21 abril, 2014

Tríduo Pascal - Homilia de D. Manuel Clemente no Domingo de Páscoa

Foto: DR


DOMINGO DE PÁSCOA 2014
A vivência perfeita da única Páscoa garantida

Caríssimos irmãos, na Páscoa do Senhor
Saúdo-vos vivamente nesta manhã pascal. E com aquela vida que venceu a morte, em Cristo e em nós. Ouvimo-lo a Paulo, clamando aos colossenses, com o sentido transfigurado que as palavras ganham no batismo dos crentes: «Vós morrestes, e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus. Quando Cristo, que é a vossa vida se manifestar, também vós vos haveis de manifestar com ele na glória».

Sim, caríssimos, estamos aqui com o que trazemos em mente e porventura nos pesa na alma, e não podemos nem queremos esquecer. Uns com saúde e outros enfermos, ou com doentes a seu cargo; uns com trabalho e outros sem o ter, numa sociedade que tarda a reconhecê-lo como condição indispensável de realização humana; uns acompanhados e outros sós, ou com dificuldade em constituir e manter a vida familiar, base irrecusável da convivência autêntica…

Sim, estamos como estamos, e nem todos como queríamos ou devíamos estar. Mas o apóstolo dizia-nos outra coisa e muito mais do que isso: «A vossa vida está escondida com Cristo em Deus». Traduzamos assim: Nas vicissitudes duma existência frágil ou fragilizada, mas sempre mortal, o segredo dos batizados é o destino de Cristo, que lhes é oferecido.

Venha o que vier, já veio o que devia - a Páscoa de Cristo, o Filho de Deus, que se fez um de nós, passou pelo que passamos e venceu a morte, não lhe fugindo, mas repassando-a da vida ressuscitada e ressuscitadora que o Pai lhe ofereceu. Tendo a vida escondida com Cristo em Deus, temo-la bem segura e não nos recusaremos a dá-la também, pois quanto mais a dermos pelos outros mais a receberemos de Deus. Por isso, a Páscoa de Cristo é a permanente raiz da nossa liberdade altruísta – a única realmente livre. 

Mas recuperemos brevemente o caminho feito e indispensável sempre: Em Domingo de Ramos, entrámos com Jesus em Jerusalém. Quinta-Feira Santa, estivemos com Ele na Ceia e depois no Horto das Oliveiras. Sexta-Feira, no seu julgamento, condenação e morte. Fomos agora com a Madalena ao sepulcro, vimos a pedra retirada, fomos ter com Simão Pedro e o discípulo predileto. Com eles corremos ao sepulcro, vimos as ligaduras no chão, sinal certamente de que o corpo não fora roubado… Por fim, e é o ponto em que estamos, vimos e acreditámos. Vimos o que eles viram e acreditámos no que o discípulo predileto acreditou.

Uma semana plena de circunstâncias e ensinamentos, que decerto seguimos com humildade de espírito e coração contrito, como só pode ser em momentos únicos e vitais. – Que alvoroço aquele, de ramos e hossanas, quando Jesus entrou na Jerusalém das nossas vidas, também representadas em incontáveis celebrações que se fizeram nas comunidades cristãs, há uma semana atrás! Percebendo, sobretudo, que é assim que Ele continua a entrar, com a régia humildade em que aconteceu, num pequeno jumento. – Quanta ação de graças, quanta “Eucaristia”, quando em Quinta-Feira se deu em corpo e sangue! E depois, no Horto, quanta advertência para não dormirmos, antes o acompanharmos, indo até ao fim…

A seguir, no pretório de Pilatos, certamente o vimos a Ele, igual a si mesmo, quando a multidão já era tão diferente do que fora nos Ramos, aclamando-o um dia para o rejeitar no outro... E para o seguirmos, como cada um o fez e continua a fazer, sob a cruz dos homens, sob a cruz do mundo… Depois a morte, a sepultura e finalmente o mais, o tudo que nos traz aqui, num dia sem ocaso.

Mais um ponto ainda, e muito de reter. Ouvimos no Evangelho: «Entrou também o outro discípulo que chegara primeiro ao sepulcro: viu e acreditou». Tratava-se do “discípulo predileto”, que, exatamente porque o era, chegou mais depressa e acreditou primeiro.

