01 janeiro, 2015

Solenidade de Santa Maria Mãe de Deus – Dia Mundial da Paz 2015



“Já não escravos, mas irmãos”, assim intitula o Papa Francisco a sua mensagem para este Dia Mundial da Paz. É uma sequência necessária, pois só seremos irmãos quando deixarmos de ser “escravos”, no sentido mais interior do termo. Os irmãos de sangue, tendo a mesma origem natural, têm também a mesma condição. Os irmãos que seremos todos, como Deus sempre quer, acontecem por opção mental e determinação prática de não sujeitar ninguém às nossas ambições, mas de provermos realmente à sua dignidade, garantindo reciprocamente a nossa.
Certamente que nos indignamos, face a tanta sobrevivência de escravaturas várias. Escravatura pessoal, que impede muitos de serem realmente livres, com vida e projeto próprios. Escravatura coletiva, quando há grupos e povos impedidos de decidirem autonomamente o seu destino, sob o peso insuportável de servidões sociais e culturais, financeiras e económicas, impostas e contínuas. Escravaturas múltiplas e chocantes, como as que o Papa elenca na sua mensagem, e afetam a dignidade humana do modo mais humilhante e intolerável.
Sim, repetidas notícias abrem-nos os olhos e tocam-nos as consciências, face às mais abomináveis servidões, que contradizem em absoluto o caminho que os direitos humanos e as respetivas declarações internacionais vão, apesar de tudo, fazendo.
Sabemos também – e damos graças a Deus por isso – como pessoas e grupos, instituições sociais e religiosas, se mobilizam de facto para resistir a servidões impostas e superá-las realmente. Com eles estamos e cada vez mais queremos estar, em apoio concreto de estímulo e cooperação ativa. Especialmente quando indigências graves e seduções traiçoeiras podem levar alguns e algumas a cair em redes de exploração e tráfico. Bom e urgente é, sem dúvida nem demora, corresponder ao apelo do Papa Francisco e reforçar todas as frentes dos direitos humanos, para o seu cabal respeito, longe ou perto.

