A leitura moralizante dos textos sagrados e da própria religião leva, e levou muitas vezes ao longo da história, a uma perversão desses mesmos textos e do próprio sentido do religioso por colocar como atitude primeira o comportamento face à divindade e face ao outro em detrimento de uma atitude de acolhimento do dom que é essa mesma divindade. Tal atitude desencadeou e desencadeia comportamentos de guerra, violência e ódio em nome de Deus.
A verdadeira religião antes de ser uma moral ou uma ética, é um encontro pessoal e comunitário com o próprio Deus que de forma gratuita se manifesta na sua bondade. A iniciativa é de quem Se pode dar a conhecer aos que criou para que O conheçam. Querer antepor a este acolhimento uma atitude exterior de comportamentos morais é querer mobilar uma casa antes de ela estar feita. O que se disse em geral para a maioria das religiões, diz-se de modo muito concreto e particular para o cristianismo. Querer fazer da mensagem cristã um conjunto mais ou menos apertado de normas morais de comportamento, é não perceber a gratuidade de Deus revelada em Jesus Cristo “feito homem igual a nós em tudo menos no pecado”.
Não foram poucos os momentos da história, e não são poucas as circunstâncias da vida dos cristãos em que o agir foi anteposto ao acolhimento não só da mensagem mas de Deus feito acontecimento em Cristo. Este erro de perspectiva conduz ao sofrimento de um coração angustiado, que percebe a sua incapacidade de corresponder com perfeição ao desafio da excelência e do comportamento exemplar. Conduz também ao fanatismo e a uma visão meramente instrumentalizada da mensagem de salvação sem espaço para a libertação da fragilidade humana, que fissura o bem que se quer e o bem que se devia praticar. Urge então, inverter esta tendência e colocar as coisas no seu devido lugar dando sentido ao agir aceitando a iniciativa de Deus, o primado da Sua acção em nós e no mundo.
O esforço primeiro será não o de agir de acordo com a mensagem, mas o de se dispor sem entraves e impedimentos ao acolhimento de Deus revelado em Cristo. O agir moral e ético vem, então, como consequência deste acolhimento, como resposta naturalmente movida pela Graça e pronta adesão à iniciativa que não é nossa, mas “d’Aquele que nos amou primeiro”.
O acreditar, “creio”, sendo um esforço da vontade do nosso modo de ser racional, é-o na aceitação de uma verdade que não tem origem em nós mesmos mas que nos foi dada gratuitamente, “derramada em nossos corações”. Este esforço exerce-se em ordem a remover qualquer tipo de impedimento a uma verdadeira experiência de se saber e sentir na presença de Deus. Perceber, na medida das nossas humanas capacidades, que em Deus nos movemos e existimos, é o primeiro momento de um agir religioso, e ponto de partida para tudo o mais. Percebendo estar diante de Deus, vergo-me em adoração e louvor, percebo-me como pessoa onde se reflecte a Sua Glória, compreendo a vocação para o Seu serviço, e cumpro no dia-a-dia a Sua vontade. Assim, a fé que acredita “em um só Deus”, torna-se a opção fundamental dadora de sentido para a minha existência e consequentemente para as minhas acções, ao mesmo tempo que a tomo como medida aferidora do meu actuar. E é como que o alicerce onde posso então fundar todo o edifício da minha vida. Isto nos ensina Sua Santidade o “Senhor Papa” Bento, quando na introdução à sua primeira encíclica escreve: “Nós cremos no amor de Deus – deste modo pode o cristão exprimir a opção fundamental da sua vida. No início de ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, um rumo decisivo” (BENTO XVI, Deus caritas est, 1).
Esta aceitação do encontro com as Pessoas de Deus, vivo e verdadeiro, presente no meio de nós, leva-nos à aventura amorosa do conhecimento d’Ele, e ao consequente conhecimento de nós mesmos, e também ao agir de agrado com a Sua vontade. São estas as duas partes em que o Papa divide a sua encíclica: “a primeira (…) especificar alguns dados essenciais sobre o amor que Deus oferece (…) a segunda parte terá um carácter mais concreto, porque tratará da prática eclesial do mandamento do amor ao próximo” (Idem). Duas vertentes de uma mesma realidade enunciada por Jesus quando enuncia o mandamento do amor a Deus sobre todas as coisas conjuntamente com o amor ao próximo.
Perceber isto, com ideias tanto quanto possível claras, é suscitar um “renovado dinamismo de empenhamento na resposta humana ao amor divino”, porque nos leva de novo à fonte, ao deserto (onde Deus Se revela enamorado do Seu povo), onde se faz a experiência d’Aquele que dá sentido à vida e Se torna motivo de um agir.
Fr. Gonçalo Figueiredo OFM
Labat n.º 67 de Dezembro de 2006
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