25 dezembro, 2018

Homilia na Missa do Dia de Natal


Para haver Natal no mundo inteiro

De tudo o que acabamos de escutar – sendo certo que a Palavra de Deus nunca acabará – um trecho em especial ressoa, de Natal para Natal, sucessivamente luminoso, triste e promissor. É este do prólogo do Quarto Evangelho: «O Verbo era a luz verdadeira, que, vindo ao mundo, ilumina todo o homem. Estava no mundo, e o mundo, que foi feito por Ele, não O conheceu. Veio para o que era seu, e os seus não O receberam. Mas àqueles que O receberam e acreditaram no seu nome, deu-lhes o poder de se tornarem filho de Deus».
Encontramos neste trecho tudo o que devíamos ser, da parte de Deus; tudo o que ainda não somos, por resistência nossa; tudo o que poderemos ser, pois não desaparece o desígnio. E tudo concentrado na aceitação ou não do que nos é oferecido em Cristo, cujo Natal celebramos.
«O Verbo era a luz verdadeira que, vindo ao mundo, ilumina todo o homem». O Verbo é Cristo, em quem Deus totalmente se diz e ao seu desígnio sobre nós, esclarecendo o que Lhe pressentimos como criaturas e Lhe poderemos herdar como filhos. Precisamente como “filhos no Filho”, em Cristo, a sua Palavra que nos cumpre.
É impressionante verificar como de há dois mil anos para cá, tantos homens e mulheres, das mais diversas geografias e credos, ficaram e ficam tão deslumbrados com Jesus Cristo, sempre que acedem realmente ao seu Evangelho, sem as contrafações que outros, ou nós mesmos, lhe inflijamos. Concordemos que, sem Cristo, a história e a literatura, a música e as artes, a própria solidariedade humana, não teriam o mesmo brilho e motivação. E muito mais assim seria – e muito mais assim será! – se nos transfigurarmos com tanta luz.

«Mas o mundo, que foi feito por Ele, não O conheceu», continua o trecho. Impressiona também, e agora negativamente, o que lemos em tanta página evangélica. Em Nazaré, onde cresceu e viveu até aos trinta anos; na vida pública, onde tanto o seguiam por momentos como o abandonavam depois; e onde mantinham a cegueira da alma mesmo quando curava a cegueira dos olhos; em Jerusalém, onde passaram tão depressa do alvoroço dos ramos às trevas do Gólgota…
Somemos dois milénios e continua o drama, quando não é tragédia. Mas temos na vida de Jesus Cristo a verdade que nos fez e refaz, num deslumbramento pascal que passa necessariamente pela cruz. Do presépio ao Tabor e do Tabor a Jerusalém, onde a morte se tornou ressurreição.
No seu Evangelho, Lucas narra assim o nascimento de Jesus, como ouvimos na Missa desta noite: «Quando eles ali se encontravam [José e Maria em Belém], completaram-se os dias de ela dar à luz e teve o seu filho primogénito, que envolveu em panos e recostou numa manjedoura, por não haver lugar para eles na hospedaria» (Lc 2, 6-7). Maria “deu à luz” o seu Menino, mas os panos em que o envolveu anunciavam já os da sepultura, como aconteceu trinta e poucos anos depois; e o lugar que não teve na hospedaria continua a não encontrá-lo também hoje, tantas vezes e porventura entre nós, mesmo quando lhe fazemos presépios…
O Natal não é fácil e a transfiguração exige tudo, como foi dito aos três discípulos no Tabor: Ficaram deslumbrados com aquela luz nunca vista, mas ficaram perplexos com o que aconteceria em Jerusalém. É de novo Evangelho de Lucas a precisá-lo: «Enquanto [Jesus] orava, o aspeto do seu rosto modificou-se, e as suas vestes tornaram-se de uma brancura fulgurante. E dois homens conversavam com Ele: Moisés e Elias, os quais aparecendo, rodeados de glória, falavam da sua morte, que ia acontecer em Jerusalém» (Lc 9, 29-31).A luz do Natal quase cega, para nos revermos depois na luz pascal, na verdade inteira de Jesus, se a recebermos inteiramente também. Se assim não for, se a quisermos reduzir a meras iluminações da quadra, ou a distrações que por vezes a contradizem em absoluto, continuarão a ressoar, graves e pesadas, aquelas palavras do prólogo de João, há pouco ouvidas, que devemos reter como séria advertência, para nós agora: «Estava no mundo, e o mundo, que foi feito por Ele, não O conheceu. Veio para o que era seu, e os seus não O receberam».
Há Natal de Cristo a cumprir em muito lado e aqui bem perto. Sabemos bem onde havemos de O receber, acolhendo todos aqueles com quem especialmente se identifica: os mais pobres, os mais sós, os mais frágeis, tenham o nome que tiverem e venham donde vierem, na vasta geografia do mundo.
Mas sejamos felizes hoje, como Cristo nos quer e nos merece. Como continuava o trecho evangélico: «Àqueles que O receberam e acreditaram no seu nome, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus».
Reparemos na sequência, tão promissora como obrigatória, passo a passo. Primeiro receber a Cristo, depois acreditar nele, só assim podendo alcançar a filiação divina.
Receber a Cristo e como Ele se oferece, em continuado Natal. Tão simples e desprovido como na manjedoura que lhe sobrou apenas. Como em cada pessoa que nos cerque ou procuremos, simples naquilo que é – ou ainda não é – e desprovida do que não tem e devia ter, no que respeita à vida, à companhia e ao bem-estar. Como no Evangelho se apresenta, tal e qual, e sem o truncarmos no que propõe e exige.
Acreditar em Cristo, acreditar mesmo quando parece demasiado o que diz e grande demais o que nos pede. Repetir, sobretudo nessas alturas, o que Pedro lhe respondeu em bom momento, por si e pelos outros: «A quem iremos nós, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna! Por isso nós cremos e sabemos que Tu és o Santo de Deus!» (Jo 6, 68-69).          
E assim mesmo, apenas assim, alcançando o que Cristo veio compartilhar connosco, da noite de Natal à alvorada de Páscoa: nada menos do que a filiação divina, cumprindo-se o desígnio de Deus, que para si nos criou e em Cristo nos recupera.  É o que desejamos mais profundamente e é o que Deus totalmente nos oferece no Natal de Cristo – em que podemos descobrir o anúncio da sua e nossa Páscoa. Como diria depois: «Saí do Pai e vim ao mundo, agora deixo o mundo e vou para o Pai» (Jo 16, 28). Vamos então com Ele, único modo de nos realizarmos plenamente em Deus, como seus filhos também (cf. Jo 14, 6).
Do Natal à Páscoa está o caminho aberto. Importa que o percorramos, porque tudo espera que o Evangelho de Cristo finalmente aconteça, convincente e pleno, e já nas nossas vidas. Como São Paulo divisou e escreveu: «A criação encontra-se em expetativa ansiosa, aguardando a revelação dos filhos de Deus» (Rm 8, 19).
Respondamos a tal expetativa. Façamo-lo já hoje, aqui e onde formos, filhos de Deus em Cristo, pela atenção aos outros, pelo cuidado de cada um, pela caridade ativa. É uma altura de muitos “presentes”, no sentido corrente do termo. Seja altura, isso sim, para acolhermos o presente absoluto de Deus, que quer nascer nas nossa vidas, para haver Natal no mundo inteiro!

Sé de Lisboa, 25 de dezembro de 2018
+ Manuel, Cardeal-Patriarca

Patriarcado de Lisboa

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