Sala Paulo VI
14 de Fevereiro de 2013
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Eminência,
Amados Irmãos no Episcopado e no Presbiterado!
Considero um dom particular da Providência que, antes de deixar o ministério
petrino, tenha ainda podido ver o meu clero, o clero de Roma. É sempre uma
grande alegria ver como a Igreja vive, como, em Roma, a Igreja está viva; há
pastores que, no espírito do Pastor Supremo, guiam o rebanho do Senhor.
Realmente é um clero católico, universal, e isto corresponde à essência da
Igreja de Roma: ter nela a universalidade, a catolicidade de todos os povos, de
todas as raças, de todas as culturas. Ao mesmo tempo, sinto-me muito grato ao
Cardeal Vigário, que ajuda a despertar, a encontrar as vocações também em Roma,
porque se Roma deve ser, por um lado, a cidade da universalidade, por outro,
há-de ser uma cidade com a sua própria fé forte e robusta, da qual nascem
também vocações. E estou convencido de que, com a ajuda do Senhor, podemos
encontrar as vocações que Ele próprio nos dá, guiá-las, ajudá-las a amadurecer,
e assim servir para o trabalho na vinha do Senhor.
Hoje professastes o Credo diante do túmulo de São Pedro: no Ano da fé,
parece-me muito oportuno, talvez mesmo necessário, este acto do clero de Roma
se reunir no túmulo do Apóstolo a quem o Senhor disse: «A ti confio a minha
Igreja. Sobre ti edifico a minha Igreja» (cf. Mt 16, 18-19). Diante do
Senhor, juntamente com Pedro, confessastes: «Tu és Cristo, o Filho do Deus
vivo» (cf. Mt 16, 15-16). É assim que a Igreja cresce: juntamente com
Pedro, confessando Cristo, seguindo Cristo. E façamo-lo sempre. Eu estou muito
agradecido pela vossa oração, que pude sentir – como disse quarta-feira – quase
fisicamente. Embora agora me retire, na oração continuo sempre unido a todos
vós e tenho a certeza de que também vós estareis unidos a mim, apesar de
permanecer oculto para o mundo.
Devido às condições da minha idade, não pude preparar, para hoje, um grande
e verdadeiro discurso, como alguém poderia esperar; eu pensava mais numa breve
conversa sobre o Concílio Vaticano II, tal como eu o vi. Começo por uma
curiosidade: em 1959, tinha sido nomeado professor da Universidade de Bonn,
onde fazem seus estudos os alunos, os seminaristas da diocese de Colónia e de
outras dioceses vizinhas. Foi assim que entrei em contacto com o Cardeal de
Colónia: o Cardeal Frings. O Cardeal Siri, de Génova, – no ano 1961, acho eu –
organizou uma série de conferências sobre o Concílio feitas por vários Cardeais
europeus, e convidara também o Arcebispo de Colónia para realizar uma das
conferências que tinha por título: O Concílio e o mundo do pensamento moderno.
O Cardeal convidou-me – o mais novo dos professores – para lhe redigir um
projecto; ele gostou do projecto, e propôs ao povo de Génova o texto como eu o
escrevera. Pouco tempo depois, o Papa João convida-o para ir ter com ele, e o
Cardeal estava cheio de medo por ter talvez dito algo de não correcto, algo de
falso, e consequentemente ser chamado para uma admoestação, talvez mesmo para
lhe tirar o cardinalato. Na verdade, quando o seu secretário o viu vestido para
a audiência, o Cardeal disse: «Talvez use agora pela última vez estas vestes».
Depois entrou; o Papa João vem ao seu encontro, abraça-o e diz: «Obrigado,
Eminência! O senhor disse as coisas que queria dizer eu, mas não tinha
encontrado as palavras». Assim, o Cardeal sabia que estava no caminho certo, e
convidou-me para ir com ele ao Concílio, inicialmente como seu perito pessoal;
depois, no decurso do primeiro período – em Novembro de 1962, creio eu – fui
nomeado também perito oficial do Concílio.
