19 outubro, 2017

Conferência: Viver integralmente o presente para garantir globalmente o futuro - 50 anos da UCP

Viver integralmente o presente para garantir globalmente o futuro (relendo a encíclica Laudato si’)

1) Felicito a Universidade Católica pela ideia destes encontros sobre “futuros globais”. Porque disso mesmo obrigatoriamente se tratará, numa instituição assim. Local de convívio intergeracional por excelência, neste ensinar e aprender conjunto e quase recíproco que a carateriza, a Universidade é lugar de futuro pela intensidade do presente, na quantidade dos que a compõem e na qualidade com que o façam. Na verdade, nenhum futuro nos espera, senão o que criarmos agora.
Por isso, dizer Universidade – e por demais “Católica” – é prometer globalidade e criar um futuro realmente global. Em que nada falte do que somos, nem do mundo que integramos e pensamos.
Do mundo que integramos, repito. Retomo um texto fundamental do Papa Francisco, que requer receção efetiva. A encíclica Laudato Si’, sobre o cuidado da casa comum [LS], de 24 de maio de 2015.
Requer receção efetiva, convém explicar. Os pronunciamentos magisteriais da Igreja aparecem geralmente numa tradição viva de aprofundamento evangélico das coisas. Das coisas da fé e das coisas do mundo, em interação, como deve ser. Nasceu daqui, de há século e meio para cá, na respetiva sistematização, a assim chamada “doutrina social da Igreja”. Retira coisas “novas e velhas” do acervo de pensamento e ação que transporta, para interpretar o que acontece e atuar no presente em chave evangélica. Daqui a sua qualidade e oportunidade.
No caso desta encíclica, digamos que é o primeiro documento pontifício inteiramente dedicado ao tema ecológico. Ecologia que o Papa apresenta de modo alargado no âmbito e inclusivo na perspetiva: «… proponho que nos detenhamos agora a refletir sobre os diferentes elementos duma ecologia integral, que inclua claramente as dimensões humanas e sociais» (LS, 137). E ainda, numa definição seguida de advertência: «A ecologia estuda as relações entre os organismos vivos e o meio ambiente onde se desenvolvem. E isto exige sentar-se a pensar e discernir acerca das condições de vida e de sobrevivência duma sociedade, com a honestidade de pôr em questão modelos de desenvolvimento, produção e consumo. Nunca é demais insistir em que tudo está interligado» (LS, 138).

2) Assim prosseguiremos agora, glosando o percurso reflexivo e propositivo do Papa Francisco. Insistindo sempre, do princípio ao fim, na perspetiva alargada e inclusiva que é a sua. É a sua, mas está muito longe de ser comum, na nossa civilização pouco culta. Ou seja, na maneira de fazemos coisas sem suficientemente as pensarmos e nos pensarmos nelas. Ainda no princípio da encíclica podemos ler: «Esquecemo-nos de que nós mesmo somos terra (cf. Gn 2, 7). O nosso corpo é constituído pelos elementos do Planeta; o seu ar permite-nos respirar e a sua água vivifica-nos e restaura-nos» (LS, 2).
Significativamente, o Papa escolheu para título da encíclica as palavras iniciais do Cântico das criaturas de S. Francisco de Assis. E é interessante notar que o santo o entoou naquela pré-modernidade em que o renascimento urbano e a ativação comercial e monetária começavam a distanciar a cidade do campo e o ser humano do conjunto dos outros seres. É neste ambiente que crescem as Universidades, se organizam os saberes e se desenvolvem a observação e o estudo científico da natureza – ou seja, do que nasce e aí está patente e disponível. Mas sabemos como o distanciamento crítico dos restantes seres diluiu o sentimento de conjunto, sem o retomar mais à frente, discernido e respeitado, como importa ser. Sem rarefações pós-modernas nem derivas tecnocráticas.
Esta consideração é tão bíblica como factual, mas demora muito a cumprir-se. Daqui que Francisco retome um conceito do Papa Wojtyla, que é também palavra de ordem: «[João Paulo II] convidou [na catequese de 7 de janeiro de 2001] a uma conversão ecológica global» (LS, 5).
Do fundador do franciscanismo retira ainda o Papa Francisco uma dupla consequência. Teórica a primeira, podemos dizer: «O seu testemunho [de Francisco de Assis] mostra-nos também que uma ecologia integral requer abertura para categorias que transcendem a linguagem das ciências exatas ou da biologia e nos põem em contacto com a essência do ser humano» (LS, 11). Prática a segunda, como decorre e há de ser: «Se nos sentirmos intimamente unidos a tudo o que existe, então brotarão de modo espontâneo a sobriedade e a solicitude» (ibidem).
Percebemos assim que a “ecologia integral” nos é proposta a partir, tanto da evidência factual, como da coerência existencial. Em relação à realidade, a análise necessária só pode redobrar-nos a exigência ética. A ciência aprofunda a consciência e esta mesma nos impele à convivência. Por isso Francisco de Assis tratava as criaturas como “irmãs” e assim mesmo havemos de ser educados e motivados.
Só a ecologia integral nos garante um futuro verdadeiramente global. Exatamente porque o saberemos criar, conclamou ainda o Papa, também para reforçar a Cimeira de Paris sobre o clima: «Lanço um convite urgente a renovar o diálogo sobre a maneira como estamos a construir o futuro do Planeta. Precisamos de um debate que nos una a todos, porque o desafio ambiental, que vivemos, e as suas raízes humanas dizem respeito e têm impacto sobre todos nós» (LS, 14).Um futuro global, portanto, mas a partir da responsabilidade inalienável do ser humano em relação ao conjunto. A tradição bíblica foi reforçando esta consciência, lançando em Cristo a coincidência perfeita da liberdade com a responsabilidade. Coincidência que alimentou nestes dois milénios, mesmo para além do espaço confessional, a reflexão sobre o que somos enquanto pessoas, isto é, seres em relação e polos recíprocos de comunhão solidária. Daqui também o apelo papal à coerência: «As atitudes que dificultam os caminhos de solução [ecológica], mesmo entre os crentes, vão da negação do problema à indiferença, à resignação acomodada ou à confiança cega nas soluções técnicas» (ibidem).  