Caríssimos irmãos, é do que se trata agora e há de ser connosco. Olhando para onde olharmos, correndo para onde corrermos, não nos faltam sepulcros de esperanças e vazios de vida. De perto ou de longe, dramas pessoais, tragédias de povos, riscos de mais guerras, cristãos perseguidos, horizontes curtos, bloqueados… Mesmo com férias e passeios nesta feliz quadra, nada nos evita as notícias tristes, nem nos dispensa de habituais cuidados.

Todavia, se a predileção de Jesus e por Jesus nos prende deveras, nem deixaremos de acorrer onde O sabemos, nem deixaremos de lhe divisar a presença onde Ele preferentemente está e nos espera.

Não faltaremos à reunião fraterna de cada “Domingo”, aprendendo com o apóstolo Tomé que, só estando “com os outros”, O veremos também, para lhe dizermos de coração rendido: «Meu Senhor e meu Deus!» (cf. Jo 20, 26-28).
Não olvidaremos as suas palavras, pois guardá-las na memória e no coração é o modo perfeito de O sabermos connosco e bem connosco, como prometeu: «Se alguém me tem amor, há de guardar a minha palavra; e o meu Pai o amará, e Nós viremos a ele e nele faremos morada» (Jo 14, 23).

Mantendo-nos com Ele, em devoção e lembrança, cada vez mais captaremos o fulgor da sua glória e presença, que a tudo confere a verdadeira luz e o sentido autêntico. Ele próprio o pediu ao Pai, assim mesmo o garantindo: «Pai, quero que onde Eu estiver estejam também comigo aqueles que me confiaste, para que contemplem a minha glória, a glória que me deste, por me teres amado antes da criação do mundo» (Jo 17. 24).

Vendo bem, procuramo-lo porque Ele nos procurou primeiro e sempre procura agora. Batemos à porta do céu, que nem sempre parece tão escancarada como a pedra removida do sepulcro. Mas, na verdade, é Ele que bate à porta do nosso coração, em constante vontade de conviver connosco: «Olha que Eu estou à porta e bato: se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, Eu entrarei na sua casa e cearei com ele e ele comigo» (Ap 3, 20).

A alusão à ceia, eucarística sobretudo, traduz a proximidade do Ressuscitado, como a quer manter connosco. E, sendo Ele próprio o alimento, a convivência passa a ser comunhão, em sentido cabal e preciso. Como no seu discurso do Pão da Vida: «Quem come realmente a minha carne e bebe o meu sangue fica a morar em mim e eu nele. Assim como o Pai que me enviou vive e eu vivo pelo Pai, também quem de verdade me come viverá por mim» (Jo 6, 56-57).

Sem esquecermos nunca a sua presença nos outros, igualmente real e à nossa espera, agora e sempre, como lembra outro trecho evangélico: «Vinde, benditos de meu Pai! […] Porque tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber, era peregrino e recolhestes-me, estava nu e destes-me de vestir, adoeci e visitastes-me, estive na prisão e fostes ter comigo. […] Sempre que fizestes isto a um dos meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes» (Mt 25, 34 ss).

Recolhendo estas preciosas indicações do Novo Testamento que deixou, nada nos há de tolher a corrida ao lugar donde ressuscita, para entrarmos de vez e lhe divisarmos a presença. Assim mesmo O veremos, onde quer ser visto; aí mesmo O serviremos, nos pobres em quem nos espera; aí mesmo nos garantirá para sempre, pois a caridade nunca acabará; aí mesmo nos servirá, ele próprio, conforme prometeu; «Felizes aqueles servos a quem o senhor, quando vier, encontrar vigilantes! Em verdade vos digo: Vai cingir-se, mandará que se ponham à mesa e há de servi-los» (Lc 12, 37).

A esta luz definitiva, caríssimos irmãos, façamos da nossa presença reforçada, na Igreja e no mundo, a vivência perfeita da única Páscoa garantida.


+ Manuel Clemente
Lisboa, 20 de abril de 2014

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