Então partimos para o Concílio não apenas com alegria, mas também com
entusiasmo. Havia uma expectativa incrível. Esperávamos que tudo se renovasse,
que viesse verdadeiramente um novo Pentecostes, uma nova era da Igreja, pois
esta apresentava-se ainda bastante robusta naquele tempo, a prática dominical
ainda boa, as vocações ao sacerdócio e à vida religiosa, apesar de já um pouco
reduzidas no número, ainda eram suficientes. Contudo, tinha-se a sensação de
que a Igreja não caminhava, ia diminuindo, parecia mais uma realidade do
passado que a portadora do futuro. E, naquele momento, esperávamos que esta
situação se alterasse, mudasse; que a Igreja fosse de novo força do futuro e
força do presente. E sabíamos que a relação entre a Igreja e o período moderno
tinha sido, desde o princípio, um pouco contrastante, a começar do erro da
Igreja no caso de Galileu Galilei; pensava-se em corrigir este início errado e
encontrar de novo a união entre a Igreja e as forças melhores do mundo, para
abrir o futuro da humanidade, para abrir o verdadeiro progresso. Por isso,
estávamos cheios de esperança, de entusiasmo e também de vontade de contribuir
com a nossa parte para isso. Lembro-me que o Sínodo Romano era considerado um
modelo negativo. Disse-se – não sei se era verdade – que tivessem lido os
textos preparados na Basílica de São João e que os membros do Sínodo tivessem
aclamado, aprovado aplaudindo, e assim se teria realizado o Sínodo. Os Bispos
disseram: Não, não façamos assim! Somos Bispos, nós mesmos somos o sujeito do
Sínodo; não queremos apenas aprovar aquilo que foi feito, mas queremos ser nós
o sujeito, os condutores do Concílio. O próprio Cardeal Frings, que era
conhecido pela sua fidelidade absoluta, quase escrupulosa, ao Santo Padre,
neste caso disse: Encontramo-nos aqui com outra função. O Papa convocou-nos
como Padres, para sermos Concílio ecuménico, um sujeito que renove a Igreja.
Assim queremos assumir esta nossa função.
O primeiro momento, em que se manifestou esta atitude, foi logo no primeiro
dia. Estavam previstas, para este primeiro dia, as eleições das Comissões e
tinham sido preparadas, de modo – procurou-se – imparcial, as listas, os nomes;
seriam estas listas que se deviam votar. Mas os Padres disseram imediatamente:
Não! Não queremos simplesmente votar listas já feitas. Somos nós o sujeito.
Então teve-se de adiar as eleições, porque os próprios Padres queriam
conhecer-se um pouco, queriam eles próprios preparar listas. E assim se fez. O
Cardeal Liénart de Lille e o Cardeal Frings de Colónia disseram publicamente:
Assim não pode ser. Queremos fazer as nossas listas e eleger os nossos
candidatos. Não era um acto revolucionário, mas um acto de consciência, de
responsabilidade por parte dos Padres conciliares.
Começava assim uma intensa actividade para se conhecerem, horizontalmente,
uns aos outros; e isso não foi deixado ao acaso. No «Colégio dell’Anima»,
onde eu morava, tivemos muitas visitas: sendo o Cardeal muito conhecido, vimos
lá Cardeais de todo o mundo. Recordo-me bem da figura alta e magra de Mons.
Etchegaray, que era Secretário da Conferência Episcopal Francesa, dos encontros
com Cardeais, etc. E isto havia de ser típico durante todo o Concílio: pequenos
encontros transversais. Foi assim que conheci grandes figuras como Padre de
Lubac, Daniélou, Congar, etc. Conhecemos vários Bispos; recordo-me
particularmente do Bispo Elchinger de Estrasburgo, etc. E esta era já uma
experiência da universalidade da Igreja e da realidade concreta da Igreja, que
não recebe simplesmente imperativos de cima, mas conjuntamente cresce e
caminha, sempre sob a guia – naturalmente – do Sucessor de Pedro.
Como disse, todos vinham com grandes expectativas; nunca se realizara um
Concílio com estas dimensões, mas nem todos sabiam como fazer. Os mais
preparados – digamos, aqueles com intenções mais definidas – eram o episcopado
francês, alemão, belga, holandês, a chamada «aliança do Reno». E, na primeira parte
do Concílio, eram eles que indicavam a estrada; depois, rapidamente se alargou
a actividade e todos progressivamente participaram na criatividade do Concílio.
