19 fevereiro, 2018

Terceira meditação: escutar a própria sede é interpretar o desejo que temos em nós

Exercícios Espirituais da Quaresma propostos ao Papa e à Cúria Romana  (Vatican Media)
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Nós batizados formamos uma comunidade de desejosos? Os cristãos têm sonhos? A Igreja é um laboratório do Espírito onde os nossos filhos e filhas profetizam, os nossos anciãos têm sonhos e os nossos jovens constroem novas visões, não somente religiosas? - pergunta o pregador, Pe. José Tolentino.
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Cidade do Vaticano

“Há nas nossas culturas e, ao mesmo tempo, nas nossas Igrejas, um déficit de desejo. Quando se percebe, no momento atual, o emergir, e em escala cada vez maior, de sujeitos sem desejo, isso deve levar-nos a uma autocrítica eclesial.” É uma constatação e uma das afirmações candentes contidas na meditação vespertina do pregador dos Exercícios Espirituais, Pe. José Tolentino de Mendonça, propostos ao Papa e à Cúria Romana em Ariccia, nas proximidades de Roma, cujo Retiro Espiritual de Quaresma prosseguirá até o próximo sábado. Tratou-se da terceira meditação, após a primeira da tarde de domingo e a seguinte da manhã desta segunda-feira (19/02).

O infinito do desejo é desejo de infinito

Intitulada “Dei-me conta de ser sedento”, a meditação da tarde desta segunda-feira articulou-se em quatro pontos, concluindo-se com a "oração da sede".

Perder o medo de reconhecer a nossa sede

O pregador partiu de quatro verbos – irrigar, fecundar, germinar – para falar inicialmente de um processo de revitalização do terreno qual metáfora da nossa vida. Tendo advertido que a transformação não se dá se impermeabilizamos a vida na sua crosta, afirmou que devemos perder o medo de reconhecer a nossa sede e o nosso ser sedento.

Na meteorologia usa-se uma tabela, o Índice de Palmer, para medir a intensidade da seca nos seus vários estágios, afirmou. E a intensidade da seca espiritual, como se mede? – perguntou o pregador dos Exercícios.

“Intelectualizamos demasiadamente a fé. Construímos um fenomenal castelo de abstrações”, observou. “Preocupamo-nos mais com a credibilidade racional da experiência de fé do que com a sua credibilidade existencial, antropológica e afetiva”, constatou.
“ Ocupamo-nos mais da razão do que do sentimento. Deixamos para trás a riqueza do nosso mundo emocional. ”
Feitas tais constatações, citou o teólogo canadense Bernard Lonergan, que evocava a necessidade de olhar mais, na construção doutrinal, para o significado das nossas emoções. Nas suas considerações sobre o estado da nossa sede recorreu à literatura, que nos é de auxílio, ressaltou.

Escritores e poetas são importantes mestres espirituais

Nos nossos dias assistimos cada vez mais à utilização da literatura ao fazer teologia, afirmou, acrescentando que hoje estamos a compreender melhor que os escritores e os poetas são mestres espirituais importantes. Após destacar que as obras literárias podem ser de grande utilidade no nosso caminho de maturação interior, frisou que uma das razões fundamentais é que “a vida espiritual progride somente quando é uma revisitação da existência na sua totalidade, na sua diversidade.

Para tal citou, entre outros, a escritora brasileira Clarice Lispector, a qual, com a força de uma declaração autobiográfica, narra a tomada de consciência da intensidade da sua sede.
Falar de sede é falar da existência real e não da ficção de nós mesmos à qual muitas vezes nos adequamos. É iluminar uma experiência, mais que um conceito, acrescentou Pe. José Tolentino, advertindo em seguida para a dificuldade que podemos ter até mesmo de reconhecer o nosso ser sedento.

Desejo da verdade, beleza e bondade

Escutar a própria sede é interpretar o desejo existente em nós. Desejo incessante da verdade, da beleza e da bondade que faltam. O pregador dos Exercícios Espirituais propostos ao Papa e à Cúria Romana advertiu ainda que devemos distinguir o desejo de uma mera necessidade, que se aplaca e se satisfaz com a posse de um objeto. Não confundamos desejo com as necessidades. A necessidade é uma carência contingente do sujeito. O infinito do desejo é desejo de infinito.

Citou a revisitação ao “discurso platónico do desejo em chave mística” feita por Simone Weil, para quem, não é o nosso desejo que alcança Deus: “se permanecemos sedentos e desejosos, é Deus mesmo que desce na nossa humanidade para preencher o nosso desejo de plenitude”.

Enquanto desejamos objetos, quaisquer que sejam; enquanto deixamos que a nos mover seja a busca das coisas, carreiras, títulos, honorificências, nosso desejar não é ainda um verdadeiro desejar.
“ O desejo genuíno tem início quando ele se formula, nem mais nem menos, como pura abertura ao outro. ”
Hoje torna-se cada vez mais claro que as sociedades capitalistas, organizadas em torno do consumo, que exploram avidamente as compulsões de satisfação de necessidades induzidas pela publicidade, estão na prática removendo a sede e o desejo tipicamente humanos, fazendo com que a vida perca o seu horizonte, afirmou taxativamente Pe. José Tolentino.

Voltando o eu olhar para a vida da Igreja, tais constatações serviram para o pregador dos Exercícios Espirituais propor as seguintes interpelações:

“Nós batizados formamos uma comunidade de desejosos? Os cristãos têm sonhos? A Igreja é um laboratório do Espírito onde, como no oráculo de Joel (3,1), nossos filhos e filhas profetizam, os nossos anciãos têm sonhos e os nossos jovens constroem novas visões, não somente religiosas, mas também novas compreensões culturais, económicas, científicas e sociais?”

Questões mais contundentes

Tais interrogações foram propedêuticas a algumas questões mais contundentes: A Igreja tem fome e sede de justiça (Mt 5,6)? Os cristãos esperam realmente, segundo a promessa, “novos céus e uma nova terra, nos quais habita a justiça” (2Pd 3,13)?

Sede de Deus

No último ponto da meditação vespertina desta segunda-feira, no qual tratou da sede de Deus, o sacerdote português frisou que “talvez nós cristãos, e em particular nós pastores, devemos valorizar mais a espiritualidade da sede, mais que as estruturas”. “Nós cristãos e em particular nós pastores”, prosseguiu, “devemos  reconciliar-nos melhor com nossa vulnerabilidade”.

Por fim, destacou que o “Papa Francisco recorda-nos que uma das piores tentações é a autossuficiência e a autorreferência”. Abraçar a própria vulnerabilidade é aceder ao desejo de ser reconhecidos e tocados por Jesus.

Oração da sede

“Ensina-me, Senhor, a beber da mesma sede de Ti,
como quem se alimenta mesmo na penumbra
do frescor da fonte”...
“Que esta sede se faça mapa e viagem
palavra acesa e gesto que prepara
a mesa sobre a qual se partilha o dom.”
“E quando darei de beber aos Teus filhos seja
não porque possuo a água
mas porque como eles sei o que é a sede”.

VATICAN NEWS

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