24 março, 2016

Homilia de D. Manuel Clemente na Missa da Ceia do Senhor


Mãos de Deus em Cristo, mãos de Cristo em nós

Bem sabemos, irmãos caríssimos, como nos gestos de alguém vai quase a sua alma, no que faz ou deixa de fazer, mais expressivo ou contido. Quando o prólogo do Evangelho de João nos diz que «o Verbo encarnou e habitou entre nós», isso mesmo indica, de essencial também. E, quando no Credo como que suspendemos a recitação, ao dizermos «e incarnou pelo Espírito Santo, no seio da Virgem Maria, e se fez homem», aí mesmo nos mantemos, cada vez mais atentos e sempre mais rendidos ao ponto firmíssimo da revelação cristã.
Deus teve e tem gesto e figura, realidade e história na humanidade que somos, para a divindade que oferece. Como escreveu um autor do Novo Testamento: «O divino poder, ao dar-nos a conhecer aquele que nos chamou pela sua glória e pelo seu poder, concedeu-nos todas as coisas que contribuem para a vida e a piedade. Com elas, teve a bondade de nos dar também os mais preciosos e sublimes bens prometidos, a fim de que – por meio deles – vos torneis participantes da natureza divina, depois de vos livrardes da corrupção que a concupiscência gerou no mundo» (2 Pe 1, 3-4).Dois gestos de Jesus contemplámos agora, na Missa Vespertina da Ceia do Senhor, abençoado início do Tríduo Pascal.

Primeiro na Epístola de Paulo: «O Senhor Jesus, na noite em que ia ser entregue, tomou o pão e, dando graças, partiu-o e disse: “Isto é o meu Corpo, entregue por vós. Fazei isto em memória de mim”. Do mesmo modo, no fim da ceia, tomou o cálice e disse: “Este cálice é a nova aliança no meu sangue. Todas as vezes que o beberdes, fazei-o em memória de mim”». Depois no Evangelho de João: «Jesus […] levantou-se da mesa, tirou o manto e tomou a toalha, que pôs à cintura. Depois, deitou água numa bacia e começou a lavar os pés aos discípulos e a enxugá-los com a toalha que pusera à cintura».Fixemo-nos então nos gestos de Jesus, indicados pelos sucessivos verbos – em que o próprio Verbo encarna, tão divina como concretamente encarna. Nas suas mãos, que “tomam” o pão e o tornam seu corpo, “tomam” o cálice e o fazem nova aliança no seu sangue. Nas suas mãos, que “tomam” a toalha e a “põem” à cintura, que “deitam” água na bacia, para “lavar” os pés dos discípulos e os “enxugar” depois...
Na verdade, não precisamos de imaginar o que Deus seja. Nem devemos, pois em Jesus verificamos como “habitou entre nós”. Os seus gestos indicam-nos com a maior precisão o modo e a circunstância de acertarmos com Deus o que Ele acertou connosco. Para os praticarmos também como “corpo eclesial de Cristo”; da Igreja para o mundo, tornando-nos pão e cálice, cingindo-nos para lavar e enxugar os pés cansados de tantos, as vidas exaustas de muitos. Por isso o Evangelho continuava, com o mandato de Jesus: «Se eu, que sou Mestre e Senhor, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos outros. Dei-vos o exemplo, para que que, assim como eu vos fiz, vós façais também». Por isso mesmo, cada Missa se conclui com um “ide!”, pleno de revelação e encargo.