Os franceses e os alemães tinham vários interesses em comum, embora com matizes
bastante diferentes. O intento primeiro, inicial, simples – simples,
aparentemente – era a reforma da liturgia, iniciada já com Pio XII, que tinha
reformado a Semana Santa; o segundo, a eclesiologia; o terceiro, a Palavra de
Deus, a Revelação; e, finalmente, também o ecumenismo. Os franceses, muito mais
do que os alemães, tinham ainda como problema para tratar a situação das
relações entre a Igreja e o mundo.
Começamos pelo primeiro. Depois da Primeira Guerra Mundial, crescera,
precisamente na Europa central e ocidental, o movimento litúrgico, uma
redescoberta da riqueza e profundidade da liturgia, que até então estava quase
fechada no Missal Romano do sacerdote, enquanto o povo rezava pelos seus livros
de oração, feitos de acordo com o coração da gente, de modo que se procurava
traduzir os conteúdos altos, a linguagem elevada da liturgia clássica em
palavras mais sentimentais, mais próximas do coração das pessoas. Tratava-se,
porém, quase de duas liturgias paralelas: o sacerdote com os ajudantes, que
celebrava a Missa segundo o Missal, e os leigos que rezavam, durante a Missa,
com os seus livros de oração, sabendo substancialmente o que se realizava no
altar. Mas agora fora redescoberta precisamente a beleza, a profundidade, a
riqueza histórica, humana, espiritual do Missal e a necessidade que não
houvesse só um representante do povo, um pequeno ajudante, a dizer: «Et cum
spiritu tuo», etc, mas que fosse realmente um diálogo entre o sacerdote e o
povo, que realmente a liturgia do altar e a liturgia do povo fosse uma única
liturgia, uma participação activa, que as riquezas chegassem ao povo; e assim
foi redescoberta, renovada a liturgia.
Agora olhando retrospectivamente, eu acho que foi muito bom ter começado
pela liturgia, aparecendo assim o primado de Deus, o primado da adoração. Deste
modo a frase «operi Dei nihil praeponatur» da Regra de São Bento
(cf. 43, 3) aparece como a regra suprema do Concílio. Alguém criticara o
Concílio por ter falado sobre muitas coisas, mas não sobre Deus. Ora ele falou
sobre Deus! E o seu primeiro e substancial acto foi falar sobre Deus e abrir
todas as pessoas, todo o povo santo, à adoração de Deus, na celebração
comunitária da liturgia do Corpo e Sangue de Cristo. Neste sentido, para além
de factores práticos que desaconselhavam começar imediatamente com temas
controversos, é realmente – podemos dizer – um acto providencial que, nos
inícios do Concílio, esteja a liturgia, esteja Deus, esteja a adoração. Agora
não quero entrar nos detalhes da discussão, mas vale a pena voltar sempre, mais
além das aplicações práticas, ao próprio Concílio, à sua profundidade e às suas
ideias essenciais.
Eu diria que havia diversas: sobretudo o Mistério Pascal como centro do ser
cristão e, consequentemente, da vida cristã, do ano, do tempo cristão, expresso
no tempo pascal e no domingo que é sempre o dia da Ressurreição. Sempre de novo
começamos o nosso tempo com a Ressurreição, o encontro com o Ressuscitado, e,
do encontro com o Ressuscitado, saímos para o mundo. Neste sentido, é uma pena
que hoje o domingo se tenha transformado em fim de semana, quando na verdade é
o primeiro dia, é o início. Interiormente devemos ter isto presente: é o
início, o início da Criação, é o início da recriação na Igreja, encontro com o
Criador e com Cristo Ressuscitado. Também este duplo conteúdo do domingo é
importante: é o primeiro dia, isto é, a festa da criação, o nosso fundamento
continua a ser a Criação, acreditamos em Deus Criador; e encontro com o
Ressuscitado, que renova a Criação; o seu verdadeiro objectivo é criar um mundo
que seja resposta ao amor de Deus.
