30 janeiro, 2011

Dizer a Caridade em Deus Caritas est


Procurando conhecer quem é Deus, tocamos invariavelmente a questão de quem somos nós.
De facto, o conhecimento de Deus não se pode separar do conhecimento de nós mesmos na nossa condição de humanos, por isso S. Francisco rezava: “Quem sois vós, Senhor, e quem sou eu?” Se fossemos anjos ou qualquer outro tipo de espíritos puros que vivêssemos da contemplação da Glória de Deus, estes problemas não se colocariam, mas somos Homens e é à medida humana que nós pensamos e sentimos.
O percurso mais fácil para conhecermos alguma coisa ou alguém, é ir daquilo que conhecemos para o que desejamos conhecer e ainda não entendemos totalmente. Partir do Homem para Deus é ir do visível ao invisível, da criatura ao Criador, da obra ao artista que se dá a conhecer pelos sinais que de Si mesmo deixa na Sua obra. É o único percurso porque “a Deus nunca ninguém o viu” e o que conhecemos d’Ele foi o que Ele revelou na obra da criação do Homem à sua imagem e semelhança, e do universo inteiro, e, finalmente, o que nos disse no seu Filho muito amado, a Palavra feita carne, Jesus Cristo.
As marcas que Deus deixou na sua obra são uma mensagem que o homem pode entender, e essas marcas dizem-nos Quem é Deus. É uma linguagem ou uma comunicação que o homem pode perceber porque foi dotado com essa capacidade. Ainda que isso exija algum esforço de compreensão Deus não pára de nos falar, porque não pára nem de criar nem de se nos dar. Antes de entrarmos propriamente na questão da linguagem, façamos alguns esclarecimentos.
O “que é o homem” é a pergunta que acompanha a humanidade deste os mais remotos exercícios da capacidade racional do ser humano. Desde cedo nos perguntámos por este mistério da natureza a quem foi dado o cuidado de todas as coisas. E o homem descobre-se como um ser de relação que está insatisfeito enquanto não encontra alguém que o compreenda, daí que tenha exultado de alegria ao ver outro ser humano, “osso dos seus ossos, carne da sua carne”.
O contacto com os outros que habitam o mesmo mundo diz-me quem eu sou, assim como, de algum modo, eu revelo o ser do outro naquilo que ele é, olho de fora e dum ponto de vista que o outro não tem. Dizemos aquilo que somos na relação com as outras pessoas, particularmente com os nossos pais: quando nos apresentamos apelamos muitas vezes ao nome dos nossos pais ou dos nossos avós para que outros nos conheçam. Somos invariavelmente um ser de relação, criados à imagem do Deus-relação na Trindade Santíssima, e essa relação faz-se pela linguagem que está para além de qualquer tipo de palavra.
A linguagem não é só o que sai da nossa boca, é o que sai de nós, coração e cabeça, corpo e alma. Os nossos gestos de carinho ou de agressão, o tom de voz, o modo como usamos o nosso corpo para nos dirigirmos aos outros, dizem muito de nós mesmos, e muitas vezes são mais eloquentes que as nossas palavras. O brilho de um olhar, um sorriso, ou um abraço, dizem muito mais do que algumas palavras que saem da nossa boca. É que o coração também é fonte e comunicação. A linguagem surge assim como fonte de comunhão, para além de todas as palavras e para lá de todas as distâncias.
 Comunicar, muito para além de dizer coisas e transmitir uma mensagem, é fazer-se presente a outro pelo afecto que lhe dedicamos ou pela memória que fazemos dele: “Ainda a palavra te não chegou à boca e já Eu, o Senhor, Te conheço perfeitamente”. A omnisciência divina não tem lugar para erros de interpretação; da parte de Deus, o perfeito comunicador, não há erro nem mal entendido, o que Ele diz corresponde inteiramente ao que quer dizer; não só o que Ele fez está muito bem feito, como o que Ele diz está muito bem dito. Mas, por outro lado, a natureza humana ferida pelo pecado está sujeita ao erro e à incompreensão, quer de quem diz quer de quem entende. O sentir e o pensar são duas ordens distintas de nos relacionarmos com alguém ou com alguma coisa. O que sinto é o que sinto, e embora não o saiba, ou não possa dizer, está lá como impressão.
Por outro lado o que penso pode ser mais acertado ou mais distante da minha intenção primeira. Não somos só receptores somos também emissores na comunicação, ou seja, não somos só ouvintes ou espectadores do que se passa à nossa volta, somos também emissores e actores, pessoas que têm alguma coisa a dizer. Comunicar e deixar que o outro se comunique, é viver e deixar viver, sem calar e sem matar quem se dirige a mim. Deixar que o outro fale e que me fale, é claramente um risco, é perigoso. Se é tão importante o cuidado na compreensão de uma mensagem, tentar fazer uma correspondência o mais possível exactas entre aquilo que recebemos e aquilo que pensamos que o outro nos queria comunicar, é também de particular importância expressar-se devidamente, de forma clara e distinta e evitando todos os erros e mal-entendidos.
O fazermo-nos entender ao outro não vai tanto pelas muitas palavras, mas pela qualidade, beleza e força que colocamos naquilo que somos e naquilo sai de nós, pois falamos “da abundância do coração”. A linguagem é muitas vezes também uma fonte de equívocos. Acontece-nos frequentemente não nos fazermos entender, e é mais frequente não nos fazermos entender do que as outras pessoas não nos entenderem, de facto, na maioria dos casos quando não nos entendem é porque não nos fizemos entender. Temos de ser humildes na consciência de que aquilo que comunicamos pode, por nossa culpa, ter erro ou conduzir ao erro. O Senhor Deus ao utilizar a nossa linguagem para se comunicar connosco, aceitou sujeitar-se aos possíveis erros de interpretação. Não que Ele tivesse erro no seu dizer, nós é que por sermos pequenos e limitados, poderíamos entender mal o que Ele nos diz. Para evitar ao máximo este erro Ele deu-nos o seu Santo Espírito que nos ajuda a entender o que na verdade nos quer dizer. “Uma vez falou Deus e duas ouvi”, ou seja, não só Deus falou como nos dá a Sua ajuda para compreendermos bem o que Ele disse, sem renunciarmos ao trabalho de interpretação, e, sem preguiça, abrir a mente e o coração para acolher o que Ele nos quer revelar.
Partilho convosco esta reflexão depois de termos celebrado há pouco as festas do Natal e da epifania em que o Senhor se dá a conhecer aos gentios por um sinal celeste. Será que alguma vez os Magos teriam entendido o sinal da estrela se Deus na força do Seu Espírito não tivesse guiado as suas mentes? A importância fundamental de saber ler os sinais de Deus, imitando a Virgem Maria que guardava e meditava no seu coração o que lhe era dado da parte do Senhor. A linguagem sendo um problema, não é irresolúvel, é antes um desafio da nossa humana capacidade para buscarmos a solução, para sermos rigorosos da nossa expressão. O apelo que o Santo Padre faz na sua Encíclica ao problema da linguagem para a questão do amor, estende-se a toda a nossa vida na atenção que nos merece o ir ao encontro do outro e de me relacionar com ele por meio da palavra, evitando todo o erro e mal compreensão.
Frei Gonçalo Henriques OFM
Labat – 25.1.2007

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