A Quaresma é tempo favorável para abrir os olhos da alma e do coração, para nos vermos à luz de Deus, para pedir ao Espírito a graça da nossa conversão. Mas parece que há uma nuvem de poeira que nos vai cegando, impedindo de ver mais e melhor, de ver mais profundamente.
Se nalgum dos campos e sectores da nossa vida a nuvem de poeira se fez sentir, parece ser exactamente neste: a necessidade de conversão. É próprio do espírito do mal, do príncipe das trevas, querer convencer-nos que não temos pecados, que o pecado não existe, que não necessitamos de conversão, que não precisamos de nos examinar, converter, corrigir.
Anda por aí uma doença que se poderia chamar permissivismo, em que parece que tudo é permitido, que nada é mal, que tudo se pode fazer ou dizer, que não há pecado em nada, nem sequer em matar, em caluniar, em roubar, etc. E no campo da oração e da fidelidade à vida interior ou espiritual como no sector da vida de castidade, parece que essa nuvem densa ainda se faz sentir com maior profundidade.
O maior pecado deste mundo, deste tempo, é a falta de consciência de pecado. Insensíveis ao amor de Deus, ficamos como calhaus, insensíveis ao pecado, ao mal, à malícia e perversidade que nos rodeia ou que trazemos dentro de nós.
Daí a falta de consciência para encarar a sério a necessidade de conversão. Se sinto e digo que não há pecado, que não tenho pecado, porquê e para quê a conversão?
A nuvem de poeira que o inimigo da natureza humana nos lança nos olhos da alma e do coração, torna-nos menos sensíveis ao bem, à virtude, à graça, à conversão, à necessidade de amar a Deus e ao próximo. A nuvem de poeira quer que fiquemos instalados, comodistas, aburguesados, infiéis à graça e ao amor, insensíveis ao pecado e conversão.
Mas nós, pobres pecadores, somos tão cegos que não caímos na conta que temos mais pecados do que pensamos, do que vemos à superfície de nós próprios, mais pecados dos que aqueles que a nuvem de poeira nos deixa ver. Mas nem por isso a conversão é menos necessária e menos exigente.
Precisamos de conversão, de mudança, de caminhada de santidade, de ascese, de esforço para sermos mais fiéis à graça, ao amor. Precisamos de conversão pois nas nossas vidas há muita coisa que não está como Deus quer, que não é evangélica, que não é correspondência fiel ao amor de Deus e do próximo. O orgulho cega-nos, a vaidade cega-nos, a paixão cega-nos, o ciúme cega-nos e não vemos o pecado que está em nós, tornamo-nos insensíveis à fidelidade.
Rezar mais ou rezar menos, rezar melhor ou pior, dar mais tempo, com gratuidade, ao diálogo com o Senhor, parece que não nos interpela, não nos questiona, não nos causa impacto. Ser mais casto em olhares, em desejos, em pensamentos, parece que não nos causa impacto, que não nos interroga e interpela. Corresponder mais e melhor às moções do Espírito e aos apelos da graça, parece que nos deixa insensíveis, pouco determinados, pouco audazes, com pouca tenacidade interior. Certa apatia, certa sonolência espiritual, certa tibieza, nos deixam despreocupados, indolentes, infiéis, a deixar-nos conduzir para uma inércia que nos instala, que não nos deixa desejar o mais, o melhor, o mais santo, o mais perfeito.
Falta garra, audácia, tenacidade, força interior, compromisso sério. E assim andamos muitos de nós, ao sabor do prazer, do apetite, do mais cómodo, do menos exigente. Uma mediocridade assustadora. E a nuvem densa de poeira em que o inimigo nos faz mergulhar, torna-nos cegos.
Mas é tempo de conversão, de mudança. Tempo favorável a uma acção decidida de conversão, de busca humilde do melhor, de dinamismo interior para sermos mais santos, mais orantes, mais pobres, mais humildes, mais caridosos, mais evangélicos.
É tempo de conversão. Não deixemos que a poeira nos impeça de olhar para nós, para a nossa vida, para o nosso interior, para nos comprometermos a uma determinada conversão, a uma mudança mais radical na fidelidade ao amor.