Depois havia princípios: a inteligibilidade, em vez de ficar fechados numa
língua desconhecida, não falada, e também a participação activa. Infelizmente,
estes princípios foram também mal compreendidos. Inteligibilidade não quer
dizer banalidade, porque os grandes textos da liturgia – ainda que proferidos,
graças a Deus, na língua materna – não são facilmente inteligíveis, precisam de
uma formação permanente do cristão para que ele cresça e entre cada vez mais em
profundidade no mistério, e assim possa compreender. E o mesmo se diga da
Palavra de Deus: se se pensa na leitura diária do Antigo Testamento, e mesmo na
leitura das Cartas Paulinas, dos Evangelhos, quem pode afirmar que a compreende
imediatamente só porque a leitura está na sua própria língua? Só uma formação
permanente do coração e da mente pode realmente criar inteligibilidade e uma
participação que é mais do que uma actividade exterior, que é uma entrada da
pessoa, do meu ser na comunhão da Igreja e, deste modo, na comunhão com Cristo.
Segundo tema: a Igreja. Sabemos que o Concílio Vaticano I fora interrompido
por causa da guerra franco-alemã e assim passou à história com a sua
unilateralidade, ou seja, como um fragmento, já que a doutrina sobre o primado
– que foi definida, graças a Deus, naquele momento histórico da Igreja, e se
revelou muito necessária nos tempos sucessivos – era apenas um elemento numa
eclesiologia prevista e preparada mais vasta. Assim o que ficou foi o
fragmento. E podia-se dizer que, se o fragmento permanece assim como é,
tendemos para uma unilateralidade: a Igreja seria apenas o primado. Por isso,
desde o início, havia esta intenção de completar a eclesiologia do Concílio
Vaticano I, em data a encontrar, para que se tivesse uma eclesiologia completa.
Também neste tema pareciam óptimas as condições, visto que, depois da Primeira
Guerra Mundial, renascera o sentido da Igreja de um modo novo. Disse Romano
Guardini: «Nas almas, começa a despertar a Igreja», e um bispo protestante
falava do «século da Igreja». Sobretudo voltava-se a encontrar o conceito – que
estava previsto também pelo Vaticano I – do Corpo Místico de Cristo. Queria-se
afirmar e dar a entender que a Igreja não é tanto uma organização, algo de
estrutural, jurídico, institucional – embora também o seja – como sobretudo é
um organismo, uma realidade vital, que entra na minha alma, de tal modo que eu
próprio, precisamente com a minha alma crente, sou elemento constitutivo da
Igreja como tal. Neste sentido, escrevera Pio XII a Encíclica Mystici
Corporis Christi, ou seja, como um passo para completar o Concílio Vaticano
I.
Eu diria que a discussão teológica dos anos 30 e 40, e mesmo nos anos 20, se
desenrolara completamente sob este signo da expressão «Mystici Corporis».
Foi uma descoberta que criou tanta alegria naquele tempo, e foi também neste
contexto que cresceu a fórmula: Nós somos a Igreja, a Igreja não é uma
estrutura; nós, os próprios cristãos juntos, todos nós somos o Corpo vivo da
Igreja. Naturalmente isto é válido no sentido que o nós, o verdadeiro «nós» dos
crentes, juntamente com o «Eu» de Cristo é a Igreja; cada um de nós, não «um
nós», um grupo que se declara Igreja. Isso não! Este «nós somos Igreja» exige
precisamente a minha inserção no grande «nós» dos crentes de todos os tempos e
lugares. Assim temos a primeira ideia: completar a eclesiologia de modo
teológico, mas continuando também de modo estrutural, ou seja, ao lado da
sucessão de Pedro, da sua função única, definir melhor também a função dos
Bispos, do Corpo Episcopal. E, para fazer isso, encontrou-se a palavra
«colegialidade», muito discutida, com discussões acesas, diria mesmo, um pouco
exageradas. Mas era a palavra – talvez houvesse ainda outra, mas esta servia –
para exprimir que os Bispos, juntos, são a continuação dos Doze, do Corpo dos
Apóstolos. Dissemos: só um Bispo, o de Roma, é sucessor de um determinado
apóstolo, de Pedro. Todos os outros tornam-se sucessores dos Apóstolos,
entrando no Corpo que continua o Corpo dos Apóstolos. Precisamente assim o
Corpo dos Bispos, o colégio, é a continuação do Corpo dos Doze, e deste modo se
vê a sua necessidade, a sua função, os seus direitos e deveres. A muitos
aparecia como uma luta pelo poder, e talvez algum tenha pensado também ao seu
poder, mas substancialmente não se tratava de poder, mas da complementaridade
dos factores e do completamento do Corpo da Igreja com os Bispos, sucessores
dos Apóstolos, como pedra angular; e cada um deles, unido a este grande Corpo,
é pedra angular da Igreja.
