18 maio, 2012

A PAIXÃO DE JESUS e as ARTES



No início da Idade Média o teatro e as artes plásticas, ao interpretar as narrativas da paixão do Senhor, começaram a dar imagem ao sofrimento e à morte de Jesus, como suportes privilegiados para a catequese, para as festas litúrgicas e para práticas devocionais como a Via Sacra. As iconografias do Ecce Homo, do Senhor da Cana Verde e do Senhor da Paciência, ao evocar a flagelação de Jesus, correspondiam a espiritualidades centradas na meditação dos sofrimentos do Senhor, e que igualmente enalteciam o valor do sofrimento como caminho de salvação, convidando os fieis à identificação com Cristo na aceitação das injustiças deste mundo.
Estas iconografias foram interpretadas nas artes eruditas e populares ao longo dos séculos e são ainda alvo privilegiado de culto. Ao interpretar as descrições do Calvário e da Via Crucis, os artistas criaram imagens de grande serenidade e imagens dramáticas com cenas de maior ou menor violência. Os Cristos impassíveis da arte da Renascença, contrastaram com os Cristos sofredores do gótico anterior e do barroco posterior. Mas nenhuma realização artística conseguiu suplantar a violência e o dramatismo do Cristo crucificado e retorcido de dor, crivado de espinhos e de sangue, pintado por Mathias Grünewald, no século XVI, na Alemanha.
O Concílio de Trento, proibiu os exageros expressivos nas imagens e a representação da Virgem Maria desmaiada de dor, junto à cruz. Porém, a pintura devocional, geralmente encomendada pelas comunidades religiosas, explorou as imagens dos sofrimentos físicos de Jesus, as quais eram explicitamente associadas aos pecados individuais e colectivos.
Na arte que é o cinema, o movimento das imagens e o seu aparente realismo vieram proporcionar níveis muito mais elevados de dramatismo e de violência às representações da Via Sacra. Assim, o filme sobre a Paixão, realizado por Mel Gibson, deu origem a uma acesa polémica, e a a condenações, por parte de sectores cristãos e não cristãos. Numa discussão marcada pela paixão e pela subjectividade, confundiram-se os argumentos teológicos, estéticos, bíblicos, cinematográficos e políticos implicados no conteúdo e na forma do filme.  
Apesar do cinema ser uma arte efémera, a sua capacidade de envolvimento emocional do espectador é muito mais intensa e atinge muito mais pessoas do que as artes que criam imagens tangíveis e permanentes, como é o caso da pintura e da expressão literária. Uma frase que, em três palavras, refere que “Jesus foi flagelado”, ao ser transposta para o plano cinematográfico adquire a visualidade da acção a ser praticada nas dimensões do tempo, do espaço e da duração dos acontecimentos, e dos seus efeitos na pessoa de Jesus, o Justo à mercê da brutalidade de algozes profissionais na execução de uma sentença. A uma frase literalmente inócua pode corresponder uma realidade visualmente insuportável.
A reacção das pessoas a uma obra de arte de conteúdo religioso, traduzida pela linguagem do cinema com a mesma liberdade poética com que foi interpretada pelas artes tradicionais ao longo de dez séculos, continua a ser predominantemente emocional. A percepção de cada um a um tema como a Paixão de Cristo, ou à perspectiva sob o qual ele é abordado, é sempre influenciada por conceitos e preconceitos, e por simpatias ou antipatias ideológicas, teológicas e culturais.
Compreende-se que a classificação atribuída pela crítica cinematográfica ao filme de Mel Gibson tenha oscilado entre o mau e o excepcional, e que as opiniões dos teólogos e dos biblistas consultados tenham sido igualmente contraditórias. Como a visão de fé dos crentes é sempre pessoal, a visão dos artistas-crentes que interpretam as narrativas das Sagradas Escrituras pode ser diferente da sensibilidade religiosa dos demais, e entrar em choque com a comunidade ou com as orientações catequéticas que são predominantes na sua cultura e na sua época. A violência e o sofrimento na consciência religiosa do realizador americano foram considerados “medievais” porque contrastam drasticamente com a vivência religiosa predominantemente “soft” e prazenteira da sociedade actual. Para além de ser um testemunho de fé, o filme de Mel Gibson é um poderoso manifesto no qual o artista e o crente nos confrontam com o incómodo Mistério da Iniquidade, ao mesmo tempo que, através da linguagem da violência, provoca deliberadamente uma cultura hedonista que considera aviltante a própria ideia de obediência e de sacrifício por amor, e que desvia o olhar do “tabu” acético a que reduziu a morte. Uma cultura que, pelas mesmas razões, fica tão horrorizada com a visão directa do sofrimento e da morte que se torna incapaz de ver as motivações da dádiva e os gestos de comunhão de quem livremente se oferece, e de reconhecer o despontar da luz da ressurreição.
Como no início da era cristã, a cruz de Cristo continua a ser escândalo e loucura para quem não acredita que Deus entregou ao mundo o Seu Filho muito amado e motivo de humilhação para os cristãos que têm dificuldade em aceitar todas as incidências do Mistério da Encarnação. Como no início da arte cristã, a Paixão de Cristo e a sua cruz gloriosa continuam a ser promessa e sinal de ressurreição.

Emília Nadal
Labat nº 40, Maio 2004

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