3) Uma questão propriamente cultural, adiantemos. Com Cícero e outros depois, a palavra “cultura” ganhou interioridade. Deixou de ser apenas o cultivo do campo, do agro (agricultura), para passar a cultura da alma, do espírito. Prosseguindo por aqui, conseguimos muito como humanidade, desenvolvendo artes liberais e destacando-nos do mundo para o percebermos melhor e aproveitarmos mais. Cumpre agora que o mundo aproveite realmente com isso, devolvendo-lhe nós, em respeito e cuidado, o que ele tão prodigamente nos oferece. A isto se refere a “conversão ecológica” a fazer.  O destaque interior em relação ao mundo físico em geral permitiu o desenvolvimento civilizacional que atingimos. Mas esse mesmo destaque esqueceu frequentemente a base de que partimos, como mundo que também somos e que afinal nos permite existir. O nosso tempo acelerou-se e a duração natural das coisas é contrariada pela precipitação dos horários. Passámos das antigas calendas, que marcavam o início de cada mês, para as horas, os minutos e os segundos como ritmo cronológico e mental da vida.
Passámos nós, não a natureza em geral. E, mesmo nós, passamos só em parte, precisamente aquela que contraria o todo. E acaba por nos contrariar também a nós, pois não estamos excluídos da velha sentença: “A natureza não dá saltos”.
O Papa Francisco di-lo assim: «Embora a mudança faça parte da dinâmica dos sistemas complexos, a velocidade [rapidación] que hoje lhe impõem as ações humanas contrasta com a lentidão natural da evolução biológica. A isto vem juntar-se o problema de que os objetivos desta mudança rápida e constante não estão necessariamente orientados para o bem comum e para um desenvolvimento humano sustentável e integral» (LS, 18).
Tocamos aqui num ponto particularmente álgico da atualidade em geral. Na verdade, quando falamos e ouvimos falar de “desenvolvimento”, nem sempre ressalta a sua dimensão humana. «Todos os homens e o homem todo», como lembrou Paulo VI na encíclica Populorum Progressio.
O facto desta grande encíclica do Papa Montini, de 26 de março de 1967, ser coeva da fundação da Universidade Católica Portuguesa torna-a programática para o nosso modo de encarar, estudar e promover tudo quanto ao desenvolvimento diz respeito. Convém citar por inteiro o seu número 14, onde já aparece o conceito de integralidade, basicamente humana: «O desenvolvimento não se reduz a um simples crescimento económico. Para ser autêntico, deve ser integral, quer dizer promover todos os homens e o homem todo, como justamente sublinhou um eminente especialista [L.-J. Lebret]: “não aceitamos que o económico se separe do humano; nem o desenvolvimento, das civilizações em que ele se inclui. O que conta para nós é o homem, cada homem, grupo de homens até se chegar à humanidade inteira”».    
Apenas a prioridade humana de qualquer empreendimento ou empresa lhe pode dar finalidade integral e capaz. O crescimento ganha qualidade e torna-se desenvolvimento, tal como o trabalho, próprio e alheio; não se aliena da pessoa, antes a realiza no mundo e para o mundo, que assim mesmo melhora e nos melhora também. Concomitantemente, sendo na verdade humano, o desenvolvimento tem como sujeito o ser racional e relacional que somos, repercutindo-se positivamente na criação inteira, em reciprocidade sustentada.
Quando não se alcança esta visão das coisas, o desequilíbrio não tarda, como o verificamos agora. Como o verifica o Papa Francisco: «Ainda não se conseguiu adotar um modelo circular de produção que assegure recursos para todos e para as gerações futuras, e que exige limitar, o mais possível, o uso dos recursos não renováveis, moderando o seu consumo, maximizando a eficiência no seu aproveitamento, reutilizando e reciclando-os. A resolução desta questão seria uma maneira de contrastar a cultura do descarte que acaba por danificar todo o Planeta, mas nota-se que os progressos neste sentido são ainda muito escassos» (LS, 22).
No dizer do Papa, o descarte tornou-se “cultura”. Ou contracultura, podemos adiantar, na medida em que é a sua contrafação. Cultivar exige pensamento e ação, produtivos e com futuro. Descarte é “pegar e largar”, não saindo do que imediatamente apetece e rarefazendo-lhe a qualidade. E, porque não respeitamos a demora do ser, precipitamos o acontecer, pondo em causa o futuro.

