Pedem-me para apresentar o meu parecer sobre este acontecimento. Depois de ter lido e apreciado os discursos e homilias do Papa, concluí que a mensagem que ele nos deixou é muito séria, actual e desafiadora. Por isso, vou procurar apresentá-la em três pequenas “crónicas” ao longo de três meses.
ILUMINISMO-SECULARISMO E FÉ
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ILUMINISMO-SECULARISMO E FÉ
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No voo de Roma para Lisboa aconteceu um diálogo entre o Padre Lombardi e o Papa que os comentadores deixaram passar nalgumas abordagens importantes. Foi neste diálogo que aconteceu o que eu nunca imaginei que fosse possível.
O Padre Lombardi referiu a dialéctica entre o Iluminismo, o secularismo e a fé. O Papa respondeu com a figura do Marquês de Pombal e com a situação dessa dialéctica, aliás extensiva a toda a Europa. Mas referiu o lado positivo do assunto quando disse: “Hoje vemos que, justamente, esta dialéctica é uma oportunidade para encontrar uma síntese e um diálogo profundo e de vanguarda.
Na situação multicultural em que vivemos, vê-se que uma cultura europeia que fosse unicamente racionalista não possuiria a dimensão religiosa transcendente; não seria capaz de entrar em diálogo com as grandes culturas da humanidade, que possuem, todas elas, esta dimensão religiosa transcendente, que é uma dimensão do ser humano.
Portanto, pensar que existiria uma razão pura, anti-histórica, só existente em si mesma, e que esta seria “a” razão, é um erro; descobrimos cada vez mais que esta toca somente uma parte do homem, expressa uma certa situação histórica, mas não é a razão como tal.
A razão, como tal, está aberta à transcendência e só neste encontro entre a realidade transcendente, a fé e a razão é que o homem se encontra a si mesmo. Assim, penso que a tarefa e a missão da Europa nesta situação é justamente encontrar este diálogo, integrar a fé e a racionalidade moderna numa única visão antropológica, que completa o ser humano e torna, desse modo, também comunicáveis as culturas humanas.
Por isso, diria que a presença do secularismo é algo normal, mas a separação, a contraposição entre secularismo e cultura da fé é anómala e deve ser superada. O grande desafio deste momento é que ambos se encontrem e, desse modo, achem a sua verdadeira identidade. Como eu disse, esta é uma missão da Europa e uma necessidade humana nesta nossa história”.
Como vão longe os tempos das condenações de Pio IX, com o “Sillabus”, contra o cientismo, racionalismo e Iluminismo. O Papa defende o que já defendeu noutras ocasiões: chegou o tempo de dialogar com o mundo multicultural, multirreligioso, e não fechar-se em verdades científicas únicas, verdades religiosas únicas, venham da razão, da laicidade ou da religião.
Nesta mesma dimensão, o Padre Lombardi referiu ao Papa a actual crise económica da Europa e do mundo. O que está em causa é o homem numa visão simplesmente economicista, por um lado, e o homem ético, por outro lado.
O Papa respondeu: “Na realidade, agora vemos que o puro pragmatismo económico, que prescinde da realidade do homem – que é um ser ético – não termina positivamente, mas cria problemas insolúveis.
Por isso, agora é o momento de ver que a ética não é uma coisa externa, mas interna à racionalidade e ao pragmatismo económico. Por outro lado, devemos também confessar que a fé católica, cristã, era frequentemente muito individualista; deixava as coisas concretas, económicas, ao mundo, e pensava somente na salvação individual, nos actos religiosos, sem ver que estes implicam uma responsabilidade global, uma responsabilidade pelo mundo. (…)
Por outro lado, os últimos acontecimentos no mercado, nestes últimos dois ou três anos, mostraram que a dimensão ética é interna e deve entrar no interior do agir económico, porque o homem é uno; e trata-se do homem, de uma antropologia sã, que implica tudo e, só assim, se resolve o problema; só assim a Europa se desenvolve e cumpre a sua missão”.
Como vemos, o Papa resolveu servir-se da viagem a Portugal para lançar pontes sobre os grandes problemas humanos actuais na Europa e não só. Uma das questões mais prementes na economia e finanças passa pelo homem ético. Sem ética, a economia e finanças reduzem-se ao mercado do lucro fácil.
Foi o que aconteceu com os mercados financeiros americanos que determinaram o “tsunami” da crise que estamos a viver. Mas não deixa passar em vão o erro da salvação individualista dos cristãos.
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FÁTIMA – ACONTECIMENTO E SINAL
Foi ainda na viagem de avião que o Papa respondeu ao Padre Lombardi sobre o acontecimento Fátima e seu significado desta maneira:
“No ano 2000, na apresentação [do terceiro segredo], disse que uma aparição, ou seja, um impulso sobrenatural, não vem somente da imaginação da pessoa, mas na realidade da Virgem Maria, do sobrenatural; que um impulso deste tipo entra num sujeito e se expressa segundo as possibilidades de ver, de imaginar, de expressar; mas nestas expressões, articuladas pelo sujeito, esconde-se um conteúdo que vai além, mais profundo, e somente no curso da história podemos ver toda a sua profundidade, que estava – digamos – “vestida” nesta visão possível à pessoa concreta.
Deste modo, diria também aqui que, além desta grande visão do sofrimento do Papa, que podemos referir ao Papa João Paulo II em primeira instância, indicam-se realidades do futuro da Igreja que se desenvolvem e se mostram paulatinamente.
Por isso, é verdade que, além do momento indicado na visão, fala-se, vê-se, a necessidade de uma paixão da Igreja, que naturalmente se reflecte na pessoa do Papa; mas o Papa está para a Igreja e, assim, são sofrimentos da Igreja que se anunciam. O Senhor disse-nos que a Igreja seria sempre sofredora, de diversos modos.
