24 janeiro, 2014

Homilia de D. Manuel Clemente na solenidade de São Vicente, padroeiro do patriarcado de Lisboa

Foto: Patriracado de Lisboa

Porque o grão caído na terra frutifica num mundo de irmãos
Homilia na solenidade de São Vicente, padroeiro do patriarcado de Lisboa


1.A solenidade de São Vicente, diácono e mártir, padroeiro principal do patriarcado de Lisboa, celebra-se este ano no especial contexto da receção atenta e consequente da exortação apostólica Evangelii Gaudium, em que o Papa Francisco nos entregou um verdadeiro “programa” de missão geral e evangelizadora.

É uma feliz coincidência que, hoje mesmo, a nossa diocese encete um caminho sinodal nesse sentido, que até 2016 – tricentenário da nossa qualificação “patriarcal” – a todos nos fará cumprir, o mais cabalmente possível, a determinação pontifícia, como vem no número 25 da exortação: «Sublinho que aquilo que pretendo deixar expresso aqui, possui um significado programático e tem consequências importantes. Espero que todas as comunidades se esforcem por usar os meios necessários para avançar no caminho de uma conversão pastoral e missionária, que não pode deixar as coisas como estão».

Isto mesmo, caríssimos irmãos. Como se o Papa dissesse que, se queremos mudar o mundo, temos de começar por nós, Igreja de Cristo para o mundo, retomando e aprofundando a sua atitude essencial de Filho de Deus e irmão universal, tão profundamente orante e tão ativamente evangélico. E há tanto para mudar no nosso mundo, nos vários patamares da sociabilidade humana, das famílias às comunidades, da vida pessoal à  vida pública, do que se passa fronteiras adentro ao que se passa nas relações internacionais… Do que se passa e do que ainda não passa e devia passar, em termos de solidariedade concreta e humanidade compartilhada!

É bem significativo que tenhamos São Vicente por padroeiro, e precisamente na atual conjuntura. Viveu há muitos séculos, no outro lado da Península Ibérica, sendo diácono e acompanhando o seu bispo, quando o Império Romano se opunha ainda à Igreja de Cristo. Chegou a perseguição e Vicente não recuou nem fugiu, enfrentando os tormentos com uma coragem que não mais foi esquecida.

Daí que lhe guardassem os restos mortais, pois que assinalavam tanta vida. Vida pascal e portanto vitoriosa, na vitória de Cristo sobre a morte. Segundo a tradição de Lisboa, coeva da fundação da nacionalidade, foram essas relíquias que se guardaram aqui e ainda hoje reverenciamos. Não tanto a elas, mas sumamente ao que nos lembram – a vitória evangélica das vidas que se entregam. Porque – como há pouco ouvimos no Evangelho de João - «se o grão de trigo cair na terra e não morrer, fica só ele; mas, se morrer, dá muito fruto».

Nas atuais circunstâncias, que com os nossos concidadãos partilhamos, a memória de Vicente na memória de Cristo é-nos muito inspiradora. Revivendo em cada comunidade cristã o mesmo empenho e tal entrega, nada nos deterá na missão evangélica. Serviço solidário, porque dum diácono se tratava, adstrito por isso à ação caritativa. Serviço solidário ainda, por atender às necessidades do corpo e do espírito, na realidade total de quantos encontrava.

E hoje em dia, sabemo-lo bem, só com idêntica amplitude e projeção podemos cumprir o que o mundo pede à Igreja que somos e havemos de ser, em função de Deus e dos outros. Respostas parciais, num resumo materialista ou espiritualista que fosse, não são verdadeiramente humanas e humanizadoras, nem correspondem a um desenvolvimento autêntico – aquele que Paulo VI referia «a todos os homens e ao homem todo».

2. É neste sentido global que tanto nos importam as indicações do Papa Francisco sobre o “espírito” da missão evangelizadora que temos por diante. Encontramo-las no último capítulo da exortação apostólica e cada uma delas nos reconduz a Cristo e a Vicente, para o serviço atual dum mundo de que Deus não desiste.

