmente me consagro, para que também eles sejam consagrados, por meio da Verdade.”
Neste texto há dois tipos de “mundo”: o da verdade e o da não-verdade. Esta maneira de Jesus ensinar obriga-nos a pensar seriamente. Que tipo de verdade é que eu sigo? Certamente que a verdade de Jesus tem a ver com o Pai e com o Filho, isto é, com a fé teológica e cristológica. Não há Pai verdadeiro, total, sem o Filho. E não há Filho verdadeiro, total, sem o Espírito da Verdade, como diz Jesus em Jo 16, 12-13: “Tenho ainda muitas coisas a dizer-vos, mas não sois capazes de as compreender por agora. Quando Ele vier, o Espírito da Verdade, há-de guiar-vos para a Verdade completa.”
Como é bom viver na Verdade!
Pe. Joaquim Carreira das Neves, OFM
Labat n.º 73 de Junho de 2009
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