20 março, 2016

Homilia no Domingo de Ramos na Paixão do Senhor

Sob o olhar de Cristo

O Senhor voltou-Se e fitou os olhos em Pedro… Amados irmãos, ao iniciarmos esta Semana Maior, peçamos a Deus que ela seja verdadeiramente “santa”, para todos e cada um de nós, que a queremos observar e cumprir.
Não é pedir pouco, como quem folheasse um calendário, mesmo litúrgico e só por folhear. Nem aludindo a coisas acessórias, como tantas vezes acontece.
Sim, voltaremos a ouvir falar de coisas acessórias e até dispensáveis, como amêndoas, folares e culinária da época. Voltaremos às idas à terra, aos usos e costumes, mais ou menos pascais, mais ou menos convertidos. Voltaremos até a ouvir falar de ritos pagãos e primaveris, passados ou supostos. Com tudo isto se encherão páginas e notícias, como se por si bastassem, ou justificassem os próximos dias… Podemos contar com isso.
Mas realmente não bastam, nem se justificariam. Por antiqualhas que fossem, não chegariam até nós com a frescura original que esta semana contém e oferece, assim a aceitemos de verdade. A novidade desta semana, sempre reencontrada, está em superar todo o tempo, mesmo que marcado pelo primeiro plenilúnio de cada Primavera. A novidade que experimentaremos é ser definitiva há dois milénios, incluindo-nos já naquele dia sem ocaso da Páscoa do Senhor Jesus. Só por isso a semana é “santa”. Só por isso a acolhemos inteira e autêntica - estando nós contritos.

Ouvíamos há pouco, na Paixão segundo São Lucas, como Jesus aprisionado e em casa do sumo-sacerdote se voltou para trás e fitou os olhos em Pedro. Reparámos também como aquele olhar do Mestre penetrou profundamente na alma do discípulo, que entretanto O negara por três vezes.
Lembramos como fora pouco antes, com Pedro a prometer-lhe fidelidade, viesse o que viesse. E como Jesus o desenganara de presunções indevidas. Seguira-se a sua prisão e a tibieza dos discípulos. Seguiu-se o olhar de Jesus e tudo o mais que nos deixou a pensar.
– Problema de Pedro, por presumir demais? Problema de Pedro e problema dos outros, porventura, porque afinal Jesus não arrasara os inimigos nem mostrara o seu poder, como julgavam que seria… De tudo um pouco, ou demasiado, num misto de desilusão e cobardia deles. Até que aquele olhar de Jesus fez do discípulo um outro homem – o São Pedro que veneramos.
Antes disso era ele e eramos nós, ou somo-lo ainda, quando a relação com Jesus é mais pelos nossos olhos do que pelos seus. Mais pelos nossos apriorismos e expetativas, “religiosas” que sejam, do que pela verdade que Ele é, com a novidade absoluta que transporta.
Foi o olhar de Jesus que mudou Pedro, como nos quer mudar agora. Forte, como sol abrasador. Luminoso, como luz sem sombra. Se o recebermos de frente, a esse olhar, se não nos escondermos dele nalguma ruga da alma, começaremos a ser verdadeiramente discípulos. Ou melhor, permitiremos de vez que o Senhor nos faça assim. Começaremos pelas lágrimas, terminaremos diferentes. Uma semana de caminho não será demais.
Sob o olhar de Jesus, como se fixou em Pedro. Também como depois olharia Herodes, quando este lhe pedia milagres, quase fantasias. E Jesus nada fez e nada disse, pois a tais despropósitos só os olhos respondem.
Ou como olharia Jesus aquele tíbio Pilatos, que tanto o queria soltar como temia os seus acusadores, acabando por condená-lo à morte...
Entretanto, olharia também e de relance aquela multidão, que gritava: «Crucifica-o! Crucifica-o!» Num olhar de comiseração, decerto, como quem não sofre apenas a maldade dos outros, mas também o dano que ela causa a quem a faz.
E o olhar sobre as mulheres que o lamentavam, quando se voltou para elas e lhe disse: «Filhas de Jerusalém, não choreis por mim, chorai antes por vós mesmas e pelos vossos filhos».     
Ou ainda o olhar sobre o malfeitor convertido, quando lhe respondeu de cruz para cruz: «Hoje estarás comigo no Paraíso». – Qual de nós não gostaria de ser olhado assim, e com tal promessa? E podemos sê-lo, dizendo o que ele disse: «Jesus, lembra-te de mim, quando vieres com a tua realeza!» Pois a terra do seu reino são os corações convertidos.  

Mantenhamo-nos nestes dias sob o olhar forte de Cristo. O que incidiu sobre Pedro; o que levantou sobre as multidões, que tanto o aclamam hoje como o detestarão sexta-feira; o que manterá imperturbável sobre um Pilatos hesitante; o que lançará na cruz sobre o ladrão que lhe pedia o reino; o último que lançaria para chegar a toda a terra – como a nós que aqui estamos, sob o seu olhar também.
Vivamos esta semana sob o olhar de Jesus. Nada nos distraia dele, que também não se distrai de nós. - Mas onde o identificaremos, a esse olhar de Jesus, que nos alcance e converta?
Um verso português, disse-o assim: «Só o olhar daqueles que escolheste nos dá o Teu sinal entre os fantasmas» (Sophia). É uma pista segura, tanto mais que sabemos como Jesus nos olha pelos olhos dos outros. Quando os faz tão excecionalmente claros que quase nos ofuscam.
Mas também quando nos pede de comer ou beber, quando nos pede agasalho ou abrigo, quando nos pede cuidado ou visita… Ou quando nos pede conselho, atenção e consolo. Porque os olhos pedem sempre e ainda mais do que as palavras que encontrem. O som esvai-se, o olhar perdura.

– Naquela altura, que diria o olhar de Jesus sobre Pedro? Disse o suficiente, mesmo sem palavras. Lembrou-lhe que O negara três vezes. À criada que o incluíra entre os discípulos: «Não O conheço, mulher». A outro, que insistira em que era um deles: «Homem, não sou». E ainda a um terceiro: «Homem, não sei o que dizes». Sabia bem demais, como não pôde negar diante do olhar de Jesus. Agora a resposta foi absolutamente outra. Também sem palavras, mas chorando amargamente. Doravante, quando Pedro falar, será doutra maneira, com a total diferença que um só olhar criara.
Porque naquele olhar de Jesus, Pedro revira muitos mais. O primeiro que lhe lançara, ao chamá-lo nas margens do lago. E depois tantos outros, para o interrogar, corrigir e estimular, da Galileia donde tinham partido a Jerusalém onde finalmente estavam. Tudo se simplificava agora, a pedir conversão e reencontro. E assim foi.
Assim foi com Pedro e assim há de ser com cada um de nós, que nos dispomos a permanecer com o Senhor nestes dias – e sob o seu olhar constante, dos Ramos à Páscoa.
Revejamos o olhar com que Jesus nos tem chamado, interrogado, corrigido e estimulado, desde que pela primeira vez o recebemos. Talvez pelos olhos familiares de quem nos trouxe à vida e nos encheu de esperança; pelos olhos de quem na Igreja nos instruiu na fé e nos acompanhou também; pelos olhos límpidos de quem nos espelhou o céu, ou pelos olhos bondosos que nos acalentaram na terra; pelos olhos tristes ou cansados de quem pediu ou esperou.
Deixemos que um olhar nos refaça, o de Jesus apenas. Regressemos com Pedro ao olhar de Jesus. Para que rebrilhe em nós e a vida recomece.

Sé de Lisboa, 20 de março de 2016
+ Manuel, Cardeal-Patriarca

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