15 março, 2010

Jesus foi tentado?

 

Por causa da leitura do evangelho do primeiro Domingo da Quaresma sobre as chamadas “Tentações de Jesus”, fui interpelado por várias pessoas “escandalizadas” com semelhante leitura evangélica. Também eu me “escandalizei” com o “escândalo” dessas pessoas, incluindo um Padre. Mas é completamente normal semelhante atitude. Como é que Jesus, sendo Deus, Senhor e Salvador, se deixa tentar pelo Diabo?
Devemos começar por dizer que o “escândalo” depende, em grande parte, da linguagem hilemórfica das duas naturezas de Jesus, a humana e a divina.
O conceito natureza é tipicamente da gramática grega, mas não aparece na gramática nem no dicionário da língua hebraica. O mundo semântico da Bíblia é bem diferente do da grega. E é dentro deste mundo bíblico que devemos entender as tentações de Jesus.
Por muito estranho que pareça, o agente fundamental nas tentações não tem só a ver com Jesus ou com o Diabo, mas também com o Espírito Santo. A narrativa de Lucas 4, 1 começa assim: “Cheio do Espírito Santo, Jesus retirou-se do Jordão e foi levado pelo Espírito ao deserto”.
Depois das tais tentações, quando Jesus decide ir pregar o Reino de Deus na Galileia, Lucas escreve também: “Impelido pelo Espírito, Jesus voltou para a Galileia”.
A vida de Jesus é, pois, inseparável da vida do Espírito Santo. O que distingue o profeta Jesus dos demais profetas é sempre o Espírito Santo. Os tempos do Espírito Santo confundem-se com os tempos messiânicos.
Não é a Lei, a simples Palavra, mas o Espírito que discerne e explica. Razão porque Jesus afirma que todos os pecados são passíveis de perdão menos o pecado contra o Espírito Santo (Mateus 12, 32).
Para o Novo Testamento Jesus é um profeta, um taumaturgo, o filho de David, o Filho de Deus, o Emmanuel de Isaías, isto é, o Deus-Connosco.
Jesus é um judeu e não um político ou mestre de filosofia, moral e ética, como pensaram muitos historiadores e pensadores de velhos tempos racionalistas e românticos. É um judeu que veio para os judeus. Mas veio como Messias e, assim, realizar as velhas esperança messiânicas.
As “tentações” devem entender-se neste carrefour de ideias messiânicas. De facto, entre os séculos segundo a. C. e segundo d. C., os judeus, desanimados de tanto esperar pelo Messias, só esperavam a solução da sua vida numa perspectiva de escatologia apocalíptica.
Viria, em tempos de cronologia iminente, o dia terrível e definitivo do Juízo Final, em que Deus acabaria com os maus e os pagãos e apresentaria um Reino judaico de paz definitiva só para os bons judeus ortodoxos da linha apocalíptica.
João Baptista, em toda a sua grandeza, classificado por Jesus como o “maior nascido de mulher”, navegou por estas águas. E até se escandalizou de Jesus por comer com pecadores e aceitar na sua comitiva gente impreparada para este juízo final.
Diante das suas dúvidas, Jesus responde aos mensageiros de João Baptista, na prisão: “Ide dizer-lhe o que vedes e ouvis: Os cegos vêem, os leprosos ficam limpos, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam, a Boa-Nova é anunciada aos pobres; e feliz de quem não tiver em mim ocasião de escândalo” . Jesus está a citar Isaías 61, 1.
Realmente, a vida de Jesus é salpicada de encontros desencontrados. Muitos o admiravam, aceitavam, acreditavam nele, mas muitos outros – a maioria? – não o aceitava.
Os seus próprios familiares tinham-no por “louco” (Mc 3, 21), Pedro não o compreendeu e Jesus chamou-lhe “Satanás” (Mc 8, 33), e aos fariseus, que lhe exigiam um sinal do Céu para o identificar como taumaturgo de Deus e não do Diabo, respondeu-lhes muito chateado (o texto de Marcos 8, 12, ao pé da letra, diz: “suspirou profundamente”): “sinal algum será concedido a esta geração!” (Mc 8, 12/Mt 16, 1-4/Lc 12, 54-56).
Jesus foi, portanto, muitas vezes posto à prova. O verbo grego é peirazein (Mc 12, 15/Mt 22, 18; Mt 22, 35). No Getsémani, Jesus pede aos apóstolos: “orai para não entrardes em tentação” (Mc 14, 38/Mt 26, 41/Lc 22, 46).
Em Lucas 22, 40, Jesus dirige a palavra aos seus discípulos: “Vós sois os que preservastes comigo nas minhas provas (tentaçõs)”. E ainda segundo Lucas, o Diabo, depois das tentações no deserto, promete regressar mais tarde, o que aconteceu no Getsémani (Lc 22, 3. 31).
Não vamos aqui discutir o problema linguístico sobre a “natureza” do diabo e dos demónios: são pessoas, seres ontológicos, racionais e livres? São entes “divinos” a simbolizar o poder do Mal? A Bíblia é, de facto, uma grande narrativa dramática (diferente de “tragédia”) onde Deus, anjos e demónios, intervêm.
Por mais que a ciência e a filosofia perscrutem a raiz do mal no mundo, continuamos como o Job bíblico a cuspir para o céu, cheios de dúvidas e interrogações.
Jesus foi tentado, no deserto, como Moisés e Elias, porque precisava de separar as águas sobre o modelo de messianismo a pregar na Galileia. Um messianismo apocalíptico? Um messianismo de escatologia de juízo implacável? Um messianismo dirigido apenas aos bons? Um messianismo de escatologia realizada dirigida a bons e a maus?
O Diabo, na narrativa midráchica das tentações, oferece a Jesus todos os reinos do mundo e todo o espectáculo populista de vaidade e vanglória. Jesus não aceita. O Diabo propõe o seu messianismo com textos bíblicos do Deuteronómio e Jesus responde com outros textos bíblicos.
A “bulha” é de personagens – Jesus e o Diabo – e os argumentos provêm do AT, como cânone divino de projecto, caminho e vida. Há dois caminhos e dois projectos. Jesus escolheu o projecto do Espírito porque viva cheio do mesmo Espírito. Jesus consubstancia-se, isto é, recebe a sua identidade, vocação e missão neste Espírito.
O mundo sem Espírito é um mundo vazio de ideias e ideais. Para o preencher vai buscar o “espírito deste mundo” ao espectáculo idolátrico/diabólico do dinheiro, do egoísmo, das aparências do populismo político e do próprio populismo religioso, que distribui milagres “à la carte”, contrário à doutrina de Jesus.
A taumaturgia (os milagres) de Jesus é aceite pelos doutores da Lei, que a interpretam por obra e graça de Belzebú, o príncipe dos demónios. Jesus responde-lhes que não está feito com os demónios mas apenas com o Espírito Santo (Mc 3, 22-30), como responde aos fariseus, que lhe pedem sinais milagrosos, pela ausência de tais sinais (Mc 8, 12-13).
O grande sinal era Ele e só Ele.
O grande “escândalo” termina numa crucificação, “loucura para os que se perdem mas, para os que se salvam, para nós, é força de Deus” (1Cor 1, 18).

Pe. Joaquim Carreira das Neves, OFM.
Labat n.º 102 de Março de 2010

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