23 janeiro, 2012

Igreja dá sentido sublime e transcendente ao sofrimento

Cardeal-Patriarca, D. José Policarpo, presidiu este Domingo, 22 de Janeiro, à celebração da Solenidade de S. Vicente, padroeiro principal do Patriarcado de Lisboa.

 
“Ganhar a vida, perdendo-a: actualidade do Martírio”
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Homilia proferida na Solenidade de São Vicente, Padroeiro Principal do Patriarcado de Lisboa
Sé Patriarcal, 22 de Janeiro de 2012

 
1. Na Solenidade de São Vicente, Padroeiro do Patriarcado e protector da Cidade de Lisboa, resolvi falar-vos do Mártir. Ele é, para todos nós e há muitas gerações, o Mártir São Vicente. Não foi martirizado em Lisboa. Diácono do Bispo Valério de Saragoça, é martirizado no início do século IV, na perseguição de Diocleciano, a última desencadeada pelos imperadores romanos contra os cristãos.
Ao longo dos séculos sempre houve homens e mulheres que aceitaram sacrificar a vida por uma causa nobre. No nosso tempo há muitos que decidem da sua própria morte por motivos que consideram nobres; é o caso dos auto-proclamados mártires muçulmanos ou de monges budistas que se imolam. O mártir cristão não decide da sua própria morte; sofre-a por fidelidade. Para ele, a vida neste mundo não parece mais importante que a sua fé, a sua fidelidade a Jesus Cristo. O mártir cristão é vítima da violência injusta dos poderes deste mundo contra os cristãos.

2. A fonte do sentido do martírio cristão é Cristo e a identificação da Igreja com Cristo, em tudo, sobretudo na Sua paixão redentora. Cristo, na sua fidelidade ao desígnio de Deus Pai, é o Mártir por excelência, que aceitou ser fiel à Sua missão, mesmo sofrendo a morte. No Seu sacrifício voluntariamente consentido, dá o testemunho supremo da Sua fidelidade à missão que o Pai Lhe tinha confiado. A sua morte não é uma surpresa; é algo de que tem consciência, porque se considera o “Servo de Yahwé”, na compreensão da Sua missão. São João põe na boca de Jesus: “É por isto que Meu Pai me tem amor: por Eu oferecer a minha vida, para a retomar depois. Ninguém Ma tira, mas sou Eu que a ofereço livremente. Tenho poder de a oferecer e poder de a retomar. Tal é o encargo que recebi de Meu Pai” (Jo. 10,18). O martírio cristão é mais do que dar a vida por qualquer causa nobre. É a plena imitação de Cristo, a participação perfeita na sua missão redentora.
O Senhor prepara os discípulos para este dom da vida, até à morte, porque eles fazem um com Ele: “O Servo não é maior que o seu Senhor. Se Me perseguiram, perseguir-vos-ão também a vós” (Jo. 15,20). São vários os avisos que Jesus faz aos discípulos de que, segui-l’O, é aceitar ser mártir como Ele: “O irmão há-de entregar à morte o seu irmão (…) e de todos sereis odiados por causa do Meu Nome. Mas aquele que permanecer firme até ao fim, é que há-de salvar-se” (Mt. 10,21-22). Aos três apóstolos que eram mais íntimos, Jesus anuncia-lhes, pessoalmente, que hão-de participar do Seu martírio. A Tiago e João: “Podeis beber o cálice que Eu hei-de beber?”. E depois confirma: “O cálice que Eu hei-de beber, vós o bebereis” (Mc. 10,38-39). E no caso de Pedro, João reconhece que Jesus lhe anunciou a maneira como havia de morrer: “Quando fores velho, estenderás as mãos, outro te cingirá a cintura e te conduzirá para onde tu não quererias ir” (Jo. 21,18-19).

3. O martírio cristão é, assim, o seguimento de Cristo até às últimas consequências. É a afirmação de que não há fidelidade cristã sem aceitar participar na Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. Esta dimensão exprime-se, não apenas no martírio, mas na vivência de todo o sofrimento em união com Cristo. São Paulo vê nesta participação no sofrimento de Cristo o cerne da mística cristã: “Os sofrimentos do cristão são os sofrimentos de Cristo” (2Co. 1,5), porque o cristão é um com Cristo. No sofrimento, o cristão “completa na sua carne o que falta às provações de Cristo pelo seu Corpo, que é a Igreja” (Col. 1,24).
Poderemos aplicar ao sofrimento que sofremos unidos à Paixão de Cristo a noção de martírio? Num sentido amplo, sim, porque o dinamismo é o mesmo: não querer salvar a vida deste mundo à custa da vida em plenitude. A ressurreição de Cristo é o fruto amadurecido e a vitória definitiva sobre o sofrimento e sobre a morte. “Se sofremos com Ele, é para sermos glorificados com Ele” (Rom. 8,17).
O martírio é a expressão radical desta participação no sofrimento de Cristo. E por isso participa da fecundidade da Cruz do Senhor. É a redenção do mundo que continua em acção, através da Cruz de Cristo, agora abraçada e oferecida pelo Seu Corpo, que é a Igreja. Esta sempre teve consciência da fecundidade salvífica do martírio: “Sangue de mártires é semente de cristãos”. Os Actos dos Apóstolos confirmam que o martírio de Estêvão provoca a primeira grande expansão dos discípulos para fora da Palestina (cf. Act. 8,4ss), e sugerem que ele está na origem da conversão de Paulo (cf. Act. 8,3). Ao longo dos séculos, várias vezes a Igreja fez a experiência de encontrar no martírio o vigor do seu crescimento, na Europa, na Coreia, no Japão, em África. A actualidade da fecundidade redentora da Cruz de Cristo exprime-se, em cada tempo, no sofrimento dos cristãos. A palavra martírio readquire o seu sentido original de testemunho: o mártir é uma testemunha. Só o testemunho dos cristãos comunica a fé e faz crescer a Igreja.

4. Então devemos promover o martírio? De modo nenhum; devemos promover, isso sim, a vivência de todo o sofrimento em união ao sofrimento de Cristo. A mística cristã vive, a este propósito, uma espécie de paradoxo. A Igreja, por um lado, procura mitigar o sofrimento humano e, por outro, dá-lhe um sentido sublime e transcendente.
Sempre existiram mártires, porque sempre existiram perseguidores. Um livro recentemente publicado, intitulado “Os mártires do século XX”, dá-nos dessa realidade um panorama impressionante. E mesmo hoje, nos últimos dias, os noticiários estão cheios de notícias de mártires cristãos e de perseguidores. O sentido místico do martírio não deve impedir todas as forças que lutam pela dignidade do homem de denunciar e isolar os perseguidores. É uma batalha de civilização.

5. São Vicente, Mártir. Que ele seja para nós, para a nossa Diocese, e para esta Cidade que ele ama e protege, testemunha. Que o seu martírio continue a ser fecundo, ajudando-nos a todos, na intimidade da nossa consciência e do nosso coração, a abrirmo-nos ao dom da salvação que Jesus Cristo, o verdadeiro Mártir, conquistou para todos os homens.

† JOSÉ, Cardeal-Patriarca

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