Em várias passagens, o Evangelho de João nos mostra como as mãos de Jesus realizaram na altura o que Ele quis para sempre. Podemos vê-las, logo no segundo capítulo, a purificar o templo, para que fosse só de Deus e para Deus, única maneira de ser de todos sem diferença. Enérgicas mãos, que acompanhamos assim: «Fazendo um chicote de cordas, expulsou-os a todos do templo [os que ali faziam negócio] com as ovelhas e os bois; espalhou as moedas dos cambistas pelo chão e derrubou-lhes as mesas; e aos que vendiam pombas, disse-lhes: “Tirai isto daqui. Não façais da casa de meu Pai uma feira”» (Jo 2, 15-16).
Mas estas mesmas mãos que expulsaram, espalharam e derrubaram o que estava realmente a mais, foram as mesmas que daí a tempos distribuíram o que de facto estava a menos, como era o pão para todos. Como aconteceu quando foi preciso alimentar a multidão, da fome material à fome total, com gesto quase eucarístico. Vejamo-las: «Então, Jesus tomou os pães e, tendo dado graças, distribuiu-os pelos que estavam sentados, tal como os peixes, e eles comeram quanto quiseram» (Jo 6, 11).
Mãos que purificam e alimentam, mãos que ungem e curam. Sigamo-las de novo, a iluminar o cego de nascença: «[Jesus] fez lama com a saliva, ungiu-lhe os olhos com a lama e disse-lhe: “Vai, lava-te na piscina de Siloé – que quer dizer Enviado”. Ele foi, lavou-se e regressou a ver» (Jo 9, 6-7).
Mãos de Jesus, que ele mesmo apresentou como as de um pastor certo e seguro – antes, durante e depois de todas as incertezas e inseguranças da vida e do mundo: «Eu conheço as minhas ovelhas e elas seguem-me. Dou-lhes a vida eterna e nem elas hão de perecer jamais, nem ninguém as arrancará da minha mão» (Jo 10, 27-28). Agradeçamos hoje estas mãos que definitivamente nos seguram, porque tomaram em si toda a realidade da vida e da morte e a começaram a ressuscitar, nele mesmo e para nós.

Mãos de Jesus, nosso Bom Pastor. Mãos de Jesus para apascentar o mundo, e hoje pelas nossas. Sempre no quarto Evangelho, esta verdade é-nos ensinada na alegoria da videira. A videira é Jesus, que o Pai plantou no mundo, com a seiva do Espírito. Nós somos os ramos, mais propriamente os “seus” ramos. E só assim agimos, suas “mãos à obra”. Oiçamo-lo: «Eu sou a videira, vós os ramos. Quem permanece em mim e Eu nele, esse dá muito fruto, pois, sem mim, nada podeis fazer» (Jo 15, 5).
Permanecendo assim, ramos na videira, as mãos e a obra permanecerão as suas, por nós alargadas. Deste modo se entende o que poderia parecer excessivo, se não fosse anunciado de modo tão solene: «Em verdade, em verdade vos digo: quem crê em mim também fará as obras que eu realizo; e fará obras maiores do que estas, porque eu vou para o Pai, e o que pedirdes em meu nome Eu o farei» (Jo 14, 12-13).
Amados irmãos, em Missa de Mandato e Ceia; Sacerdotes ministeriais, que com as mãos repetimos os gestos sacramentais de Cristo, no meio do seu povo; Povo sacerdotal, que se oferece ao Pai e do Pai ao mundo, como mãos de Cristo: Seja este o fruto de quanto celebramos - que nos reencontremos na grandeza do gesto e da missão do Senhor Jesus, agora tão nossos e para tantos que esperam.
Vimos o gesto do Senhor humilde. Que muitos o continuem a ver também em nós, quando vamos ao seu encontro, lavando e enxugando poeiras e lágrimas. Vimos o pão e o cálice, vimos o Senhor, que se reparte e comunga. Nada se fique pelo rito apenas. Tudo daqui parta como Cristo em nós, e assim chegue a todos. No mesmo sentimento, que encontre o mesmo gesto.
Pedimos a Deus, na primeira oração desta Missa, que reunidos para celebrar a santíssima Ceia, «recebamos, neste sagrado banquete do seu amor, a plenitude da caridade e da vida». Assim será decerto, da parte de Deus. Seja igualmente certo, consequentemente certo, de nós para os outros.

Quinta-Feira Santa, 24 de março de 2016

+ Manuel, Cardeal-Patriarca


Patriarcado de Lisboa 

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