Como aconteceu com Vicente, «a primeira motivação para evangelizar é o amor que recebemos de Jesus, aquela experiência de sermos salvos por Ele que nos impele a amá-lo cada vez mais» (EG, 264). Por espantoso que pareça, é esta a única razão de estarmos hoje aqui e nos projetarmos em missão, amanhã e sempre.

Aconteceu-nos na vida a presença de Cristo, pensarmos nele como só se pensa em alguém vivo e que nos faz viver, doutra maneira e melhor. Doutra maneria, mas no mundo de toda gente e de todos os dias. Melhor, porque transfigura tudo, do nascer ao morrer, do ganhar ao perder, do fruir ao sofrer, como só uma vida humana divinamente vivida – precisamente a de Cristo – realiza e oferece.

Vida oferecida e continuamente praticável, em constante doação aos outros – pois isso mesmo é viver. Vida que, convencendo-nos profundamente a nós, garante a coincidência com o que todos igualmente esperam, através de nós. E o Papa acrescenta, com palavras que certamente lhe brotam de muita meditação evangélica: «Toda a vida de Jesus, a sua forma de tratar os pobres, os seus gestos, a sua coerência, a sua generosidade simples e quotidiana e, finalmente, a sua total entrega, tudo é precioso e fala à nossa vida pessoal. Todas as vezes que alguém volta a descobri-lo, convence-se de que é isso mesmo o que os outros precisam, embora não o saibam» (EG, 265). Foi sempre esta e só esta a garantia e a força dos evangelizadores autênticos.

De relação se trata, e no sentido absoluto que se chama amor. Melhor dizendo, participamos no amor de Cristo ao Pai e aos outros, com os quais se irmana, plena e realmente. Por isso aprendemos de Cristo e com ele exercitamos uma religião plenamente social, que compartilha a sua dedicação ao bem de todos e cada um: «Para sermos evangelizadores com espírito é preciso também desenvolver o prazer espiritual de estar próximo da vida das pessoas, até chegar a descobrir que isto se torna fonte de uma alegria superior. A missão é uma paixão por Jesus e, simultaneamente, uma paixão pelo seu povo» (EG, 268).

Mais adiante, com grande realismo cristão, certamente espiritual mas nada “espiritualista”, o Papa dirá que esta participação nos sentimentos de Cristo em relação aos outros é, por si mesma, revelação de Deus: «Cada vez que nos encontramos com um ser humano no amor, ficamos capazes de descobrir algo de novo sobre Deus. Cada vez que os nossos olhos se abrem para reconhecer o outro, ilumina-se mais a nossa fé para reconhecer a Deus» (EG, 273). Resumiremos que, na caridade de Cristo, missão e teologia se tornam numa coisa só.

3. É ainda na recordação do martírio de São Vicente que podemos concluir. Podia ter sido uma vida mais, um momento forte de convicções demonstradas, apesar dos tormentos, mas acabando ali. Porém, o facto de estarmos agora, tantos séculos volvidos, nesta catedral que lhe guarda as relíquias, significa outra coisa e infindamente mais. Significa que nele, na sua memória viva, na totalidade com que reviveu a morte de Cristo em testemunho de Deus e na entrega por todos, reforçamos a convicção de que vale sempre a pena ir até ao fim, abrindo o futuro onde diziam que acabávamos. Como escreve o Papa: «A sua ressurreição [de Cristo] não é algo do passado, contém uma força de vida que penetrou o mundo. […] É verdade que muitas vezes parece que Deus não existe: vemos injustiças, maldades, indiferenças e crueldades que não cedem. Mas também é certo que, no meio da obscuridade, sempre começa a desabrochar algo de novo que, mais cedo ou mais tarde, produz fruto» (EG, 276). 
Não precisaremos de mais neste momento, para, com São Vicente, testemunharmos a Páscoa de Cristo, em incansável missão. Porque o grão caído na terra frutifica num mundo de irmãos.

+ Manuel Clemente
Sé de Lisboa, 22 de janeiro de 2014

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