17 dezembro, 2009

Lei e Espírito




ESPÍRITO – HISTÓRIA – PALAVRA

Já referimos, aqui (Labat), este assunto. É da máxima importância tanto nos evangelhos como em S. Paulo. E se volto ao assunto é por causa do livro que estou a ler de E. P. Sanders, Paulo, a lei e o povo judaico (São Paulo, Ed. Academia Cristã/Paulus, 2009).

E. P. Sanders é reconhecido mundialmente como um dos melhores exegetas da Bíblia do Novo Testamento. O grande mérito deste autor consiste em tornar a ler a pessoa de Jesus, nos evangelhos, e de S. Paulo, nas cartas, à luz do pensamento judaico de então. Jesus e S. Paulo foram judeus. Não nasceram cristãos. Não eram nem gregos nem romanos.

À medida que a Igreja crescia e se dilatava pelos quatro cantos do mundo, o judaísmo era abandonado e combatido, e tanto Jesus como S. Paulo eram lidos, amados, proclamados urbi et orbi contra judeus e pagãos. Semelhante leitura não corresponde à verdade. O seu a seu dono.

Segundo E. P. Sanders, a doutrina de S. Paulo acerca da Lei não é uniforme, contrariamente ao que católicos e protestantes têm dito e pregado. Costumamos apresentar a Lei judaica, sobretudo nas cartas aos Gálatas e Romanos, como o oposto do Espírito: o Antigo Testamento e respectiva Lei moisaica foi substituído pelo Espírito. A Lei morreu para dar lugar ao Espírito. Ser judeu é pertencer à Lei e ser cristão é pertencer ao Espírito. Esta visão é demasiado unilateral.

S. Paulo parte do princípio que Deus determinou um projecto de salvação para o seu povo – o judaico – através da Lei, mas que não é suprimido pelo mesmo princípio de salvação para toda a humanidade para o seu povo – o cristão – através de Jesus Cristo. O Paulo judeu não deixa de ser judeu pelo facto de ter sido apanhado por Jesus Cristo (Fl 3, 12: “Não que já o [Jesus] tenha alcançado ou já seja perfeito; mas corro, para ver se o [Jesus] alcanço, já que fui alcançado/apanhado por Cristo Jesus”).

A S. Paulo punha-se o dilema de difícil solução: a Lei do AT é santa porque dimana de Deus, mas a vinda de Jesus Cristo, para judeus e pagãos, não podia estar sujeita à Lei, dada aos judeus. Assim se explicam as antinomias entre o Espírito e a Lei em Gl 5, 16-26.
Neste contexto, S. Paulo tanto apresenta a antinomia entre Espírito e Lei como entre Espírito e carne (5, 18s: “Ora, se sois conduzidos pelo Espírito, não estais sob o domínio da Lei. Mas as obras da carne estão à vista…”). Mas as obras da carne-Lei (vv. 19s “fornicação, impureza, devassidão, idolatria, feitiçaria. inimizades, contenda, ciúme, fúrias, ambições, discórdias, partidarismos, invejas, bebedeiras, orgias e coisas semelhantes a estas…”) também são condenadas na Lei do AT.
E as obras do Espírito (vv. 22s: “amor, alegria, paz, paciência, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, auto-domínio) também são apresentadas na Lei do AT, embora sem esta cadência.

Esta antinomia é ainda mais clara em Romanos 7-8. No capítulo sétimo S. Paulo apresenta o seu pensamento sobre a Lei e no capítulo oitavo sobre o Espírito (19 vezes). Mas a Lei em 7, 13 é apresentada como boa (“Será então que aquilo que é bom se transformou em morte para mim? De maneira nenhuma!”).
Para resolver este dilema, S. Paulo deixa de apresentar a Lei-carne para apresentar como causa da morte e de todas as desgraças o pecado (v. 13b: “O pecado é que, para se manifestar como pecado, se serviu do que é bom [a Lei] e foi causa de morte para mim”).
Já antes escrevera (vv. 11-12: “É que o pecado, aproveitando-se da ocasião dada pelo mandamento [Lei], seduziu-me e deu-me a morte, por meio dele. Por conseguinte, a Lei é santa e o mandamento é santo, justo e bom”).
Segundo o Apóstolo, no desígnio de Deus sobre o seu povo, não fazia parte a morte, a física e a moral, mas ela existe e está presente na sua carne-humanidade. Como explicar? S. Paulo recorre ao pecado. Perguntamos: mas que pecado? S. Paulo apenas faz afirmações sem as explicar.
Outro texto deveras intrigante é o de Rm 2, 5-6: “Afinal, com a tua dureza e o teu coração impenitente, estás a acumular ira sobre ti, para o dia da ira e do justo julgamento de Deus, que retribuirá a cada um conforme as suas obras…”.

Como conclusão devemos dizer que S. Paulo apresenta vários registos sobre a Lei. Há um desígnio de Deus, universal e absoluto, sobre a salvação através da Lei de Moisés. A Lei é boa e santa mas potenciadora do pecado e da morte porque é pela Lei que tomamos consciência do nosso estado de ser: “Não adorarás outro Deus… não cobiçarás…não desejarás a mulher do próximo…”.
Esta razão de ser da Lei tanto é válida ontem como hoje. Se ela impedir a fé em Jesus Cristo torna-se num muro de Berlim, contrária à liberdade (Gl.3, 1s:” Oh Gálatas insensatos! Quem vos enfeitiçou, a vós, a cujos olhos foi exposto Jesus Cristo crucificado? Só isto quero saber de vós: foi pelas obras da Lei que recebestes o Espírito ou pela pregação da fé?”; 5, 1: “Foi para a liberdade que Cristo nos libertou”; 5, 13: “Irmãos, de facto, foi para a liberdade que vós fostes chamados. Só que não deveis deixar que essa liberdade se torne numa ocasião para os vossos apetites carnais…”).

Daqui deriva a necessidade da Lei do Espírito que tudo resume ao mandamento do amor (Gl 5, 5, 14: “É que toda a Lei se cumpre plenamente nesta única palavra: Ama o teu próximo como a ti mesmo”).
Mas este mandamento é uma citação de Levítico 19, 18. Assim sendo, S. Paulo não é contrário à Lei de Moisés de modo unilateral. É judeu e é cristão porque o desígnio de Deus é único e irreversível. O que faz falta é saber ler e interpretar.
Há leis do AT que não interessam, mormente as leis identitárias do povo e da raça – circuncisão, sábado, kosher (leis da alimentação) -, que estabeleciam o tal muro de Berlim entre judeus e não-judeus.

O Deus de Jesus Cristo e o Deus de Paulo (teologia e cristologia em S. Paulo caminham juntos) é para todos e não apenas para um povo ou raça. As leis identitárias deste povo-raça facilmente nos conduzem ao racismo. Jesus Cristo e o seu Espírito libertam-nos deste perigo que, na prática, ontem e hoje continua bem vivo entre alguns judeus, cristãos e muçulmanos. 

 
Pe. Joaquim Carreira das Neves, OFM  
Labat n.º 100 de Dezembro de 2009

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