26 abril, 2011

E A CARIDADE SE FEZ CARNE


Um dos acontecimentos decisivos na história da salvação é o Mistério da Encarnação (Natal): Deus que se faz homem numa carne semelhante à nossa, em tudo igual a nós menos no pecado na Pessoa de Jesus Cristo. Este acontecimento, fruto da iniciativa gratuita de Deus e totalmente imerecida por parte do homem, nota bem o carácter realista e concreto da relação divina com a obra da criação.
As consequências efectivas da encarnação, e da revelação do homem a si mesmo como criado à imagem e semelhança de Deus, são-nos dadas pelo Apóstolo S. João quando afirma: “quem diz que ama a Deus que não vê e não ama o seu irmão, é mentiroso” (cf. 1 Jo. 4, 20).
O “princípio de realidade” afirmado no Mistério da Encarnação não deixa lugar para um espiritualismo vazio sem consequências concretas e práticas. Assim como a profecia dos antigos dá lugar à realização, a ideia dá lugar à coisa e o espírito dá lugar à carne, a teoria dá lugar à prática: a Palavra da Misericórdia e do Amor de Deus faz-se carne no seio da Virgem Maria: “A verdadeira novidade do Novo Testamento não reside em novas ideias, mas na própria figura de Cristo, que dá carne e sangue aos conceitos – um incrível realismo” (Bento XVI, Deus caritas est, 12).
Por isto, o ser cristão não se pode resumir a bonitas palavras, a arrebatados discursos, a angélicas disposições ou a beatíssimos propósitos. Sem qualquer tipo de menosprezo pelas ideias e teorias, (pois nada mais prático do que ter ideias claras) o realismo prático do agir impõe-se como uma exigência de resposta face ao concreto apelo daqueles que me rodeiam e me apelam ao cuidado no olhar que me dirigem, no rosto com que se me apresentam e me dizem: não me mates, cuida de mim, tenho fome, tenho sede, tenho frio, sou peregrino e estrangeiro, estou doente.
Olhamos para Jesus e vemos claramente a encarnação da caridade. Todo o seu agir, na procura da libertação do homem de todas as escravidões, físicas e espirituais, dão-no o modelo claro da sua acção como cumprimento da Missão com que o Pai o dotou: salvar o mundo pela caridade.
Ele é o bom pastor que vai em busca da ovelha tresmalhada, ele é o pai que acolhe o filho transviado e morto, a mulher que procura a moeda perdida, mas é também o agricultor que se abeira da figueira à procura de frutos, o senhor que retira a vinha aos trabalhadores maus e gananciosos para a dar a outros que lhe entreguem os frutos a seu tempo.
Mas de todas estas imagens que o próprio Jesus dá de si mesmo, sobressai o Cristo crucificado que do alto da cruz, em generosa oferta de si mesmo a todos os homens, implora para cada um de nós a misericórdia: “Pai, perdoa-lhes”. O Mistério da Encarnação (Natal) encontra no Mistério da Redenção (Páscoa) a sua justificação e intenção, Jesus faz-se homem, encarna, para manifestar a imensa caridade com que Deus nos ama, e mostra este amor louco com a entrega da sua própria vida nas mãos do Pai.
A memória desta entrega sacrificial de Jesus na cruz, sinal máximo de caridade, Ele que tinha dito “ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos seus amigos”, faz-se no Santíssimo Sacramento do Altar, onde, de forma incruenta, se actualiza para nós o sacrifício de Cristo, a própria entrega de si mesmo, da sua carne e do seu sangue, como verdadeiro alimento: “Jesus deu a este acto de oferta [a morte de cruz] uma presença duradoura através da instituição da Eucaristia durante a Última Ceia. Antecipa a sua morte e ressurreição entregando-Se já naquela hora aos seus discípulos, no pão e no vinho, a Si Próprio, ao seu corpo e sangue como novo maná” (Bento XVI, Deus caritas est, 13). Assim nos dá o exemplo de serviço Aquele que é o “Mestre e Senhor”, ou como nos relata S. João, o serviço daquele que de joelhos lava os pés aos discípulos, para nos dar o exemplo.
A encarnação da caridade, a exemplo de Jesus, faz-se no fiel cumprimento do Mandamento novo da caridade “Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo”. Amar com um amor afectiva e efectivamente intenso é a consequência lógica e coerente da comunhão com Ele e com a Igreja na Comunhão eucarística: a “fé em Cristo e na sua reactualização no Sacramento: fé, culto e ethos (ética) compenetram-se mutuamente como uma única realidade que se configura no encontro com a ágape (amor de entrega) de Deus. Aqui, a habitual contraposição entre culto e ética simplesmente desaparece. No próprio culto, na comunhão eucarística, está contido o ser amado e o amar, por sua vez os outros.
Uma Eucaristia que não se traduza em amor concretamente vivido, é em si mesma fragmentária” (Bento XVI, Deus caritas est, 15). Ou como afirmou o saudoso Papa João Paulo II: “ao participar no sacrifício da cruz, o cristão comunga do amor de doação de Cristo, ficando habilitado e comprometido a viver esta mesma caridade em todas as suas atitudes e comportamentos da vida” (João Paulo II, Veritatis splendor, 107).
Acreditar em Cristo como Aquele que dá carne à imensa caridade com que o Pai no ama, e comunga-l’O nas espécies eucarísticas, requer o meu empenho prático, aqui e agora, na oferta aos irmão dessa mesma caridade com que Deus nos amou primeiro, não de uma forma genérica e abstracta, em si mesma pouco comprometedora, mas vivencial e encarnada, em que tudo aquilo que sou, coração, alma, forças do corpo e entendimento, se orienta para esse fim.
Este amor ao próximo, que não é um mero sentimento, surge ao mesmo tempo como consequência de amar a Deus, e como o caminho seguro para O amar, amo ao próximo porque Deus me ama, e amo os meus irmãos porque quero amar a Deus.
Quem tiver coração que ame e sirva à maneira daquele que se fez carne não para ser servido mas para servir e dar a vida por muitos.
Frei Gonçalo
Labat n.º 71 de Abril de 2007

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