26 março, 2011

Uma única realidade com distintas dimensões


O amor é uno
Numa unidade vital de corpo e alma, matéria e espírito, o homem, considerado na sua unidade e na sua totalidade, sintetiza em si o amor de eros (termo para expressar o amor de desejo como se alguma coisa lhe faltasse) e o amor de agapé (como expressão do amor fundado sobre a fé e por ela plasmado) que se complementam e purificam, enaltecendo-se mutuamente. Um não dispensa o outro, e o outro como que se apoia no um.
À luz do Mistério da Encarnação e na senda da Teologia da Cruz, o Papa afirma que o amor é uno: “no fundo, o «amor» é uma única realidade, embora com distintas dimensões” (BENTO XVI, Deus caritas est, 8).
No Velho Testamento
A tradição do Antigo Testamento, com o testemunho dos Profetas enamorados de Deus, já tinha antevisto o mistério da relação amorosa entre Deus e o Seu Povo: “Aquele que é para nós” é-O no desejo do nós, individualmente e em Povo, que se sabe a caminho para Deus porque por Ele é atraído. A manifestação da aliança amorosa de Deus com o Povo expressa-se na própria dádiva das tábuas da Lei que abrem os olhos de Israel sobre a natureza do homem e lhe indica a estrada do verdadeiro humanismo.
No Novo Testamento
Mas é no Filho gratuitamente enviado ao mundo (“Deus amou tanto o mundo que lhe deu o Seu Filho único” Jo. 3, 16) que este mistério se revela plenamente. Assim, é de Cristo, “em tudo igual a nós menos no pecado”, que somos chamados a beber o amor purificado, pois d’Ele, e do Seu coração aberto pela lança do soldado que sai um rio de bênçãos, o amor de Deus, a vida sacramental: o Baptismo e a Eucaristia. A fé neste Senhor e Deus, revelador do Mistério Divino e, simultaneamente revelador do homem ao homem, purifica o amor e amplia-o, fazendo com que toque cada recanto da existência do homem, com uma força transformadora nunca antes conhecida.
As duas dimensões
Duas dimensões, horizontal e vertical, humana e divina, da natureza e da fé, do dar e receber, que quando se separam, ficam empobrecidas e reduzidas nas suas potencialidades com o sério risco de degenerarem. O amor humano sem o divino degenera em odiosa bestialidade, e o amor divino sem o humano, em nós, gera angústia de espiritualismos inalcançáveis.
Quanto mais estas duas dimensões encontrarem a justa medida na realidade do amor, tanto mais se realiza a verdadeira natureza do autêntico amor. Em Cristo “verdadeiro Deus e verdadeiro Homem” a unidade sem confusão, mostra o verdadeiro caminho digno do homem resgatado pela preciosa entrega do seu sangue.
Tempo da Quaresma
Neste tempo Santo da Quaresma somos chamados a purificar, crucificar os nossos desejos e os nossos amores, a levantar os olhos para Aquele que trespassaram, num desejo de configuração com Cristo. Sendo certo que esta configuração com Cristo crucificado não destrói o verdadeiramente humano, assume-o, purifica-o embelezando-o. De facto, não é fácil compreender a beleza d’Aquele que Pilatos apresenta como “O Homem” (Ecce Homo), mas esse mesmo Homem, é a Verdade, o verdadeiro e belo Amor de quem dá a vida para resgate de muitos. É um desafio para todos nós, o desafio da fé orientada pela esperança, de quem não se importa de morrer para entrar na verdadeira vida.
“Quem procura salvar a sua vida há-de perde-la, mas quem perder a sua vida por Minha causa, encontrá-la-á.” (Mt 16, 25) Eis o caminho pessoal trilhado por Cristo que por meio da cruz desemboca na ressurreição: o caminho do grão de trigo lançado à terra para ar muito fruto. A plenitude do amor no acto de entrega e sacrifício pessoal alcança nesta medida a sua plenitude e descreve a essência do amor e da existência do homem (BENTO XVI, Deus caritas est, 6).
O verdadeiro amor, que promete sempre o infinito e a eternidade, exige purificação e aperfeiçoamento na estrada da renúncia em vista de um bem maior: um amor curado, ampliado, total, gratuito, solidário.
A beleza do crucificado
A beleza do crucificado, manifestação sublime do amor que busca o bem do homem amado por Deus, está precisamente na gratuidade desta oferta imerecida. Este amor à criatura que comporta o constante cuidado que lhe dedica, faz-se pelo sacrifício de graça contraposto a toda e qualquer forma de egoísmo, inteiramente livre na oferta do dom de si mesmo, convidando e esperando a uma resposta de fidelidade igualmente generosa.
É a alegria da manhã de Páscoa na vitória da justiça e da vida, no corpo glorioso do Ressuscitado. Corpo esse que, pela misericórdia de Deus, já não tem as marcas das feridas do pecado do homem, mas resplandece curado em todo o seu esplendor de beleza, como tinha sido antevisto pelos discípulos na transfiguração no alto monte.
É para esta transfiguração de corpo e alma que o verdadeiro amor aponta.
Frei Gonçalo Figueiredo ofm
Labat, n.º 70 de Março de 2007

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