Sabemos igualmente que o problema tem de ser resolvido no íntimo de cada um, no que profundamente deseja e ambiciona, no que realmente quer ou não quer. Assim como a liberdade espiritual nos faz libertadores dos outros, também os cativeiros de espírito nos tornam opressores dos demais, reduzidos que ficam a joguetes das nossas paixões, ou obstáculos a anular para as satisfazer. O realismo da experiência humana e a ilustração das páginas bíblicas não nos deixam qualquer dúvida a este respeito: quem é livre, liberta; quem é escravo de si mesmo torna-se opressor dos outros.
Chegados a este ponto e verificação, também concluiremos que o problema é basicamente pedagógico. Pedagógico, de educação pessoal e da sociedade inteira. Cultural também, pois se trata de valores e valorizações, do que sentimos e sabemos como mais importante, para nós e para os outros, para todos e para cada um. A liberdade joga-se antes de mais na capacidade que adquirimos ou não para cumprirmos um destino verdadeiramente humano - e humanizador de nós próprios e dos outros.
Trata-se de crescermos como “pessoas”, ou seja, como seres em relação, que só reciprocamente se realizam, na medida em que o bem dos outros se torna na tarefa de cada um, experimentando nisso mesmo que a felicidade é sempre um plural, e tanto mais verdadeira quanto mais alargada. Trata-se de percebermos, à luz evangélica dos talentos distribuídos, que só pondo a render para o todo as qualidades que detemos elas se tornam realmente nossas, pois todas têm natureza e destinação social.  
Das leituras que escutámos, ressoam-nos especialmente algumas frases. Como esta, de São Paulo aos Gálatas: «Deus enviou aos nossos corações o Espírito de seu Filho, que clama: “Abbá! Pai!”. Assim, já não és escravo, mas filho». São Paulo experimentava-o e dizia-o, porque de Cristo recebia uma humanidade restaurada e transformada em autêntica filiação divina, oferecida a todos por igual. Isso mesmo o levava a anular qualquer discriminação de raça ou cultura e a anunciar a Boa Nova duma fraternidade realmente universal.
Sabemos como a escravatura demorou a debelar nos códigos. Também reconhecemos positivamente o facto de, em muitas famílias e comunidades, tocadas pelo Espírito de Cristo, se terem gerado práticas mais solidárias e fraternas. Práticas, que exigidas nos primeiros textos cristãos e tão coincidentes com aspirações universais, acabaram por encontrar guarida nos textos nacionais e internacionais mais recentes. E, se estranhamos como demorou tanto tempo, mais devemos estranhar como tantas servidões persistem ainda agora, mais flagrantes ou encapotadas.
Persistem servidões, de facto, quando se negam ou retardam vidas autenticamente livres, por falta de reconhecimento prático do direito a nascer, a ser devidamente educado, a trabalhar e ser justamente remunerado, a constituir família com tudo o que esta requer, ao acompanhamento capaz na doença ou na velhice. Quando faltam tais requisitos, no todo ou em parte, faltam também as condições básicas para vidas realmente livres; e persistem pobrezas, misérias e servidões de todo o tipo.
Sim, caríssimos irmãos e irmãs, podemos e devemos “dar a volta” à realidade existente – ou “convertê-la”, como cristãmente se diz. Alguns o fazem já, e muitos mais se juntariam, sendo estimulados e apoiados por quem tem obrigação e encargo de o fazer, nacional e internacionalmente, no plano político e financeiro. Mas, no que nos toca a nós, como seguidores de Cristo e ouvintes atentos do Papa Francisco, redobra-se o compromisso para tudo fazer rumo à libertação integral de cada homem e mulher, nossos irmãos. Neste bom combate, a nossa linha só pode ser a da frente, como parte ativa da solução e com tantas pessoas e instituições de boa vontade comprovada.

Pedagogia então, e desde pequenos, no lar de cada um, aprendendo a respeitar, a ajudar e a repartir. Pedagogia, nas comunidades, em catequese autêntica, que insista nas duas dimensões essenciais duma vida “cristã” propriamente dita: filiação divina, repassada de oração e louvor; e experiência fraterna, ganha e sempre ativada por ações solidárias. Será o melhor contributo das famílias e das comunidades para a libertação da sociedade em redor.
E assim também retomaremos o que os pastores viram e o Evangelho contou: «Os pastores dirigiram-se apressadamente para Belém e encontraram Maria, José e o Menino». Muito mais do que um belo quadro, o evangelista sublinha-nos o primeiríssimo modo de Deus se dar a conhecer ao mundo: numa família, em que nasceu e cresceu, como acontecia em Jesus. E daquela família ganhou Ele o modo humano e humanizador de formar depois a grande família dos filhos de Deus, a todos destinada.
Família humilde de Belém, família refugiada no Egito, família de trabalho em Nazaré, família de parentes e vizinhos, família de casa e de templo. Conhecem-se os nomes de alguns, porque realmente tinham nome e não se esfumavam no todo impessoal. E tudo é pedagogia, da Sagrada Família ao povo do Evangelho, uns pelos outros e uns com os outros, sempre e só assim.
Concluamos que a liberdade, própria e alheia, é fruto da vida agradecida e partilhada. Concluamos que os direitos se sentem como “humanos”, quando os aprendemos na humanidade comum. Por isso nascemos em família e assim crescemos em sociedade e Igreja. Como fermento que leveda a massa da humanidade inteira.
E com tudo isto estamos a dizer “Deus”, tal como se revelou na vida de Jesus. Na vida que Jesus quer prosseguir connosco. - Por isso mesmo iniciamos com 2015 mais um “ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo”!


Igreja de Nossa Senhora do Amparo, Benfica, 1 de janeiro de 2015
+ Manuel Clemente
Patriarcado de Lisboa

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