No início da Idade Média o teatro e as artes plásticas, ao interpretar as narrativas da paixão do Senhor, começaram a dar imagem ao sofrimento e à morte de Jesus, como suportes privilegiados para a catequese, para as festas litúrgicas e para práticas devocionais como a Via Sacra. As iconografias do Ecce Homo, do Senhor da Cana Verde e do Senhor da Paciência, ao evocar a flagelação de Jesus, correspondiam a espiritualidades centradas na meditação dos sofrimentos do Senhor, e que igualmente enalteciam o valor do sofrimento como caminho de salvação, convidando os fieis à identificação com Cristo na aceitação das injustiças deste mundo.
Estas
iconografias foram interpretadas nas artes eruditas e populares ao longo
dos séculos e são ainda alvo privilegiado de
culto. Ao
interpretar as
descrições do Calvário e da Via Crucis, os artistas criaram imagens de grande serenidade e imagens dramáticas com cenas de maior ou menor violência. Os Cristos impassíveis da arte da Renascença, contrastaram com os
Cristos sofredores do gótico anterior e do barroco
posterior. Mas
nenhuma realização artística conseguiu
suplantar a violência e o dramatismo do
Cristo crucificado e retorcido de dor, crivado de
espinhos e de sangue, pintado por Mathias Grünewald, no século XVI, na Alemanha.
O
Concílio de Trento, proibiu os exageros expressivos nas imagens e a representação da Virgem Maria desmaiada de dor,
junto à cruz. Porém, a pintura devocional, geralmente encomendada pelas comunidades religiosas, explorou as imagens dos
sofrimentos físicos de Jesus, as quais eram explicitamente associadas aos pecados individuais e colectivos.
Na 7ª arte que é
o cinema,
o movimento das
imagens
e o seu aparente realismo vieram proporcionar níveis muito
mais
elevados
de dramatismo e de
violência às
representações
da Via Sacra. Assim, o
filme sobre a
Paixão,
realizado por Mel
Gibson, deu origem a uma acesa polémica, e até a condenações, por parte de sectores cristãos e não cristãos. Numa discussão marcada pela paixão e pela subjectividade,
confundiram-se
os argumentos
teológicos, estéticos, bíblicos, cinematográficos e políticos implicados no conteúdo
e na forma do filme.
Apesar do cinema ser uma arte efémera, a sua capacidade de
envolvimento emocional do espectador é muito mais intensa e atinge
muito mais
pessoas
do que as artes que
criam
imagens
tangíveis
e permanentes,
como é o caso
da pintura e da expressão
literária.
Uma frase que, em
três palavras, refere
que “Jesus foi flagelado”, ao ser transposta para o plano cinematográfico adquire a visualidade da acção a ser praticada nas dimensões do tempo, do
espaço
e da duração dos acontecimentos,
e dos seus efeitos na pessoa de Jesus, o Justo à mercê da brutalidade de algozes
profissionais
na execução
de uma sentença. A uma frase literalmente inócua pode
corresponder uma realidade visualmente insuportável.
A reacção das pessoas a uma obra de arte de
conteúdo religioso, traduzida pela linguagem do cinema com a mesma liberdade poética com que foi interpretada pelas artes tradicionais ao longo de
dez séculos, continua a ser predominantemente
emocional. A percepção
de cada um a um tema como a Paixão de
Cristo, ou à perspectiva sob o qual ele é abordado, é sempre influenciada por
conceitos e preconceitos, e por simpatias ou antipatias ideológicas, teológicas e culturais.
Compreende-se que a classificação atribuída pela crítica cinematográfica ao filme de
Mel Gibson tenha oscilado entre o mau e o excepcional, e que as opiniões
dos teólogos e dos biblistas consultados tenham sido igualmente contraditórias. Como a visão de fé dos crentes é sempre pessoal, a visão dos artistas-crentes
que interpretam as narrativas das Sagradas Escrituras pode ser
diferente da sensibilidade religiosa dos demais, e entrar em choque
com a comunidade ou com as orientações catequéticas que são
predominantes
na sua cultura e na sua época. A violência e o
sofrimento na
consciência religiosa do realizador americano foram considerados “medievais” porque contrastam drasticamente com a vivência religiosa predominantemente
“soft” e prazenteira da sociedade actual. Para além de ser
um testemunho de fé, o filme de Mel Gibson é um poderoso manifesto no qual o artista e o crente nos
confrontam
com o incómodo Mistério da Iniquidade, ao mesmo tempo que, através da linguagem da violência, provoca deliberadamente uma cultura hedonista que considera aviltante a própria ideia de
obediência e
de sacrifício
por amor,
e que desvia o
olhar
do “tabu” acético a que
reduziu a morte.
Uma cultura que, pelas mesmas razões, fica tão
horrorizada com a visão
directa do
sofrimento e da morte que se torna incapaz de ver as motivações da dádiva e os
gestos de comunhão de quem livremente se oferece, e de reconhecer o despontar da luz da ressurreição.
Como no início
da era cristã, a cruz de
Cristo continua a ser escândalo e loucura para quem não acredita que Deus entregou ao mundo o
Seu Filho muito amado e motivo de humilhação para os
cristãos que têm dificuldade em aceitar todas as incidências do Mistério da Encarnação. Como no início
da arte cristã, a Paixão de
Cristo e a sua cruz
gloriosa continuam a ser
promessa e
sinal
de ressurreição.
Emília Nadal
Labat nº 40, Maio 2004
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