04 dezembro, 2016

Homilia no encerramento da Assembleia Sinodal



Homilia na Missa do 2º Domingo do Advento, em Sínodo Diocesano

Ouvir, sonhar, acolher, preparar…

Caríssimos irmãos e irmãs, nesta Missa conclusiva da assembleia sinodal:
Acabámos de ouvir a Palavra de Deus, como ressoa hoje nas nossas comunidades em geral, no segundo Domingo do Advento. À sua luz veremos luminosamente tudo, porque nos abre e aprofunda a perspetiva segundo a própria visão divina, como foi captada e reconhecida pelos nossos antepassados na fé, bíblica e cristã.
Não faltaram nestes dias apelos à centralidade da Palavra de Deus nas nossas comunidades, catequeses e análises das coisas. Muito coincidentes, também nesse ponto, com o que o Papa Francisco nos propõe na recente Carta Apostólica Misericordia et misera, para a celebração anual de «um Domingo inteiramente dedicado à Palavra de Deus, para compreender a riqueza inesgotável que provém daquele diálogo constante de Deus com o seu povo» (MM, 7).
Escutámos primeiro o profeta Isaías e o seu sonho largo de reconciliação universal, quando não se praticar mal nem destruição em Jerusalém ou em qualquer outra parte, quando o conhecimento dum único Senhor preencher o país como as águas ao leito do mar… Não devemos deixar de “sonhar” os sonhos de Deus, nem de rumar à sua realização. Os cristãos que neste mesmo momento vivem em países destroçados pela guerra, ou ameaçados da sua própria eliminação, enviam-nos mensagens assim, plenas duma esperança que só Deus garante. Entre nós, comunidades cristãs e sociedade que integramos, é no mesmo sonho que criamos futuro: um futuro para todos, corolário do Deus de todos.
Seguiu-se São Paulo, escrevendo aos primeiros cristãos de Roma. Usa um verbo que o nosso Sínodo toma para a diocese com insistência pastoral, o verbo “acolher”: «Acolhei-vos uns aos outros, como Cristo vos acolheu, para glória de Deus». Especifica depois o modo como Cristo acolheu, servindo os judeus sem esquecer os gentios. Provindo inteiramente de Deus, foi inteiramente para os outros, todos os outros.
Quem quer que se abeirasse de Cristo era acolhido de coração inteiro. Mesmo quando tinha tanto que fazer, detinha-se e escutava, pois cada pessoa lhe trazia, a seu modo, um vasto mundo. Quando certo tipo de “comunicação”, mesmo tecnicamente sofisticada, nos alheia dos outros, como realmente são, nem há Evangelho nem temos Igreja. Da nossa parte e das nossas comunidades, assumimos o apelo do Papa Francisco para «fazer crescer uma cultura de misericórdia, com base na redescoberta do encontro com os outros: uma cultura na qual ninguém olhe para o outro com indiferença, nem vire a cara quando vê o sofrimento dos irmãos» (MM, 20).
No Evangelho, foi a vez de João Batista concretizar a antiga profecia e “preparar” o caminho do Senhor, endireitar as suas veredas. Nada tinha em si que não fosse expectativa e disponibilidade para que a profecia finalmente acontecesse. Por isso foi ele o Precursor.

Estamos nós, estão os nossos contemporâneos, num hoje comum que em geral não basta e a muitos nem chega... Neste mesmo Sínodo foram detalhadas várias situações sociais incompatíveis com a dignidade e a justiça que a todos são devidas. Pois bem, irmãos e irmãs, o Advento que esperamos terá de encontrar em cada uma das nossas comunidades o verdadeiro corpo eclesial d’Aquele que quer vir e responder a tantas necessidades, de corpo e de espírito, pelo caminho aberto da nossa conversão evangélica.
É esta propriamente a missão, propósito da nossa assembleia. E que não diverge do acolhimento, pois só missiona quem acolhe. Assim em Deus, cuja primeira Pessoa é “Pai” em relação ao Filho; a segunda é “Filho” em relação ao Pai; e a terceira é o Espírito do mútuo acolhimento de ambos. Entre nós, nisto e principalmente à imagem e semelhança de Deus, dirigimo-nos aos outros porque, antes de mais, os acolhemos no coração e os procuramos na vida. Viver é, na verdade, conviver, objetivo duma missão premente e sempre alargada.