Estes eram, digamos, os dois elementos fundamentais; entretanto, à procura
de uma visão teológica completa da eclesiologia, já depois dos anos 40, nos
anos 50, surgira alguma crítica ao conceito de Corpo de Cristo: «místico» seria
demasiado espiritual, demasiado exclusivo; entrara então em jogo o conceito de
«Povo de Deus». E, justamente, o Concílio aceitou este elemento, que nos Padres
aparece considerado como expressão da continuidade entre Antigo e Novo Testamento.
Nos livros do Novo Testamento, a expressão «Laos tou Theou», que
corresponde a textos do Antigo Testamento, significa – parece-me, apenas com
duas excepções – o antigo Povo de Deus, os judeus que são, entre os povos («goim»)
do mundo, «o» Povo de Deus. E os outros… nós, pagãos, não somos por natureza o
Povo de Deus, tornamo-nos filhos de Abraão e, consequentemente, Povo de Deus
quando entramos em comunhão com Cristo, o único que é descendente de Abraão. E,
entrando em comunhão com Ele, fazendo-se um só com Ele, também nós somos Povo
de Deus. Por outras palavras, o conceito «Povo de Deus» implica a continuidade
dos Testamentos, a continuidade da história de Deus com o mundo, com os homens,
mas implica também o elemento cristológico. Só através da cristologia é que nos
tornamos Povo de Deus, e assim se combinam os dois conceitos. E o Concílio
decidiu criar uma construção trinitária da eclesiologia: Povo de Deus Pai,
Corpo de Cristo, Templo do Espírito Santo.
Mas só depois do Concílio é que foi posto em evidência um elemento que se
encontra um pouco escondido no próprio Concílio: a ligação entre Povo de Deus e
Corpo de Cristo é precisamente a comunhão com Cristo na união eucarística; aqui
tornamo-nos Corpo de Cristo. Podemos dizer que a relação entre Povo de Deus e
Corpo de Cristo cria uma nova realidade: a comunhão. Poder-se-ia dizer que,
depois do Concílio, foi descoberto como, na realidade, o próprio Concílio
levara a encontrar este conceito: a comunhão como conceito central. Eu diria
que, no Concílio, filologicamente tal conceito não estava ainda totalmente
amadurecido, mas é fruto do Concílio que o conceito de comunidade se tenha
tornado progressivamente a expressão da essência da Igreja, comunhão nas
diferentes dimensões: comunhão com o Deus Trinitário – sendo Ele próprio
comunhão entre Pai, Filho e Espírito Santo –, comunhão sacramental, comunhão
concreta no episcopado e na vida da Igreja.
Ainda mais conflituoso era o problema da Revelação. Tratava-se da relação
entre Escritura e Tradição, e aqui apareciam sobretudo os exegetas interessados
numa maior liberdade; sentiam-se um pouco – digamos – em situação de
inferioridade relativamente aos protestantes, que faziam as grandes
descobertas, enquanto os católicos se viam um pouco como «deficientes» pela
necessidade de se submeter ao Magistério. Por conseguinte, aqui estava em jogo
uma luta também muito concreta: Que liberdade têm os exegetas? Como se pode ler
bem a Escritura? Que quer dizer Tradição? Era uma batalha pluridimensional que
não posso mostrar agora; o importante é que a Escritura é de certeza a Palavra
de Deus, e a Igreja está sob a Escritura, obedece à Palavra de Deus, não está
acima da Escritura. E, no entanto, a Escritura só é Escritura porque existe a
Igreja viva, o seu sujeito vivo; sem o sujeito vivo da Igreja, a Bíblia é
apenas um livro que abre, se abre para diferentes interpretações sem dar uma
derradeira clareza.