4) Daqui a evidência – que o devia ser, de facto – da integralidade ambiental, quase retomando o sentido tão natural como humano que a palavra cultura foi ganhando e seria trágico perder. O Papa insiste na conjugação dos aspetos, para ultrapassar de vez o contraste. Tanto mais quanto o tempo é pouco: «O ambiente humano e o ambiente natural degradam-se em conjunto; e não podemos enfrentar adequadamente a degradação ambiental se não prestarmos atenção às causas que têm a ver com a degradação humana e social» (LS, 48).
Na tragédia atual dos incêndios, que têm destruído grandes áreas e tantas vidas, podemos verificar tristemente a veracidade deste trecho da encíclica: terras abandonadas, florestas descuidadas, vidas atingidas – tudo definha e sofre na natureza, nas pessoas e na sociedade em geral. E tudo deverá prevenir-se com outra atenção global, às pessoas e às coisas.
Assim sendo à nossa escala, mais se alarga na consideração mundial, quando grandes áreas e populações inteiras são excluídas da verdadeira atenção de quem planeia e decide: «[Os excluídos] são mencionados nos debates políticos e económicos internacionais, mas com frequência parece que os seus problemas se coloquem como um apêndice […]. Isto deve-se, em parte, ao facto de que muitos profissionais, formadores de opinião, meios de comunicação e centros de poder estão localizados longe deles, em áreas urbanas isoladas, sem ter contacto direto com os seus problemas» (LS, 49).
Respeitar os tempos e aproximar os espaços são condições imprescindíveis duma ecologia integral. O Papa não ilude a complexidade da “crise ecológica”, com as suas múltiplas causas; e requer, isso sim, o concurso geral das respostas. A densidade humana do problema não dispensa nada do que a humanidade conserva para lhe responder positivamente, tanto quantitativa como qualitativamente, com os vários recursos da ciência e da técnica e não menos com quanto respeita às motivações mais profundas. Precisamente aquelas que nos fazem sobreviver, também “sobre” o que a vida traz de imediato, ou deixa de trazer... Elencando: «É necessário recorrer também às diversas riquezas culturais dos povos, à arte e à poesia, à vida interior e à espiritualidade. Se quisermos, de verdade, construir uma estratégia que nos permita reparar tudo o que temos destruído, então nenhum ramo das ciências e nenhuma forma de sabedoria pode ser transcurada, nem sequer a sabedoria religiosa com a sua linguagem específica» (LS, 63).
Nada há de transcurar-se, do que humanamente acumulámos. Entramos de novo no âmbito da transmissão cultural, no seu sentido mais denso e global. Precisamente aquele que tem na Universidade o seu meio de excelência.
No que à Europa respeita, bem como às suas projeções geográficas modernas, transitamos de sociedades empíricas no fazer e mágicas no sentir para racionalidades aplicadas e aproveitamentos técnicos cada vez mais especializados. Pelo meio, distanciamo-nos muito uns dos outros – escolarizados e não escolarizados, camponeses, comerciantes e industriais, rurais e citadinos, info-incluídos e info-excluídos – e alargámos distâncias interiores a cada um, entre o que cremos e o que fazemos, entre o que sentimos e parecemos.    
A aceleração atrás mencionada em busca de resultados práticos infletiu as ciências puras para resultados rentáveis e postergou as humanidades e as artes para espaços residuais, quando não comercializáveis. Genericamente, ganhamos demasiado poder para o que sabemos fazer com ele. A este respeito, o Papa Francisco cita Romano Guardini: «O homem moderno não foi educado para o reto uso do poder». E acrescenta: «porque o imenso crescimento tecnológico não foi acompanhado por um desenvolvimento do ser humano, quanto à responsabilidade, aos valores, à consciência. […] Talvez disponha de mecanismos superficiais, mas podemos afirmar que carece de uma ética sólida, uma cultura e uma espiritualidade que lhe ponham realmente um limite e o contenham dentro dum lúcido domínio de si» (LS, 74).Dentro dum lúcido domínio de si… Esta injunção do Papa Francisco parece-me especialmente aceitável, no ponto a que chegámos. As liberdades públicas, enquanto expressão e espaço das convicções pessoais, no quadro da corresponsabilidade e das liberdades de todos, são e devem ser inquestionáveis. Mas, tanto ou mais do que custaram a instaurar, deverão ser hoje conjugadas com outra mais difícil de conseguir, ou seja, com a liberdade de cada um em relação a si mesmo, no que mantemos de arcaico dentro de nós próprios, de egocêntrico em relação aos outros e de imediatista em relação a tudo.
Os reflexos negativos deste imediatismo egocêntrico, esquecido de aprofundar o sentido social, humano e relacional das coisas, são vários e o Papa interliga-os sempre. Como neste passo: «Quando, na própria realidade, não se reconhece a importância de um pobre, de um embrião humano, de uma pessoa com deficiência – só para dar alguns exemplos -, dificilmente se saberá escutar os gritos da própria natureza. Tudo está interligado. Se o ser humano se declara autónomo da realidade e se constitui dominador absoluto, desmorona-se a própria base da sua existência…» (LS, 117).
Avançando no texto, a encíclica alcança esta síntese, marcadamente bergogliana: «Hoje, a análise dos problemas ambientais é inseparável da análise dos contextos humanos, familiares, laborais, urbanos, e da relação de cada pessoa consigo mesma, que gera um modo específico de se relacionar com os outros e com o meio ambiente. Há uma interação entre os ecossistemas e entre os diferentes mundos de referência social, e assim se demonstra mais uma vez que “o todo é superior à parte”» (LS, 141).