O importante é que a mensagem, a resposta de Fátima, não vai substancialmente na direcção de devoções particulares, mas precisamente na resposta fundamental, ou seja, a conversão permanente, a penitência, a oração, e as três virtudes teologais: fé esperança e caridade. (…)
A novidade que podemos descobrir hoje, nesta mensagem, reside também no facto de que os ataques ao Papa e à Igreja não vêm só de fora, mas que os sofrimentos da Igreja vêm justamente do interior da Igreja, do pecado que existe na Igreja.
Também isso sempre foi sabido, mas hoje vemo-lo de uma modo realmente terrificante: que a maior perseguição da Igreja não vem de inimigos externos, mas nasce do pecado na Igreja, e que a Igreja, portanto, tem uma profunda necessidade de reaprender a penitência, de aceitar a purificação, de aprender por um lado o perdão, mas também a necessidade de justiça. O perdão não substitui a justiça. (…)”.
Os meios de comunicação, em Portugal e no estrangeiro, referiram pormenorizadamente este assunto relacionando-o com os pecados e crimes da pedofilia de alguns sacerdotes e religiosos católicos.
Mas o mais interessante é que o Papa tenha dito o que disse dentro do espaço teológico e eclesiológico do terceiro segredo de Fátima.
Tratando-se não apenas da visita funcional de um Papa (Papa significa Pai e é uma função ministerial e não um ministério ordenado), mas também da redefinição “teológica” das aparições, há, aqui, um apontamento de Bento XVI que interessa a todos os teólogos.
Neste caso, Bento XVI fala sobretudo como teólogo ou como pastor que dilucida assuntos de teologia eclesial. Que significado têm as aparições particulares de Maria – do céu -? Que relações existem entre a revelação bíblica e estas aparições?
Bento XVI é um grande pensador como teólogo e esta foi a ocasião que o determinou a falar assim. Fátima não é um assunto de “devoções particulares” mas de desígnio divino sobre a Igreja de hoje e amanhã.
Sobre o fenómeno histórico de Fátima, Bento XVI disse ainda, em resposta ao discurso de boas-vindas do Presidente Cavaco Silva: “Há 93 anos, o Céu abriu-se precisamente sobre Portugal – como uma janela de esperança que Deus abre quando o homem lhe fecha a porta – para reatar, no seio da família humana, os laços da solidariedade fraterna assente no mútuo reconhecimento de um só e mesmo Pai.
Trata-se de um amoroso desígnio de Deus; não dependeu do Papa nem de qualquer outra autoridade eclesial: “Não foi a Igreja que impõs Fátima – diria o Cardeal Manuel Cerejeira, de veneranda memória - , mas Fátima que se impôs à Igreja.” Veio do Céu a Virgem Maria para nos recordar verdades do Evangelho que são para a humanidade, fria de amor e desesperada de salvação, fonte de esperança.”
Desconheço o que é que, de hoje em diante, os teólogos irão inferir desta tomada de posição de Bento XVI, sobretudo ao acentuar que Fátima corresponde “a um amoroso desígnio de Deus”.
Repete-se continuamente e à saciedade que Fátima não é nenhum dogma de fé. Repete-se e, a meu ver, deve continuar a repetir-se, mas esta tomada de posição de Bento XVI obriga-nos a abrir as janelas da nossa fé eclesial para além do biblicismo fechado e para além das definições da revelação apostólica e histórica dos Padres da Igreja.
Não se trata, como se infere das palavras de Bento XVI, de novas verdades uma vez que a Verdade, como diz o Papa, reside no Evangelho.
Maria veio apenas “recordar verdades do Evangelho”. Mas, segundo a catequese cristã dos evangelhos canónicos escritos, a última palavra pertence à acção do Espírito Santo (Jo 16, 12-13:
“Tenho ainda muitas coisas a dizer-vos, mas não sois capazes de as compreender por agora. Quando Ele vier, o Espírito da Verdade, há-de guiar-vos para a Verdade completa”). Mas, agora, Bento XVI afirma que a “Virgem Maria veio do Céu para nos recordar verdades do Evangelho…”.
Isto significa que a Palavra do Evangelho deve ser relida, à luz da história, para ser compreendida e vivida. Isto significa, então, que Maria de Nazaré, em Fátima, é uma protagonista da história nesta releitura do Evangelho.
PEREGRINAÇÃO-VIAGEM AO CENTRO DE CADA UM
Termino este primeiro apontamento com o mesmo discurso do Papa ao Presidente da República, quando referiu a primeira República e os “sofrimentos causados pelas mutações, mas que foram enfrentados geralmente com coragem”.
O Papa disse: “Viver na pluralidade de sistemas de valores e de quadros éticos exige uma viagem ao centro de si mesmo e ao cerne do Cristianismo para reforçar a qualidade do testemunho até à santidade, inventar caminhos de missão até à radicalidade do martírio”.
Este Papa, como diz o nosso povo, ”não tem papas na língua”. Diz, com verticalidade, o que tem a dizer.
Afirma, por um lado, que “vivemos na pluralidade de sistemas de valores”, e não na unicidade de um sistema como aconteceu durante séculos com a Igreja Católica.
Por outro lado, afirma que, nesta pluralidade de sistemas de valores, temos todos que fazer “uma viagem ao centro de nós próprios e ao cerne do Cristianismo” para que, depois desta viagem, não tenhamos medo de dar o nosso testemunho até à santidade…até à radicalidade do martírio”. (Continua)
Pe. Joaquim Carreira das Neves,
OFM
OFM
Labat n.º 105 de Junho de 2010
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