Comemorámos nestes dias a Beata Maria Clara do Menino Jesus, e São Francisco Xavier, a primeira natural da nossa diocese (século XIX) e o segundo que daqui partiu para a Índia (século XVI). Juntamos-lhes hoje São João Damasceno, que viveu no século VII-VIII no Próximo Oriente. Três diversas situações, todas missionariamente entendidas. Maria Clara, porque era preciso cuidar dos pobres e fazê-lo no espírito franciscano, mesmo quando não eram permitidas fundações religiosas entre nós. Francisco Xavier, porque os novos caminhos marítimos não haviam de servir apenas para comerciar coisas, mas sobretudo para comunicar vida, a vida de Cristo. João Damasceno, que foi sacerdote e monge já sob o domínio dum povo doutra crença, mas sem perder a sua e reforçando os cristãos entre Damasco e o deserto de Judá, ou seja, em pequena geografia. Uma foi além do risco, outro foi além do mar, o último além das circunstâncias que lhe poderiam enfraquecer o ânimo.  É o que cantamos e continuamos a cantar no nosso hino sinodal: «Longe ou perto o necessário / É mostrar Cristo presente!»
Aliás, mais um vez verificámos que é precisamente esta atitude de acolher os outros no coração e de os procurar em missão que tanto resume como garante a Igreja e lhe abre o futuro. O que a Igreja de Lisboa tem de mais convincente e promissor reside precisamente nas comunidades, paroquiais ou outras, em que se têm sempre presentes os horizontes largos ou próximos da missão e se fazem permutas de experiências missionárias de além e aquém mar; donde partem cristãos, clérigos ou leigos, e também famílias para períodos mais ou menos dilatados de evangelização, que tanto acrescem com o mesmo espírito as comunidades de origem. Ou onde a avaliação pastoral se faz e refaz com o mesmo critério, das pessoas que se procuraram, dos sós que se passou a acompanhar, dos mais que se integraram, dos ambientes que se conseguiram evangelizar. Como acontece, por exemplo, com as atuais “Missões País”, levando milhares de jovens estudantes a partilharem por algum tempo a vida de muitas paróquias e descobrindo aí mesmo o Cristo que sempre os espera naqueles que lá encontram. E como voltam depois, para evangelizar os seus próprios colegas, nas suas mesmas escolas… Ou com os “campos de férias” e outras iniciativas de voluntariado e serviço.
Esta realidade sempre reencontrada está no âmago do nosso Sínodo. Assim correspondemos ao apelo que o Papa Francisco nos fez na Evangelii Gaudium e convém lembrar: «Sonho com uma Igreja missionária […]. A reforma das estruturas, que a conversão pastoral exige, só se pode entender nesse sentido: fazer com que todas elas se tornem mais missionárias, que a pastoral ordinária em todas as suas instâncias seja mais comunicativa e aberta, que coloque os agentes pastorais em atitude constante de “saída” e, assim, favoreça a resposta positiva de todos aqueles a quem Jesus oferece a sua amizade. Como dizia João Paulo II aos bispos da Oceânia, “toda a renovação da Igreja há de ter como alvo a missão, para não cair vítima duma espécie de introversão eclesial”» (EG, 27).     

Concluindo esta assembleia, o Sínodo Diocesano de Lisboa dá graças a Deus por tudo quanto foi fazendo connosco, no sentido duma maior comunhão com Ele e com todos; e também duma mais nítida e convicta radicação evangélica de quanto somos e fazemos como Igreja de Cristo no mundo. Concretamente neste nosso mundo mais próximo, em que nos situamos: o Patriarcado de Lisboa, da capital a Alcobaça, de Azambuja ao mar.
Mundo quantitativa e qualitativamente complexo, desigual e desencontrado, entre um passado que já foi e um futuro que ainda não divisamos bem. Complexo, porque habitado por uma centena de povos de vários continentes, com diversos níveis de instalação e convivência sociocultural – os que vão além da mera sobrevivência… Desigual, e parecendo até conformado com desigualdades gritantes, antigas e recentes. Desencontrado, pois ainda estamos para nos retomar mais à frente, quando incluirmos, em pluralidade legítima e criativa, todos quantos chegaram entretanto. Talvez só nalguma zona ainda rural da diocese se mantenha a sociabilidade habitual e simples de outros tempos. Tudo o mais se tornou menos estável e previsível, enfraquecidas as solidariedades tradicionais e mal definidas as futuras.
Com o Papa Francisco, queremos reforçar o olhar evangélico sobre a cidade, que se traduz por palavras como “compaixão “ ou “misericórdia”, recuperando o seu significado autêntico. Por “compaixão” queremos dizer solidariedade e compromisso com todos os que sofrem, pelo que sofrem por si ou pelo que outros os fazem sofrer. Como há meio século escreveu o Concílio Vaticano II, as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos nossos contemporâneos são as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo (cf. Gaudium et Spes, nº 1). Por “misericórdia” indicamos um modo de olhar a realidade a partir do que é mais frágil e pobre, esquecido e periférico. Foi assim que Deus nos olhou e procurou, como acreditamos que aconteceu em Jesus Cristo. E também cremos que, se assim olharmos a realidade, começaremos por onde mais urge começar, para podermos construir finalmente a cidade de todos.
Na nossa assembleia sinodal experimentámos a força e a beleza da refletir e rezar em comum, dando espaço a Deus para nos conduzir aonde e como queira. “Sínodo” significa caminho conjunto; e sinodalmente queremos prosseguir, pois só assim seremos fermento duma sociedade que se reencontre e prossiga na senda da justiça e da paz.
A todos manifestamos a nossa disponibilidade para a concretização duma sociedade de todos para todos. Assim mesmo nos reforçámos em Sínodo, para dar glória a Deus no serviço do próximo. Com Cristo e Maria – permanente Senhora do seu Advento.

Sínodo Diocesano, 4 de dezembro de 2016

+ Manuel, Cardeal-Patriarca 

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