5) Mais para o fim da encíclica o Papa Francisco propõe-nos vias de superação da atual crise ecológica, quer sobre a quantidade da resposta quer sobre a qualidade do espírito. A quantidade da resposta que há de ser global para problemas globais, como o sobreaquecimento que agora nos afeta. Não podemos depender como humanidade de todos daquilo que cada um queira ou não queira, faça ou deixe de fazer. O clima não tem fronteiras políticas e a resposta só pode ser universal. Assim como a pobreza que afeta populações inteiras e que só pode ser combatida num quadro de verdadeira e justa solidariedade internacional: «A lógica que dificulta a tomada de decisões drásticas para inverter a tendência ao aquecimento global é a mesma que não permite cumprir o objetivo de erradicar a pobreza. Precisamos duma reação global mais responsável, que implique enfrentar, contemporaneamente, a redução da poluição e o desenvolvimento dos países e regiões pobres» (LS, 175).
Nesse sentido, o Papa considera indispensável «a maturação de instituições internacionais mais fortes e eficazmente organizadas, com autoridades designadas de maneira imparcial por meio de acordos entre os governos nacionais e dotadas de poder de sancionar» (ibidem). Mas não tem dúvidas de que tal só acontecerá se for movido por um novo espírito, que anime um outro tipo de progresso, mais qualitativo e solidário do que quantitativo e tecnocrático: «Trata-se simplesmente de redefinir o progresso. Um desenvolvimento tecnológico que não deixa um mundo melhor e uma qualidade de vida integralmente superior, não se pode considerar progresso» (LS, 194).
Temos, como nunca, a possibilidade de ser globais, tratando o mundo como um todo e cuidando da humanidade como realmente nossa. A ecologia também assim se deve entender, tão global no âmbito como integral no tratamento. Contudo, nada se fará sem o princípio consciente e ativo da transformação a fazer, ou seja, nós próprios, cada ser humano, desde que ultrapassemos a atávica resistência do nosso eu ensimesmado. É como que o último brado da encíclica ecológica do Papa Francisco: «A atitude de se autotranscender, rompendo com a consciência isolada e a autorreferencialidade, é a raiz que possibilita todo o cuidado dos outros e do meio ambiente; e faz brotar a reação moral de ter em conta o impacto que possa provocar cada ação e decisão pessoal fora de si mesmo. Quando somos capazes de superar o individualismo, pode-se realmente desenvolver um estilo de vida alternativo e torna-se possível uma mudança relevante na sociedade» (LS, 208).
Quase assim conclui o Papa a sua encíclica. Assim a tomaremos nós, como inspiração. Vivendo mais integralmente o presente para garantirmos globalmente o futuro.

Manuel Clemente
Lisboa, Universidade Católica Portuguesa, “Palestras sobre Futuros Globais”, 16 de outubro de 2017


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