Como disse, aqui a batalha era difícil, tendo sido decisiva uma intervenção
do Papa Paulo VI. Esta intervenção mostra toda a delicadeza de um pai, a sua
responsabilidade pelo andamento do Concílio, mas também o seu grande respeito
pelo mesmo. Tinha nascido a ideia de que a Bíblia é completa, tudo se encontra
nela; por conseguinte, não há necessidade da Tradição, e o Magistério não tem
nada a dizer. Então o Papa enviou ao Concílio – parece-me – 14 formas de uma
frase que devia ser inserida no texto sobre a Revelação e dava-nos, dava aos
Padres a liberdade de escolher uma das 14 formas, mas disse: uma deve ser
escolhida, para tornar completo o texto. Recordo-me, mais ou menos, da forma «non
omnis certitudo de veritatibus fidei potest sumi ex Sacra Scriptura», isto
é, a certeza da Igreja sobre a fé não nasce apenas de um livro isolado, mas tem
necessidade do sujeito que é a Igreja iluminada, guiada pelo Espírito Santo. Só
assim é que a Escritura fala e tem toda a sua autoridade. Esta frase que
escolhemos na Comissão Doutrinal, uma das 14 formas, é decisiva – diria – para
mostrar a indispensabilidade, a necessidade da Igreja e deste modo compreender
o que quer dizer Tradição, o Corpo vivo no qual vive, desde o início, esta
Palavra e do qual recebe a sua luz, no qual ela nasceu. O próprio Cânon é um
facto eclesial: que estes escritos sejam a Escritura resulta da iluminação da
Igreja, que encontrou em si este Cânon da Escritura; encontrou, não criou. E
sempre e só nesta comunhão da Igreja viva é que se pode realmente também
compreender, ler a Escritura como Palavra de Deus, como Palavra que nos guia na
vida e na morte.
Como disse, esta era uma batalha bastante difícil, mas graças ao Papa e
graças – digamo-lo – à luz do Espírito Santo, que estava presente no Concílio,
criou-se um documento que é um dos mais belos e inovadores de todo o Concílio e
que deve ser estudado ainda muito mais. É que também hoje a exegese tende a ler
a Escritura fora da Igreja, fora da fé, apenas no chamado espírito do método
histórico-crítico – um método importante, mas não até ao ponto de poder dar
soluções como última certeza; só se acreditarmos que estas não são palavras
humanas, mas palavras de Deus, e só se se vive no sujeito vivo ao qual falou e
fala Deus, é que podemos interpretar bem a Sagrada Escritura. E aqui – como
disse no prefácio do meu livro sobre Jesus (cf. I volume) – há ainda
muito a fazer para se chegar a uma leitura verdadeiramente no espírito do
Concílio. Aqui a aplicação do Concílio ainda não é completa, está ainda por
fazer.
E, finalmente, o ecumenismo. Não quero entrar agora nestes problemas,
contudo era óbvio – sobretudo depois das «paixões» sofridas pelos cristãos no
tempo do nazismo – que os cristãos poderiam encontrar a unidade, pelo menos
procurar a unidade, mas era claro também que só Deus pode dar a unidade. E
estamos ainda a caminho… E, com estes temas, a «aliança do Reno» tinha – por
assim dizer – feito o seu trabalho.
O horizonte da segunda parte do Concílio é muito mais vasto. Apresentava-se,
com grande urgência, o tema: O mundo de hoje, a época moderna, e a Igreja; e, relacionado
com o mesmo, os temas da responsabilidade pela construção deste mundo, da
sociedade, a responsabilidade pelo futuro deste mundo e esperança escatológica,
a responsabilidade ética do cristão, onde poderá encontrar os seus guias; e,
depois, a liberdade religiosa, o progresso e a relação com as outras religiões.
Nesta altura, participam realmente na discussão todas as latitudes presentes no
Concílio; não só a América, os Estados Unidos…, com um grande interesse pela
liberdade religiosa. No terceiro período, estes disseram ao Papa: Não podemos
voltar para casa sem levar, na nossa bagagem, uma declaração sobre a liberdade
religiosa votada pelo Concílio. Todavia o Papa, com firmeza e decisão, teve a
paciência de levar o texto para o quarto período, a fim de encontrar uma
maturação e um consenso suficientemente completos entre os Padres do Concílio.
