13 agosto, 2009

SANTIDADE



Nas nossas sociedades ocidentais, democratas e laicas, ninguém, com raras excepções, fala de santidade: nem os jornais, a televisão, os políticos, os empresários e respectivos trabalhadores.
Todos falam de democracia, laicidade, direitos humanos, justiça e injustiça, corrupção. Apenas nas igrejas se ouve falar de Deus Santo e dos filhos de Deus que devem ser santos como Deus é Santo.

No AT, o texto cimeiro que canta e louva Deus como Santo é o de Is 6, 3: os serafins referem Deus, em liturgia de louvor, espanto e admiração, como o três vezes Santo. A terra está cheia do kabod divino, isto é, da sua glória que dimana da sua santidade.

A tradição sacerdotal que fornece a última camada redaccional às Sagradas Escrituras estrutura todo o AT em vertentes de santo (sagrado) e profano.

Só Javé é Santo; os demais deuses são nada. Só a Terra de Javé é santa com os seus rios, montanhas, pedras, e, sobretudo, com o seu Templo de Jerusalém dividido em três partes: o pátio exterior, onde se encontra o altar, ao ar livre, o tabernáculo do encontro, reservado aos sacerdotes e, finalmente, o Qodes, o Santíssimo, ou Santo dos Santos, lugar do Deus Altíssimo, separado do resto do Tempo por uma cortina, onde o Sumo Sacerdote entrava uma vez ao ano, no dia do Yom Kippur, ou da Expiação dos pecados (Lv 16, 34).

O Deus Santo habita naquele lugar que é o escabelo dos seus pés. Deus está separado do seu povo pela cortina ou paroket ( Lv 16, 2, 12. 15).

Com a morte de Jesus Cristo, a cortina que separava o Santo dos Santos do resto do Templo, é rasgada ao meio, as trevas caem sobre a terra, os mortos ressuscitam (Mt 27, 51-53). São os sinais da mudança de paradigma. Daqui em diante acabam-se os muros entre o Santo e o profano.

Entra-se na época do Espírito e não da Lei, na consumação do Reino de Deus.

Realmente, segundo Jesus, o Reino de Deus vem para santos e pecadores, sãos e doentes, judeus e pagãos. As parábolas de Jesus invertem e subvertem completamente o paradigma judaico.

O pai dá liberdade ao seu filho mais novo par sair de casa e levar a sua vida de acordo com os seus desejos. O filho perde-se no pecado, mas o pai espera a sua volta com ansiedade. O filho regressa à casa paterna (ao Reino de Deus), sem ralhetes nem sermões de ordem moral.

O patrão da vinha dá trabalho a todos e paga a todos da mesma maneira porque no Reino de Deus só há lugar para o perdão e para a misericórdia (“prefiro a misericórdia aos sacrifícios”).

O pastor deixa as 99 ovelhas no deserto e vai à procura da ovelha perdida.

O samaritano, odiado pelos judeus, é o “santo” e não o sacerdote e o levita, porque tratou o judeu, seu inimigo, maltratado pelos ladrões, com amor.

No Reino de Deus há lugar para todos desde que aceitem a pessoa de Jesus como enviado de Deus, seu Filho, Messias, Senhor e Salvador.

O mundo cultural da honra e santidade, reservada aos judeus, ao pai de família, aos hasidîm fariseus, cumpridores da Lei, aos zelotas guerrilheiros contra gregos e romanos, passa para o mundo cultural onde todos sejam irmãos, sem ódios, barreiras sociais, patriarcalismos que punham as mulheres à parte.
“Por isso vos digo: Não vos inquieteis quanto à vossa vida, com o que haveis de comer ou beber, nem quanto ao vosso corpo, com o que haveis de vestir. Porventura não é a vida mais do que o alimento, e o corpo mais do que o vestido?” (Mt 6, 25).

Jesus Cristo só quer a alegria de viver, a saúde e o trabalho para todos, o encontro do tesouro e da pérola preciosa que é o Reino de Deus em acção. Não há que esperar o juízo divino dos qumranitas, dos apocalípticos e de João Baptista.

O Juízo de Deus confunde-se, agora, com o juízo que Jesus faz da sociedade, cheia de preconceitos motivados pela pax romana das legiões romanas que esmagavam qualquer movimento contra o imperialismo sagrado de Roma e seus imperadores, pela leis ritualistas dos judeus, pelos pregadores apocalípticos sem esperança.

Deus enviou o seu Filho à Terra para a que a Terra e seus habitantes recebam o Reino de Deus de fraternidade universal. O preço vai ser elevado: a crucificação do próprio Filho de Deus e, com essa morte e ressurreição, a era do Espírito Santo contra a era da Lei e da pax romana.

S. Paulo foi o teólogo que melhor compreendeu esta reviravolta histórica no desígnio final da revelação de Deus.

Virou as costas a Pedro, a Tiago, a Barnabé, que não conseguiram dar o salto mortal em relação à circuncisão e à lei do Kosher, - a multiculturalidade sempre foi e continua a ser um problema - para se entregar ao mundo novo o Espírito, assente na morte e ressurreição do Senhor Jesus.
A santidade é para todos, judeus, gregos e romanos, desde que aceitem o Evangelho e o novo baptismo no Espírito Santo e não na Lei de Moisés (Rm 1, 7: “a todos os amados de Deus que estão em Roma, chamados a ser santos…”; ver 1Cor 1, 2; 6, 1; 2Cor 1, 1; Fl 1,1; Rm 16, 2. 5).


Viver em santidade é viver o Evangelho de Jesus do Reino de Deus lutando contra todas as forças do mal que dominavam o mundo de então, prefiguradas na figura de Satanás. Estas forças do mal distinguiam pessoas, famílias, sãs e doentes, bem nascidos e mal nascidos, ricos e pobres, latifundiários e jornaleiros.

Jesus e Paulo apresentam um outro mundo, um outro paradigma, que continua a ser o de ontem e o de hoje. Hoje, como então, continuamos com as mesmas barreiras dos pobres e ricos, com os mesmos problemas da corrupção, da paz como fruto da guerra (“se queres a paz, prepara a guerra”), dos muros entre judeus e palestinianos, entre cristãos católicos, ortodoxos, protestantes, evangélicos, entre crentes e não crentes.
Para já não falar da crise financeira e económica dinamitada por cristãos e judeus americanos.

Mundo sem paz? Mundo complexo? Mundo sem solução? Mundo sem santidade? Pessoalmente penso que é um mundo sem Deus.

Quando o homem se entrega a si mesmo, como senhor da história, da verdade e da justiça, acaba por ser um homem/mulher que só pensa e age a partir de preconceitos filosóficos, políticos, económicos.

Mas o homem/mulher não é um ser quimicamente puro, apenas fruto do acaso biológico e cósmico; é, sim, um ser ao mesmo tempo bom e mau, com virtudes e defeitos, um ser “inacabado”, de direitos e deveres.

Quando é que entenderemos as parábolas de Jesus sobre o Reino de Deus?

Quando é que entenderemos a teologia e a vida de Paulo, fundada na lei do Espírito (Gl 5, 16-26)


Pe. Joaquim Carreira das Neves, OFM
(Labat n.º 96 - Julho 2009)

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