O MISTÉRIO DA INIQUIDADE
Nestes tempos quaresmais é urgente pensar no pecado. Parece que não gostamos de o fazer. Há quem afirme que o maior pecado dos tempos de hoje é a falta de consciência do pecado. O demónio, pai da mentira, como lhe chama Jesus, parece estar interessado em enganar-nos, a levar-nos a pensar que não temos pecado, que não há pecado no mundo.
Mas isto é artimanha do maligno, daquele que é o príncipe das trevas, e as trevas, como nuvem densa de poeira, impede que os olhos da alma e do coração descubram o mistério da iniquidade que está em nós e no mundo.
E o mistério da iniquidade não é, propriamente, o somatório dos pecados, mas o elo maligno e satânico, de miséria e maldade, de podridão e fealdade, que os une.
É este mistério de iniquidade que está em nós, nos outros, nas próprias estruturas da sociedade, no mundo mau e satânico, como diz S. João, em oposição ao mundo belo criado por Deus.
Para muitos hoje, há uma permissividade assustadora, quase a caminhar para a loucura, para a máxima aberração, para a paranóia de um agir sem lei, sem regra, sem pudor, sem dignidade, onde tudo se pode fazer, tudo se pode dizer, tudo se pode realizar, desde o matar ao roubar, desde promiscuidade sexual à droga, desde a fraude até ao crime.
Numa avalanche que não para mais, como lava de vulcão a rolar pela montanha abaixo, o mistério da iniquidade está aí, a cada esquina, em cada rosto, nas manobras subtis da tentação, nos enredos nefastos de prazer pecaminoso, nas afrontas indigentes ao valor da vida, da justiça, do amor.
Espreita-nos esse mistério da iniquidade, nos écrans da televisão, nos anúncios dos jornais, em tantos artigos que levam a maldade e o labirinto da mentira ou do suborno.
Espreita-nos quando se deseja votar leis permitindo matar uma criança antes de nascer ou um idoso ou doente através da chamada eutanásia.
Espreita-nos nos cartazes, por vezes imundos, eróticos, pornográficos, ou nos anúncios do marketing que nos cegam e seduzem.
Espreita-nos dum modo maléfico e subtil quando perante o pecado, o mal, o satisfatório, já há muita gente que fica impassível, sem capacidade de julgar, de optar pelo bem e pelo melhor, aceitando o pecado, com a máxima naturalidade sem pudor ou repugnância instintiva.
Bernanos, um famoso autor francês, afirmou que "o nosso pecado envenena o ar que os outros respiram". E todos vamos ficando contaminados. Como denso nevoeiro que suja e impede os olhos da alma e do coração de verem com justeza e dignidade.
Chafurdamos na lama, enredados pelo pecado, seduzidos pelo espírito do mal, manobrados pela tentação, enganados pelo poder das trevas, pelo pai da mentira, alienados pelo que luz mas não é oiro, presos pelas correntes do mal e da iniquidade, caminhamos no mundo da iniquidade.
E um pecado vai arrastando a outro. David porque causa adultério vai cometer um homicídio. Judas porque era ladrão vendeu o Mestre.
Quem é orgulhos, forçosamente pisa e destrói os outros, quem é vaidoso nunca terá espírito de pobreza evangélica, quem entra na areia movediça vai-se enterrar cada vez mais. E, às vezes, na tentativa de sair de um pecado cai noutro, pois o emaranhado da teia, ou da densa nuvem de poeira, não o deixa libertar.
Com a Palavra lutemos contra o MISTÉRIO DA INIQUIDADE que está em nós, nos outros, no mundo, na certeza que a vitória será nossa, unidos a Deus e alimentados pelo dom da sua Palavra salvadora.
Com a oração lutemos contra o MISTÉRIO DA INIQUIDADE que está em nós, nos outros, no mundo, e não deixemos de rezar, mais e melhor, para alcançar a vitória do amor que salva e liberta.
Com a penitência lutemos contra o MISTÉRIO DA INIQUIDADE que está em nós, nos outros, no mundo, na certeza de que a ascese, a penitência, a mortificação são um modo de nos identificarmos com Jesus Crucificado, o Homem Penitente e Sofredor.
Bela caminhada de Quaresma.
Dário Pedroso SJ
Labat n.º 101 de Fevereiro de 2010
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