Como dizia, jogaram um papel forte no Concílio não só os norte-americanos, mas
também a América Latina, bem conhecedora da miséria do povo, de um continente católico,
e da responsabilidade da fé pela situação daquela gente. E de igual modo a
África, a Ásia, que viram a necessidade do diálogo inter-religioso; despontaram
problemas que nós, alemães, – é justo que o diga – no início não tínhamos
visto. Não posso agora descrever tudo isto. O grande documento «Gaudium
et spes» analisou muito bem os problemas da escatologia cristã e progresso
do mundo, da responsabilidade pela sociedade de amanhã e responsabilidade do
cristão face à eternidade, tendo assim também renovado a ética cristã, os
fundamentos. Mas inesperadamente – digamos – cresceu, ao lado deste grande
documento, outro documento que dava resposta, de forma mais sintética e
concreta, aos desafios do tempo: a «Nostra
aetate». Desde o início, estavam presentes os nossos amigos judeus, que
nos disseram a nós, alemães, sobretudo, mas não só a nós, que depois dos
tristes acontecimentos deste século nazista, da década nazista, a Igreja
Católica deve dizer uma palavra sobre o Antigo Testamento, sobre o povo judeu.
Diziam: embora seja claro que a Igreja não é responsável pelo Shoah,
todavia uma grande parte daqueles que cometeram tais crimes eram cristãos;
devemos aprofundar e renovar a consciência cristã, mesmo sabendo bem que os
verdadeiros crentes sempre resistiram contra essas coisas. Tornava-se assim
claro que a relação com o mundo do antigo Povo de Deus devia ser objecto de
reflexão. É compreensível também que os países árabes – os Bispos dos países
árabes – não tivessem ficado felizes com esta possibilidade: temiam em certa
medida uma glorificação do Estado de Israel, que naturalmente não queriam. E
disseram: Uma indicação verdadeiramente teológica sobre o povo judeu é boa, é
necessária, mas, se falardes disso, falai também do Islão; só assim se restabelecerá
o equilíbrio; também o Islão é um grande desafio, e a Igreja deve esclarecer
igualmente a sua relação com o Islão. Eis uma realidade que então nós quase não
compreendemos: um pouco, sim, mas não muito. Hoje sabemos como era necessário!
E quando começámos a trabalhar também sobre o Islão, disseram-nos: Mas há
também outras religiões no mundo: na Ásia inteira! Pensai no Budismo, no
Hinduísmo.... E assim, em vez de uma Declaração pensada inicialmente apenas
sobre o antigo Povo de Deus, criou-se um texto sobre o diálogo inter-religioso,
antecipando aquilo que só trinta anos depois é que se manifestou em toda a sua
intensidade e importância. Não posso entrar agora neste tema, mas se alguém ler
o texto, verá que é muito denso e preparado verdadeiramente por pessoas que
conheciam as realidades, e indica brevemente, com poucas palavras, o essencial.
Nele se vê também o fundamento para um diálogo, na diferença, na diversidade,
na fé sobre a unicidade de Cristo, que é um, não sendo possível, para um
crente, pensar que as religiões todas não passem de variações de um tema. Não!
Há uma realidade do Deus vivo que falou, e é um Deus, é um Deus
encarnado, e portanto uma Palavra de Deus, que é realmente Palavra de
Deus. Mas há também a experiência religiosa, com uma certa luz humana da
criação, e por conseguinte é necessário e possível entrar em diálogo e, assim,
abrir-se um ao outro e abrirem-se todos à paz de Deus, de todos os seus filhos,
de toda a sua família
Portanto, estes dois documentos – A liberdade religiosa e a «Nostra
aetate» – juntos com a «Gaudium
et spes» são uma trilogia muito importante, cuja importância se foi
manifestando apenas com o passar das décadas, e ainda estamos a trabalhar para
compreender melhor este conjunto formado pela unicidade da Revelação de Deus, a
unicidade do único Deus encarnado em Cristo, e a multiplicidade das religiões,
com as quais procuramos a paz, e também o coração aberto pela luz do Espírito
Santo, que ilumina e guia para Cristo.
Agora quero acrescentar ainda um terceiro ponto: havia o Concílio dos Padres
– o verdadeiro Concílio – mas havia também o Concílio dos meios de comunicação,
que era quase um Concílio aparte. E o mundo captou o Concílio através deles,
através dos mass-media. Portanto o Concílio, que chegou de forma
imediata e eficiente ao povo, foi o dos meios de comunicação, não o dos Padres.
E enquanto o Concílio dos Padres se realizava no âmbito da fé, era um Concílio
da fé que faz apelo ao intellectus, que procura compreender-se e procura
entender os sinais de Deus naquele momento, que procura responder ao desafio de
Deus naquele momento e encontrar, na Palavra de Deus, a palavra para o presente
e o futuro, enquanto todo o Concílio – como disse – se movia no âmbito da fé,
como fides quaerens intellectum, o Concílio dos jornalistas,
naturalmente, não se realizou no âmbito da fé, mas dentro das categorias dos
meios de comunicação actuais, isto é, fora da fé, com uma hermenêutica
diferente. Era uma hermenêuticos política: para os mass-media, o
Concílio era uma luta política, uma luta de poder entre diversas correntes da
Igreja. Era óbvio que os meios de comunicação tomariam posição por aquela parte
que se lhes apresentava mais condizente com o seu mundo. Havia aqueles que
pretendiam a descentralização da Igreja, o poder para os Bispos e depois,
valendo-se da expressão «Povo de Deus», o poder do povo, dos leigos. Existia
esta tripla questão: o poder do Papa, em seguida transferido para o poder dos
bispos e para o poder de todos, a soberania popular. Para eles, naturalmente,
esta era a parte que devia ser aprovada, promulgada, apoiada. E o mesmo se
passava com a liturgia: não interessava a liturgia como acto da fé, mas como
algo onde se fazem coisas compreensíveis, algo de actividade da comunidade,
algo profano. E sabemos que havia uma tendência – invocava mesmo um fundamento
na história – para se dizer: A sacralidade é uma coisa pagã, eventualmente do
próprio Antigo Testamento. No Novo, conta apenas que Cristo morreu fora:
fora das portas, isto é, no mundo profano. Portanto há que acabar com a
sacralidade, o próprio culto deve ser profano: o culto não é culto, mas um acto
do todo, da participação comum, e deste modo a participação vista como
actividade. Estas traduções, banalizações da ideia do Concílio, foram virulentas
na prática da aplicação da reforma litúrgica; nasceram numa visão do Concílio
fora da sua chave própria de interpretação, da fé. E o mesmo se passou também
com a questão da Escritura: a Escritura é um livro, histórico, que deve ser
tratado historicamente e nada mais, etc.
Sabemos como este Concílio dos meios de comunicação era acessível a todos.
Por isso, acabou por ser o predominante, o mais eficiente, tendo criado tantas
calamidades, tantos problemas, realmente tanta miséria: seminários fechados,
conventos fechados, liturgia banalizada... enquanto o verdadeiro Concílio teve
dificuldade em se concretizar, em ser levado à realidade; o Concílio virtual
era mais forte que o Concílio real. Mas a força do Concílio era real, estava
presente e, pouco a pouco, vai-se realizando cada vez mais e torna-se a
verdadeira força, que constitui também a verdadeira reforma, a verdadeira
renovação da Igreja. Parece-me que, passados cinquenta anos do Concílio, vemos
como este Concílio virtual se desfaz em pedaços e desaparece, enquanto se
afirma o verdadeiro Concílio com toda a sua força espiritual. E é nossa missão,
precisamente neste Ano da Fé,
começando deste Ano da Fé,
trabalhar para que o verdadeiro Concílio, com a própria força do Espírito
Santo, se torne realidade e seja realmente renovada a Igreja. Temos esperança
de que o Senhor nos ajudará. Eu, retirado, com a minha oração estarei sempre
convosco e, juntos, caminhemos com o Senhor, na certeza de que vence o Senhor!
Obrigado!
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